LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Retalhos, de Isidoro Martins Júnior
Texto-fonte:
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Retalhos.
Edição definitiva. Recife: Tipografia Industrial, 1884.
1883 — 1884
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VERSOS
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RETALHOS
TIP. INDUSTRIAL — RUA DO IMPERADOR N. 14
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Recife, Outubro de 1884
Izidoro MARTINS JUNIOR
A
Faelante da Câmara,
o nervoso e brilhante poeta
das
“Verdades ao Sol”
A
Alfredo Falcão, Higino Cunha
Anísio de Abreu, César Monteiro
Pereira Simões, João A. de Freitas
ÍNDICE
Um dia, um gárrulo cardume
De aves — ouro e azul —, grandes como albatrozes,
Veio pousar alegre, enchendo-o de perfume,
Sitiando-o de vozes,
No vazio poial dos meus quatorze anos...
Eram aves reais, pássaros soberanos
Esses, vindos a mim. Havia-os cor do abismo
E cor do sol. No ar, que em fluido paroxismo,
Aquecia o ambiente,
Banhavam-se eles, como em rubro vinho ardente
Molham-se de um cristal as rígidas facetas.
Era uma legião alada de estafetas
Que chegavam da Luz, da terra dos Condores,
Das cidades do Som e da pátria das Flores.
E rompeu a cantar, o plúmeo batalhão.
Julguei sentir então
Sobre mim abater-se um quê de luminoso,
De salutar e bom, de heroico e impetuoso.
Parecia-me ouvir a safira trinar,
A esmeralda dizer um sonho verde-mar,
Melodiosa queixa a opala desferir,
O topázio exprimir
Uns desejos febris de ignotos ideais,
E o rubim desatar-se em árias marciais!
Cada ave trazia uma canção igual
À plumagem que tinha. Eu escutei-as, qual
Um monge velho e místico
Que ajoelhasse perante o símbolo eucarístico.
Quando a orquestra cessou, agitaram-se as asas.
Das aves musicais o glorioso bando
Foi rasgando, rasgando
O espaço todo anil, cheio de finas gazas,
E perdeu-se afinal... Não sei se n’algum astro,
Se em longínquo jardim com bustos de alabastro...
* * *
Amigos, desde então pôs-se a vibrar minh’alma.
Como ao vento na mata agita-se uma palma,
Começou dentro em mim, dos pássaros aos trinos,
A bater, a pulsar, a fibra desses hinos
Com que eu tenho alfombrado o chão da minha vida,
E com que conto para ao fechar desta lida
— Como árvore no monte —
Ter um trapo de luz aonde enrole a fronte,
Ou para ter um horto
Manso, sereno e azul, onde me estenda morto...
Deixai que eu continue a trépida jornada.
Se não tenho a balada,
A lânguida romanza harmônica da opala,
Ao menos sei vos dar em radiosa escala
As notas escarlates
Que furtei ao rubim, que arrebatei aos vates
De penas cor do sangue...
* * *
Quando eu cair exangue,
Amigos! e faltar-me a força, a inspiração...
Será como um clarim a última canção!
(H. Heine)
A João Bandeira
Não sei como explicar esta tristeza
Que está fazendo ninho em minha fronte;
Urna antiga legenda fabulosa
Vem-me à cabeça, como a neve a um monte.
É lusco-fusco. A atmosfera é doce
E o Reno manso, a murmurar, serpeia.
No ocaso, ao longe, a testa das montanhas
Brilha com a luz crepuscular que ondeia.
Corno que por milagre, está sentada
Além a mais formosa d’entre as moças.
Traz uma joia que parece auréola,
Penteia do cabelo as áureas touças...
Penteia-o, sim. O pente é de ouro vivo,
E ela gorjeia uma cantiga, um canto,
Sua voz é melódica e selvagem,
Mostrando um certo quê de negro encanto.
Vem vindo um navegante em leve barca...
Ao ver a moça sente estranha dor,
Deixa de olhar para os escolhos negros,
Fita somente o vulto arroubador!...
Creio que enfim as ondas famulentas
Enguliram a barca e o navegante...
Eis o que fez com sua voz traidora
A fada Loreley — do Reno a amante!
