LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Dies irae, de Emílio de Menezes
Obra de referência:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes,
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.
Dies irae
A tragédia do Aquidabã
I
Na vastidão das águas da baía
Tudo é luz, tudo é paz neste momento.
Límpido, ao alto, nos acaricia
O amplo côncavo azul do firmamento.
Do mar ao céu, é mais profunda a calma.
Quer junto a nós, quer na amplidão remota,
Raramente nos ares a asa espalma.
Solitária branquíssima gaivota.
À barra, um transatlântico que ao mastro
Alto, estrangeiro pavilhão desfralda,
Deixando empós um marulhoso rastro,
Corta, solene, a líquida esmeralda.
Nuns tons leves de nítida aquarela,
Sobre um barco de pesca tardo e lento,
Em forma de triângulo, uma vela
Desenha ao longe o bojo pardacento.
Dentro do porto alteia-se a floresta
Dos mastros com suas flâmulas aflantes,
E, num silêncio abrigador de sesta,
Dormem os transatlânticos possantes.
O sol envolve com seu manto de ouro
As fortes naus afeitas às tormentas,
Que, ora, na quietação do ancoradouro,
Parecem grandes aves sonolentas.
Um que, certo, entre todos é o mais forte,
Parece estar sonhando em pompa t galas,
Num tempo em que ele se entregava à sorte.
Debaixo de uma abóbada de balas!
II
Sonha o grande couraçado,
Sonha o navio, e, no sonho,
Revê todo o seu passado
De heroísmo no mar medonho.
Tem dentro de si, contente,
A marujada louça
Que a glória nunca desmente
Do nome de Aquidabã.
Todo ele é uma alma sonora,
É da pátria a própria imagem,
A dar provas, de hora em hora,
De nobreza e de coragem.
Sonha que a sonhar desperta
Por uma alegre manhã
A uma voz que brada: Alerta!
Marujos do Aquidabã.
III
Ao balouço do mar que aos beijos o rodeia,
Todo em galas desperta o potente navio,
E aquela nobre gente aos perigos alheia,
Presto, provas quer dar de luzimento e brio.
A azáfama começa e em toda a plenitude,
Do vigor de um pulmão, as vozes de comando,
Qual hino triunfal de alegria e saúde
Brotam de um peito heroico os ares recortando.
Vibra em roda o estridor clangoroso de festa.
Move-se lado a lado a marujada ativa.
O grande couraçado orgulhoso se apresta
Pronto para aguardar luzida comitiva.
A hora de levantar e de partir não tarda;
Todo o navio anseia em grande açodamenlo
E em cima, no convés, o sol, de cada farda,
Tira efeitos de estranho e ideal deslumbramento.
Brilham fulvos galões; brilham, presas aos ombros,
Dragonas de retrós metálico de escarcha,
E tudo a refulgir envolve a nau de assombros
Nesse apresto sem par de uma imprevista marcha.
O ouro do fivelame e dos botões rebrilha,
Fulge, dos espadins, o ouro que o punho encerra.
E tudo é o resplendor e tudo é a maravilha
De uma festa de paz na grande nau de guerra!
IV
Ei-lo que chega ao porto entressonhado.
Foi suave a travessia
Mas em todos que estão no couraçado,
Não é a mesma a alegria.
A tarde desce. A noite se aproxima.
Foi todo alegre o dia.
Mas agora, nos astros, lá por cima.
Anda a melancolia.
Não pode ser mais calmo nem sereno
O vir da Ave-Maria.
Para a noite que chega sobre um trenó
De meiga nostalgia:
Foi nas águas do Amazonas
Que aprendi a navegar.
Meu Deus, por que me abandonas
Nas feias águas do mar?!
Ao vibrar melancólico da viola,
Aquele ingênuo canto
De um coração nostálgico se evola
Como sonoro pranto.
Do Pará nas ribanceiras
Deixei meus pais a chorar.
E aqui estou nestas canseiras
Da triste vida do mar!
O céu arqueia protetoramente
O amplo azul constelado,
Como que para ouvir a voz dolente
Que embala o couraçado.
Ai! Maranhão do meu berço.
Para por ti eu rezar,
Tem mais contas o meu terço
Do que vagas tem o mar!
Em torno, à vasta quietacão das águas
Mais o silêncio cresce
E só se escuta este gemer de mágoas
Num sussurro de prece:
Do Piauí nas densas matas
Vivia alegre a cantar
E hoje choro estas ingratas,
Duras tristezas do mar!
Este simples e rústico lamento
Tem talvez a virtude
De espairecer algum pressentimento
Do marinheiro rude:
Ao meu Ceará com certeza
Nunca mais hei de voltar.
Foi meu berço a Fortaleza,
Vai ser meu túmulo o mar!
