Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Família Agulha, de Luís Guimarães Jr.


Edição de base:

A Família Agulha, Organização, edição e notas de Flora Sussekind.

Rio de Janeiro: Vieira & Lent; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2003.

ÍNDICE

CARTA DO AUTOR A JOAQUIM SERRA

CAPÍTULO I — UM PÉ

CAPÍTULO II — A VIÚVA LAMPREIA

CAPÍTULO III — A CASA DA RUA DAS MARRECAS N. 27X

CAPÍTULo IV — VIVA A CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO V — AS LISTAS DE ANASTÁCIO AGULHA

CAPÍTULO VI — PRELIMINARES

CAPÍTULO VII — QUANTOS VOTOS TEVE O SR. LEOCÁDIO DA BOA-MORTE PARA DEPUTADO GERAL PELO MUNICÍPIO NEUTRO

CAPÍTULO VIII — DIABRURAS DE BERNARDINO ANTES E DEPOIS DE VIR AO MUNDO

CAPÍTULO IX — O SONHO DOS TRÊS

CAPÍTULO X — A CAÇA AO PADRINHO

CAPÍTULO XI — A CAXUXA!

CAPÍTULO XII — NÃO HÁ TÍTULO QUE SIRVA

CAPÍTULO XIII — ENTRAM EM CENA O PADRINHO, O CASAL AGULHA, OS VIZINHOS, O MENINO, O PROCURADOR, O AUTOR, E NÃO SEI MAIS QUANTOS PERSONAGENS ILUSTRES

CAPÍTULO XIV — O DIA DO BATIZADO

CAPÍTULO XV — ONDE SE CONTA TUDO QUANTO ACONTECEU NA IGREJA, EM CASA, NO CAMINHO E EM OUTROS LUGARES MAIS. OS CONVIDADOS SENTAM-SE À MESA

CAPÍTULO XVI - SENTAM-SE AFINAL À MESA

CAPÍTULO XVII - BERNARDO JOSÉ ENTRA EM CENA

CAPÍTULO XVIII - COMO ACABOU A FESTA

CAPÍTULO XIX - PRIMEIRAS E SEGUNDAS LETRAS

CAPÍTULO XX - A PRIMEIRA LIÇÃO DE SEGUNDAS LETRAS

CAPÍTULO XXI - UM ANÚNCIO EXPRESSIVO

CAPÍTULO XXII - DUAS SORTES GRANDES

CAPÍTULO XXIII - EUFRASIA SISTEMA MORRE NESTE CAPÍTULO

CAPÍTULO XXIV - O EPITÁFIO

CAPÍTULO XXV - MUITOS ANOS DEPOIS

CAPÍTULO XXVI - RECONHECIMENTO TARDIO

CAPÍTULO XXVII - O NEGÓCIO COMPLICA-SE

CAPÍTULO XXVIII - DE QUE É CAPAZ UM CORAÇÃO DE PAI

CAPÍTULO XXIX - DOIS CHEFES DE FAMÍLIA

CAPÍTULO XXX - O PRIMEIRO DEGRAU DO CRIME

CAPÍTULO XXXI - O PUNCH VIOLETA

CAPÍTULO XXXII - UM CRIME NÃO PREVISTO NO CÓDIGO

CAPÍTULO XXXIII - COUSAS QUE SEMPRE ACONTECEM

CAPÍTULO XXXIV - A CAXUXA TRIUNFA

CAPÍTULO XXXV - FELISBERTO CANUDO DE OLIVEIRA CONCEIÇÃO ALBUQUERQUE E MELO EM APUROS

CAPÍTULO XXXVI – CONCLUSÃO

 

Carta do Autor a Joaquim Serra

A EX.ma. Sra. D. M A. G

Os momentos rápidos que V. Exa. puder furtar ao esplêndido burburinho dos salões, onde é rainha; os poucos instantes que lhe deixarem vagos os passeios, as reuniões elegantes, os caprichos irresis­tíveis da moda soberana, as raras horas, enfim, que lhe dispensar o mundo delicioso e tentador, de que é V. Exa. o mais imponente ornamento, consagrá-los-á, não é verdade, à leitura fugitiva destes folhetins inúteis e leves como a folha. que o vento leva?

São histórias para gente alegre.

Creio que acertei mais ou menos com o sentimento que acom­panha o século e a sociedade. A criatura humana ri de tudo hoje, e em tudo encontra como que o eco da gargalhada parisiense, que na asa da moda atravessa vibrantemente o mundo!