A Claudino dos Santos
Poetas, porque viveis
Metrificando baladas,
Rimando amores e a tez
Das vossas mil namoradas;
Porque levais a existência
A procurar, nos profundos
Olhos das virgens, os mundos
Dos gozos em quintessência;
Por sempre andardes ouvindo
As sinfonias das auras
E julgardes-vos (que lindo!)
Petrarcas de novas Lauras;
Por terdes continuamente
Os corações traspassados,
Cantando, como os magoados
Sabiás na palma virente;
Porque amais a flor, o céu,
O branco cetim do luar,
O azul, os campos, um véu
Que ensombra o sol de um olhar;
Porque cismais ao sol posto
Em desalinho romântico
E ouvis o sagrado cântico
Do mar, contando um desgosto;
Por serdes doces bem como
A nota de um violino,
Desejáveis como um pomo
E ternos como um menino;
Poetas! não se concebe
Que deserteis desta luta
Em que nest‘hora labuta
O rei, o clérigo, a Plebe!
Bardos fatais das modinhas
Ouvi! — A Arte não é
A curva qualquer de um pé
Ou de um perfil quaisquer linhas.
E nem o Amor é apenas
A afrodisia untuosa
Que vós rimas, nas serenas
Noites de lua saudosa.
Vates! Amar não impede
Que sejamos úteis, fortes,
Potentes como coortes,
Sonoros como harpas. Crede!
O Amor tenhamo-lo, sim;
Cantemo-lo inteiro e puro;
Mas o largo Amor sem fim
Que vai da esposa ao Futuro.
A trova, o verso moderno
É como um punhal dourado;
Contem lampejos de inferno
E maciezas de prado!
(Fazendo-lhe a dedicatória de um jornal, no dia de seu aniversário)
Não vimos te ofertar um ramilhete, Mestre.
As flores servem só para ensopar de aromas
A corola do ar, algum jardim silvestre...
Ou para estrelejar as femininas comas.
Trazemos-te, porém, mais do que rosas: — frontes
Que se voltam p'ra ti, olhares que te fitam,
Cabeças juvenis, largas como horizontes,
E rubros corações de filhos, que palpitam.
Ergue tu para nós a pensadora testa
E acolhe-nos. O sábio, assim como Jesus,
Deve ter para o fraco um riso bom de festa
E aos cegos apontar a Capital da Luz.
Nós quisemos, ‘través da atlântica planura,
Abraçar-te no dia a cujo sol memoras
Teu lar, teus velhos pais, a tua infância pura...
Fizemo-lo, há em nós uma invasão de auroras!
(Inspirações da “Madona do Campo Santo”, conto de Fialho de Almeida.)
Era uma flor, e consumia as flores;
Era uma rosa, e mastigava as rosas;
Tinha na face histéricos palores,
E n'alma tinha erupções radiosas.
Não sei... Mas acho que bebia aromas
Em vez de os lábios mergulhar em água;
Traía a dor de uma infinita mágoa
No arfar veloz das delicadas pomas.
Como era humana e ao mesmo tempo etérea!
Ah! Como ria a máscara funérea
Da sua face olimpiamente bela
Quando ela via uma roseira branca!...
Pobre! Era então que uma alegria franca
Punha arrebóis no doce rosto dela!
(Libertação de Fortaleza)
A Alfredo Pinto
Glória! Vem de explosir a aurora no levante,
E em mim vem de explosir a mina estrepitante
Da alegria febril, do entusiasmo hercúleo!
Rebenta e chispa a luz no firmamento azúleo,
Enquanto em mim rebenta a pólvora dos sonhos,
Das cousas infantis e geniais!...
Risonhos
Assaltam-me a cabeça, em batalhão cerrado,
N’um sonoro tropel cadencioso e alado,
Os sentimentos bons, os lúcidos instintos!
Passam-me pelo olhar panos de nuvens tintos
Nos coriscos do sol, e passam-me pela alma
Melodias de canto e frêmitos de palma!
* * *
Glória! Sopra do Norte a santa tempestade.
Há um pedaço da Pátria onde a razão não há-de
D’hoje em vante corar ante a senzala, o carro
E o chicote brutal, que como um negro escarro
O estúpido feitor cospe ao cativo! Glória!