Seja pressentimento ou desengano,
A meiga singeleza
Daqueles sons, tem do destino humano
A infinita tristeza:
Do Rio Grande do Norte
A terra quer se queimar;
Prefiro na seca a morte,
A morrer dentro do mar!
Destino humano atroz e inexorável
Que nos faz mais escuro
O já negro problema indecifrável
Do insondável futuro:
Paraíba é tão pequena
Que lá só vejo um altar,
De onde uma imagem me acena
Para que fuja do mar!
À proporção que a noite cresce e avança
E a bordo cessa a luta,
Mais nítida e também dolente e mansa
Uma outra voz se escuta:
É nas pedras de Recife
Que as ondas se vão quebrar;
Va Ia ter o meu esquife
Se eu morrer dentro do mar.
Pela tristonha sugestão dest’hora
Se canta o marinheiro
Até parece que o seu canto chora
O dia derradeiro:
No porto das Alagoas
É que eu quisera chegar
Barco, por que não aproas
Para esse lado do mar?!
Nem toda a gente a bordo, aquela toada
Acha que seja triste
E nem vê que a canção da marujada
Em lágrimas consiste:
Saudades de meu Sergipe
Nunca mais hei de matar!
Que a morte não se antecipe
Nestes perigos do mar!
Essa meiga e sutil melancolia
Que o marinheiro invade,
Não turba dos convivas a alegria
Nem a solenidade:
São Salvador da Bahia,
Quando ouço de ti falar,
É tanta a minha alegria
Que esqueço a vida do mar!
O couraçado em júbilos se expande;
De orgulho é todo cheio,
Pois o que a armada tem de nobre e grande
Ele traz em seu seio:
O Espírito Santo agora,
Tão perto parece estar,
Vamos marujos embora;
Nunca foi tão feio o mar!
Traz a seu bordo alegres e contentes
E de alma descuidada,
Moços, velhos, de todas as patentes.
A flor da nossa armada:
No meu Rio de Janeiro
Eu gosto de repousar
E o repouso derradeiro
Terei no fundo do mar.
Traz da marinha a afirmação futura
Nos moços aspirantes,
E afirmações antigas da bravura
Nos velhos almirantes.
Meu prazer no ancoradouro,
Niterói era avistar;
Agora parece agouro,
Nada vejo neste mar!
Jovens noivos por quem peito ofegante
De noiva espera,
A vida lhes parece neste instante,
Eterna primavera!
Do Tietê na corrente
Em S. Paulo ia pescar.
Hoje um monstro de repente
Pode pescar-me no mar!
Não lhes perturba a toada merencória
Que embala a nau festiva,
Sonhos, desejos, esperanças, glória,
O que a alma lhes aviva.
Eu nasci serras arriba,
Não nasci para nadar.
Quem me dera Curitiba
Galgar a Serra do Mar!
Dos esposos, pais, passa despercebida
A lânguida dolência.
Mal fizeram do lar a despedida.
— Era tão curta a ausência!
Nasci em Santa Catarina
Vendo o oceano a me rodear.
No Desterro tive a sina
De um desterrado no mar!
Chegam novos convivas que o descanso
Vêm procurar confiantes.
E desta enseada o plácido remanso
Acorda por instantes.
Minha pátria é a liberdade,
O Rio Grande é meu lar;
Preso nem na imensidade,
Nem no céu e nem no mar!
Vibra na noite clara e constelada
Um som límpido e agudo;
D’almirantes festeja-se a chegada,
Reina a alegria em tudo.
Fecunda terra mineira,
Tu, que tudo podes dar,
Dá-me na hora derradeira
Teu seio longe do mar!
Saudações, cumprimentos, cortesias,
Clarins, vozes de orquestra,
E em meio de ruidosas alegrias
Animada palestra.
Em Goiás de serra em serra
Todos sabem avaliar
Que antes ser pobre na terra
Do que ser rico no mar!
Todos conversam tão despreocupados,
Que a atenção ninguém liga
Aos últimos acordes abafados
Da lânguida cantiga.
No meu rico Mato Grosso
Riquezas vivi a sonhar,
E hoje inda pobre a inda moço
Sonho só em deixar o mar!
V
Ao toque de silêncio aquela gente
Por encanto emudece de repente,
Numa concentração de íntima prece,
Da nau em torno o mar profundo e largo
Apenas arfa em plácido letargo
Num carinho que as almas adormece.
Um cuidado de mãe, maior confiança
Ao berço que, solícita, balança,
Não inspira, por certo, nem se iguala
Ao que este couraçado, — berço enorme
Em que da pátria a prole em sonhos dorme, —
Tem do mar que — em redor o beija e embala!
O portentoso mastro em que flutua
Do Brasil a bandeira, à luz da lua
Na superfície d’água se retrata.
— Árvore que sem folhas e sem rama
Heróis abriga à sombra que derrama —
Dele, a altivez, não há poder que abata!