E depois, estes folhetins — quem melhor poderá julgá-los do que V. Exa.? Estes folhetins têm o grande mérito de se fazerem esquecer depressa no borboletear prodigioso da imprensa diária; sem deixarem sequer na passagem o traço do aerólito, ou a espuma da vaga que se desfaz com a brisa!

Perdão: esquecia-me de que V. Exa. possui o divino condão de iluminar tudo em que se pousam os seus prestigiosos e admiráveis olhos; e a pedra bruta sob tão vivos raios fulgura como o diamante e torna-se digna de um diadema real!

Os tipos de que lancei mão para esses ligeiríssimos contos são grotescos e ridículos; meio único de divertir o leitor que não gosta de obituários e prefere o riso franco, rápido, efêmero, como o folhetim que lho arrancar dos lábios, à cruel e sensaborona tristeza, que é afi­nal de contas partilha de todos nós, os lidos e os leitores da terra!

O folhetim entra hoje de cabeça alta por toda a parte; é uma espécie de viveur que tem medo de duelos e provoca-os a todo momento, brinca, passeia, conversa e tira pares infatigavelmente para a contradança da alegria universal!

A humanidade pretende não chorar mais, e o grande ruído das orquestras de baile abafa impiedoso um ou outro soluço vulgar, que ainda persiste em aguilhoar a criatura!

Riamos, pois, e acreditemos que todos riem como nós! O século é ligeiro, é vaporoso, é alegre, é sedutor como um diploma, e amável como um... diplomata!

Lembra-se, minha senhora, do dia em que conversamos a respeito de alguns tipos que V. Exa. encontrara na leitura destes folhetins?... Falamos de Gottschalk, da companhia lírica, dos vesti­dos da Imperatriz Eugênia, de penteados à Pantin, das cavatinas em li bemol e dos confeitos da casa Schroeder. O céu estava de uma azulada tranqüilidade, os carros enchiam as ruas, o leque de V.Exa. palpitava como a asa de uma borboleta, e, pouco distante de nós, os músicos alemães executavam filosoficamente um trecho da Semiramis, como se fosse a crítica de razão pura de Kant.

Beijo as mãos de V.Exa.

L.G.-s.-J.-r.

Rio, 1º de janeiro de 1870.

 

I

UM PÉ

Bernardino Agulha nasceu em um dia de chuva. Foi o sujeito mais frio do Rio de Janeiro.

Aos doze anos Bernardino apresentava a configuração de uma velha. Tudo nele denotava uma decrepitude precoce. O rosto era um pergaminho já gasto, os olhos pequenos e gázeos, vaga­mente ensombrados pela fadiga da idade e das vicissitudes, a boca trêmula e uma falta de dentes absoluta. Até os dezoito anos, época em que lhe nasceram os primeiros dentinhos, Agulha ali­mentava-se apenas de papas de leite, sopas, pães-de-ló, e outras iguarias levíssimas.

Era ruivo como um suíço e cabeçudo como dois suíços. Arrastava os ss como o canudo de uma locomotiva, e tinha o maior cuidado com um cacho de cabelos, que a natureza deixou crescer-lhe na nuca.

O juramento mais poderoso para ele era feito sobre esse fragmento de cabelinho ruivo.

Quando entrava em alguma contenda séria, para convencer o adversário, ele tomava a atitude de Catilina às portas de Roma, e estendendo a mão aberta exclamava arrogantemente: — Juro pelo meu cacho!

Não era possível duvidar mais depois de um tão importante juramento.

O pai do meu herói, Anastácio Temporal Agulha, casara-se três anos antes do nascimento de Bernardino com D. Eufrásia Sistema, senhora magra e filha de Macaé. Foi um desses amores quase impossíveis, que atravessam os tempos, de século a século, para desespero dos freqüentadores do Alcazar e dos incrédulos de todos os climas.

Anastácio Temporal, que nunca tivera jeito para cousa algu­ma, teve jeito para amar...

Amor! ciência dos ignorantes! Inimigo da gramática, das leis do orçamento e da câmara municipal! Amor! Eterno peregrino que tanto se aninha feliz na caixa de costura de uma modista da Rua do Ouvidor, como na farda bordada de qualquer ministro possível!

Foi o amor a salvação de Anastácio Agulha.

A primeira vez que ele viu Eufrásia Sistema foi em uma Missa do Galo, na freguesia da Lagoa.

A família de Eufrásia, oriunda de Macaé, viera passar a festa com um parente na Corte, um parente que esteve quase a ser pa­drinho de Eufrásia e a morrer de um antraz em um dos olhos que possuía. Felizmente escapou de ambos os perigos, cabendo a honra do batistério de Eufrasinha a um rico fazendeiro de Macaé, que morreu no dia seguinte do batizado.