Vai passar ante nós a procissão da História!
Euzébio de Queirós, Luiz Gama, Rio Branco
Atravessam o ar... Traz cada um no flanco
O sinete de luz, feito de flor e aromas
Que a Ideia — essa mulher de fecundantes pomas —
Grava no corpo a quem soube ser justo e amante!
Eu ajoelho em frente ao Ceará gigante!
A Carlos Falcão
Sinto fugir-me a força em meio a travessia,
Ir o vento faltando às velas do meu barco.
Não creio poder ver o derradeiro marco
Da marcha que encetei. A estrada é fugidia.
É fugidia e má. Some-se no horizonte
Como um rio no mar, como o oceano verde
Na linha azul do céu puríssima se perde...
Deserta-me o vigor do peito nu, da fronte...
Baixa sobre este seio a sombra carregada
D’uma noite polar, caótica, infinita,
Onde uma nota só não vibra iluminada.
É que às vezes me dói o coração... Agita
O tédio sobre mim su’asa sonolenta,
E então embalde o sol, que ri no ar, me tenta!
(Aos meus amigos do Rio Grande do Norte.)
Pediram-me vocês que eu fosse ao meu rosal
Poético, — e do galho esplêndido do qual
Costumam rebentar em hastes retilíneas
As corolas viris, as pétalas sanguíneas
Das estrofes brutais cheias de apoplexia
E crivadas de luz, crivadas de ironia;
— Arrancasse eu agora uma fulmínea flor
Que pudesse atirar ao colo inspirador
Da terra de vocês, a terra bem amada!
Faço-lhes a vontade. A impávida rajada
Que vem do bom país etéreo do Futuro,
E que rasga, passando, o vestuário escuro
Das cousas sem valor poentas e senis,
— Neste instante me afaga a testa emagrecida
Injetando-me nela uma porção de vida!
Vamos! Gritem vocês aos bárbaros e aos vis
Tudo o que lhes vier aos cérebros, aos peitos!
Quem consegue limpar de tétricos defeitos
Um pedaço da Pátria, é mais feliz que Creso!
— Em vocês eu abraço um Ideal que prezo!
(Fantasiando)
Tem a doce maciez das cousas puras;
Tem de perfume um langoroso rasto;
Põe no meu peito um mundo de venturas,
Põe-me na alma um sentimento casto.
É como o fresco “bogari da serra”
Que dorme ao pé da cantadora fonte.
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Eu vou colar a penserosa fronte
À sua fina carnação... Encerra
Uma tal harmonia boa e vaga...
Que junto dele um não sei quê me afaga!
João Bandeira
Eu queria assentar a Musa Cientifica
No plácido diwan cetíneo desta folha,
E pô-la a recitar, n’uma dicção magnífica,
Uma correta estrofe, iriada como a bolha
D’água, que pelo inverno estremece nas flores!
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Eu queria fazer um chant à ma façon,
Onde enchesse de amor o Povo e suas dores,
Onde falasse ao Grande, ao Luminoso, ao Bom,
À Razão e ao Dever, à Liberdade e à Ideia,
A tudo que me doura e que me afaga a vida!
Mas não posso... E depois, esse tom de epopeia
Iria fazer mal à tua estremecida
E loura namorada — a Poesia velha!
Ela aí está. Vejo-a bem por cima do teu ombro
A fitar-me raivosa e tímida e vermelha!
Descansa! Paro aqui p’ra não causar-lhe assombro!
À Alfredo Falcão
Um dia bom de verão,
Largo, purpúreo, ridente.
Enquanto o sol — um leão
Do etéreo areal candente —
Mergulha a pata sanguínea
Na fluida entranha do espaço,
— Manso leão da gramínea
O inseto põe no regaço
Da flor — a garra franzina.
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Também dentro em mim, enquanto,
Da Ideia sob a luz fina,
Pesa-me o pulso de um canto
Leonino, estoico, moderno;
Às vezes — vespa ignorada —
Um Verso plácido e terno
Ferra-me a unha rosada!
(Ao dar-se à cova o cadáver de Manoel Francisco de Almeida)
Adeus, ALMEIDA. Tu foste um rebelde. O meio
Esmagou-te. Pois bem. Nós hemos de vingar-te.