É ali, confiantes neste doce abrigo
Que os moços e que os velhos, de perigo
Ora não guardam a menor ideia.
Avós, esquecem perigosos feitos,
Noivos, só vivem neste instante afeitos
Dos desejos à cálida epopeia!
Súbito, estrondo rápido ribomba,
O grande mastro fragoroso tomba
E um clarão se projeta no infinito!
É o berço nau que se transforma em tumba!
E horríssono o terror que erra e retumba,
Tira um grito de dentro de outro grito!
A alma transviada e de delírios presa
Parece que interroga a natureza:
— Serão castigos, infernais vinganças?
Mas resta sem resposta a atroz pergunta
Na mole férrea que se desconjunta
Sepultando saudades e esperanças!
É inquilina da vida! Desocupe-a!
A morte brada na feroz volúpia,
A devorar a plêiade indefensa!
Nem vê que a tanta gente o luto cobre
Por tanta glória e tanto sonho nobre
Que o mar sepulta com indiferença!
VI
Quando se fecha o mar sobre os destroços
Em cólera mudando a mansuetude,
Surge estranho espetáculo ante os nossos
Olhos pasmados, de um contraste rude.
Os próprios astros em recolhimento
Como que se fecharam comovidos,
E da treva do mar ao firmamento
Sobem imprecações, sobem gemidos.
No amplo negror da noite não existe
Um só farol que a luz mortiça alastre
Das águas sobre a tona escura e triste,
No ponto do tristíssimo desastre!
Tudo em redor na escuridão mergulha!
Nem um tênue clarão de luz se eleva,
Não há o luzir de mínima fagulha,
— É um céu de treva sobre um mar de treva!
Nisto das outras naus que perto, ansiosas
O estrondo ouviram, partem com presteza,
Embarcações que correm pressurosas,
Afrontando o Destino e a Natureza!...
Sabem que o grande couraçado ao fundo
Foi ter do fero e tenebroso oceano,
F as horas resumindo num segundo
O tempo vencem num trabalho insano!...
O tempo vencem porém chegam tarde,
Vindo aumentar os trágicos horrores.
Pondo na treva o luminoso alarde
Dos fogos e das luzes multicores!
Vistas ao longe dão a ideia exata
De iluminadas gôndolas de festa.
Mil arco-íris ao fundo o mar retrata
Perto da nau de que já nada resta!
Incompreensível irrisão da sorte,
Ironia tremenda e desumana!
Pescam-se agora as vítimas da morte
A pompa de uma festa veneziana!
VII
Agora, sobre o mar, vogando noite e dia,
Anda de lado a lado em sinistro cruzeiro,
Remígero batel.
Ele é a suprema dor, é a suprema agonia:
Um coração de mãe traz como timoneiro
Sangrando pranto e fel.
Não lhe importa o rugir feroz da tempestade,
Não lhe importa que a vaga o frágil lenho açoite
No pavoroso mar!
Nada lhe importa! Nada! A sós na imensidade
Quer o dia desponte ou quer se estenda a noite,
Há de eterno vogar!
Voga! É a viagem sem fim para o desconhecido!
Voga! É a inútil pesquisa, é a infrutífera busca
Que dá o materno amor!
Voga! Ê a procura em vão, no oceano desmedido!
Voga, sem nada ver que o pranto o olhar ofusca!
Voga Batel da Dor!
VIII
Oh! síntese de amor e de piedade!
Maravilhosa força que o destino
Reges da pobre e triste humanidade,
Onde a grandeza do teu ser divino?!
Onde o supremo bem que é o nosso abrigo?
Onde a grande doçura proclamada?
Tu que és perdão e que não és castigo,
De uma mãe fazes uma desgraçada!
Como queres, Senhor! que a minha crença
Não vacile, não trema, não sucumba,
Quando nem mesmo nesta dor imensa
Posso beijar de um filho a humilde tumba!
Não! Piedade não és, não és doçura.
Tu que roubas o que nos é mais caro,
E entregas uma pátria à desventura,
E deixas uma mãe ao desamparo!
Maldito seja o nome teu, maldito!
Porém perdão, Senhor! Eu me consterno.
Perdão para a inconsciência deste grito,
Profundo e grande como o amor materno!
Não vos amaldiçoo, nem blasfemo,
É que a minha razão está em discórdia
Com esta dor e este sofrer supremo,
Deus de piedade e de misericórdia!
Deus de piedade e de misericórdia!
Se a justiça do céu de mim se esquece
E me abandona, meu Senhor, acorde-a
Ao menos esta derradeira prece!
Ao menos esta derradeira prece
Sirva para atenuar minha tortura.
Deus! uma mãe por certo bem merece
Poder a um filho dar a sepultura!
Poder a um filho dar a sepultura
É já um consolo à dor, entre os horrores:
Para uma mãe é quase uma ventura
Ir cobri-la de lágrimas e flores!...