Havemos de te honrar seguindo-te os exemplos,
Havemos de dizer teu nome em toda a parte!
Não tiveste Latim, nem bênçãos e nem rezas!...
Podes ir muito bem para o inferno...
Agora
Vão chover sobre ti saudades dos amigos
E todas as manhãs, o pranto azul da aurora!
A Aureliano Barbosa,
Argimiro Galvão,
Homero Baptista,
Germano Hasslocher.
Vistam de sol a Terra dos pampeiros,
A Pátria das savanas e gaúchos!
Bate-lhe à porta em frêmitos guerreiros
Uma data que tem, como os repuxos
Onde a luz, brinca, iriações profundas!
Ergue-se ao sul, a vasta revoada
Das memórias enérgicas, fecundas,
Que 35 argamassou!...
Na estrada
Nova e pequena e triste e sinuosa
Da nossa história, avisto agora o rasto
Daqueles guascas de alma boa, estuosa,
Que souberam sonhar porvir mais vasto
Do que o de hoje, p’ra a nativa terra!
Sinto passar sobre o Brasil o sopro
Que toda asa ao distender-te encerra,
E ouço o bater sonoro de um escopro!
É a asa da Ideia que se atira
A procurar consolações nos mortos...
É o escopro do Povo, que revira
Os túmulos dos velhos, p’ra ter portos
Onde ele lance a âncora da Crença!...
— Portos aonde algum caráter são,
Tenha prendido o áureo galeão
Da liberdade acrisolada, intensa!
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Pátria! Quem hoje olha o Presente impuro,
Só do Passado espera o teu Futuro!
(A propósito da recitação do Melro)
I
Não conheci o melro... Mas, decerto,
Quando ele pateava o padre cura,
— O padre mal desperto —
Com sua voz intérmina e segura
Varada de sarcasmos perfurantes,
Com as gargalhadas ríspidas, vibrantes,
De seu canto maroto;
Quando dava assovios de garoto;
— O melro certamente
Não sabia timbrar o riso quente,
Demolidor, mordaz,
Que tu tens, nas comédias joviais!
II
Quando o melro sombrio e lacrimoso
Trágico e paternal,
Sob o vago luar largo e nervoso,
Apostrofava o céu, a Noite e o Mal
Por lhe terem roubado os pequenitos;
Quando ele dava os lancinantes gritos
Filhos da sua dor;
Quando dizia o seu profundo amor
Louco, a sentir em roda a Natureza,
— O melro com certeza
Não sabia chorar como tu choras,
Comover, como tu, por largas horas
Quando, no drama, o rosto de criança,
Mostras-nos, a ferir como uma lança!
Alfredo Borges
Era um herbário chic: um mimo de amador,
Artístico, ideal, singelo e todo cheio
Desse perfume bom, magnético, incolor,
Que tem a rosa murcha ao morno sol d’um seio,
Ou que tem um antigo e místico amuleto,
Guardado n’um cristal catita e facetado!
Um recueil à Goncourt. Um herbário lavado
Pela brisa ideal que dava ao Capuleto
Um jardim sensual e alegre!... A coleção
Mais viva e mais feliz que a meu olhar jogou
Flora — a deusa pagã que traz em cada mão
O espectro solar feito camélias, ou
O algente e bom luar transformado em um cravo!
— Em síntese: um herbário onde havia de tudo:
O cáctus, o jasmim, o pálido veludo
Da tuberosa, e o sangue avigorante, bravo,
Da rosa!
E eu me cheguei à cesta de mil core
Ao herbário gentil, e pus-lhe em cima a palma
Primeira que encontrei... no chão desta minh'alma...
— A palma o vento a leva e hão de ficar as flores!
A Fernando de Castro
Ó genial Cassandra, ó Pitonisa augusta,
Formada de ouro e essência!
Ó brônzea virgem-mãe, bela mulher adusta!
Ó Musa da Ciência!
Tu que ao torso correto e feminil e branco
Ajustas a armadura
Dos guerreiros, e tens no curvilíneo flanco
A arma fina e pura
Que te serve de lira e serve-te de força
Contra Ahriman — o Erro;
Tu que tens a carreira alígera da corça
E músculos de ferro;
Tu, criança e mulher, misto de toda a Graça
E de toda a Energia;
Criatura imortal, grande como uma raça,
Boa como a alegria;
Tu que mostras no corpo a plástica de um Fídias
E que possuis um’alma
Tenaz, eréctil, como um festão de orquídeas,
Verde como uma palma;
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Ó impecável Ser! Tu hás de conduzir
A mim, pelo teu braço,
E levar-me ao lugar onde flameja o Paço
Da Arte do porvir!
Sim. Peço-te, Visão, que apontes meu caminho
Através do Ideal,
A fim de que eu da Ciência austera, do Real
Possa extrair o vinho,
O bom licor azul da nova Poesia,
Generoso e febril!...
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Musa! O olhar viril
Vamos, imerge agora ali, na Filosofia!
A Feliciano Gomes
Duas colinas rasgam-se. No meio
Deita-se o vale, umbroso e virginal.
E sobre aquele exuberante seio
Cai o louro espartilho tropical
Do Sol montante... Em cima da esmeralda
Móvel e doce que a folhagem basta
Opõe ao céu, — o céu azul que escalda
Pousa um olhar de transparência casta.
Destacam-se as colinas dos arbustos
Como dois peitos rígidos, robustos,
Rasgando a seda de um corpete escuro...
E o vale, o vale, como um colo enorme,
Mira orgulhoso a curva filiforme
Do teu colar, um veio d’água puro!
(No álbum de João Freitas, no dia de sua formatura.)
É bacharel, João. Sabes o que é ser isso?
— Ter nada na cabeça, e na gaveta a história
De alguns anos de amor, de sonhos, de derriço,
Com a criança gentil, de face meiga e flórea,
Que se chama Ilusão?... Sabes o que é ser tal?
É sentir que se rompe o alvíssimo cendal
Da divina loucura e da divina crença!...
É depressa avistar a sombra mais que densa
Existente ao redor da sociedade. É ver
N’um instante fulgir e desaparecer
O ideal procurado... É encarar o abismo
Em que se vai tombar, se uma vontade de aço
Não nos beija na fronte e trava-nos do braço
Para nos arrancar ao torpe magnetismo
Atraente e fatal do tábido Interesse!
Ser bacharel? É ter perante nós a messe
Dourada e sensual da vida luminosa,
Em que se sente o odor de um fino formalismo,
E em que a valer se bebe o Xerez e o cinismo
Em cálices fatais, vermelhos como a rosa!
É tudo isso. E vês: A glória está na luta;
No facto de beber a taça da cicuta
Toda, toda, sem ter a crispação do lábio!
Está em não sentir o frígido ressábio
Do desengano atroz e da desdita funda!
* * *
E isso tu farás. Tenho uma fé profunda
Em que hás de sempre ter este ideal — a Ciência
E sempre adorarás a — deusa Independência!
A Artur Orlando
Ideal, hei de alcançar-te,
Hei de prender-te, Ideal!
Teu vulto etereal
Hei de jungir ao d’Arte!
Escusas de bater
A pluma pela altura,
Longe, n’aquela pura
Região, que custa ver
Dos sóis, do incognoscível!...
Como um tupi terrível,
Reteso o arco, atinge
O pássaro no berço
Da nuvem, — tal meu Verso
Há de atingir-te, esfinge!
(Síntese)
A Graça Aranha
O Deus da terra — o Rei, e Deus — o Rei dos céus,
— Este o Proteu divino, o antropomorfo enigma,
— O outro, o sagrado bonzo, o imperial estigma
Agarrado às nações como à grilheta os réus; —
Já não merecem fé, nem oblações, nem preitos!
— Newton tirou a Deus as rédeas luminosas
Com que ele audaz domava o Cosmo, as nebulosas,
E COMTE arrebatou-lhe os rígidos preceitos
Que ele sabia impor às mutações da História!
Assim: n'um Sol, num Povo, há só a trajetória
Marcada pelas leis: — Gravitação, Progresso!
Isso, Deus. Quanto ao Rei, apodreceu de todo;
Revolução, veio Danton... E o lodo
Das ruínas fechou-o em seu sudário espesso!