Eufrásia, filha quase legítima de Lucas Pereira Sistema e de D. Senhorinha Sistema, era uma moça magra, fina, estreita como o esqueleto de um chapéu-de-sol inglês. A natureza não fora pródiga de encantos para a filha única de Lucas Sistema. Dera-lhe uma cabeça insignificante, um pescoço de milha e meia e um par de pés que podiam servir de pedestal a ela, à família toda, e a algumas tribos mais! Que pés! Onde caíssem era achatação certa!

Eis aí o que são gostos e contrastes no mundo! Foi justa­mente por causa dos pés que Anastácio se apaixonou por ela. Quando nas vésperas do noivado lhe ponderaram os amigos os inconvenientes que sobreviriam do seu casamento com uma moça pobre e feia como era Eufrásia, Anastácio Agulha exclamou estalando a língua de prazer:

— Ela calça 47, Suzer!

Continuemos o gracioso retrato da encantadora Eufrásia. O tronco da menina era um verdadeiro tronco, cheio de anfrac­tuosidades e desproporções gigantescas.

A cintura que começava logo abaixo do pescoço palmo e meio, era tão estreita em demasia que os médicos fizeram um aparelho expressamente para apertá-la e salvá-la de algum des­mancho fatal! Dir-se-ia uma lança espetando qualquer cousa que era a cabeça e o resto!

Havia proibição completa de Eufrásia dançar valsa, pol­cas ou redovas.

— — Não a deixa valsar, Sr. Sistema!

— E por quê, Sr. doutor? Se ela está na idade!

— Por quê? Porque um dia pode ir-lhe a cabeça para um lado, o pescoço para outro, a cintura para...

— Basta, senhor! Que arrepios! Pois não dançará.

A pequena aproximava-se nesse momento.

— Ouviste o Sr. doutor, Eufrasinha? Não dances valsas nunca! És capaz de desmanchar...

— Desmanchar o quê, papai?

— Eu sei li! O pescoço, a cintura, as orelhas, o diabo! É bom não experimentar!

Em um grande baile que deram alguns deputados em Macaé, com a subida do partido ao poder, Lucas Sistema chegou-se ao anfitrião da festa, e mostrando-lhe Eufrásia:

— Eu vou jogar um poucochinho o solo. Não deixe a pequena dançar!

— Como!...

— Contradanças não fazem mal... Porém valsas! Cuidado com o desmancho.

E foi jogar, deixando o outro atônito.

— Desmancho.., que diabo de desmancho será esse?

A família Sistema era pobre. Possuía o suficiente apenas para o chefe não andar de cotovelos rotos e a filha de botins desman­telados. Eu não falei ainda da mãe de Eufrásia, por uma razão muito simples: não a conheci! Nem eu nem mesmo o Lucas Sistema! Mistérios do amor a que as leitoras estão pouco acostu­madas. Calemo-nos, portanto.

Eufrásia ia crescendo pouco a pouco. Lucas Sistema chamou um mestre de piano que não sabia o português, e dando-lhe a entender por gestos expressivos que queria que a filha aprendesse o piano, Mr. Robert Krauss respondeu laconicamente:

Immediatly!

Lucas Pereira Sistema, pensando que o descompunham, des­pediu o mestre antes da primeira lição.

Chamou outro. Veio uma pardinha inteligente que gastava o dia inteiro a fazer prelúdios no piano, de forma que a pequena nunca soube tocar uma escala sequer.

Lucas, furioso, empurrou a mestra pelas escadas abaixo.

Sucedeu a essa um espanhol, que dormia durante o tempo da lição: um dia Lucas Sistema entrando na sala de visitas encon­trou o espanhol dormindo no sofá e Eufrásia sobre as teclas do piano. Desesperado, tirou o chinelo e dando uma forte pancada na cabeça do mestre, acordou-o sobressaltado.

— Fora daqui, ladrão da... minha honra! bradou ele verme­lho de cólera.

O espanhol limitou-se a dizer:

— Pícaro! E foi-se embora.

Assim, a interessante Eufrásia não podia manejar o predileto instrumento das sociedades modernas.

— Estuda por ti mesma, minha filha. Com paciência faz-se tudo neste mundo! Vai batendo com os dedos por aí adiante e verás como o piano grita!

Eufrásia não esteve pelo negócio e deu para fazer flores de lã.

Mas a primeira rosa que lhe saiu das mãos parecia um boi. Lucas, pasmo, virou e revirou três vezes a rosa-boi entre os dedos, e disse alongando o beiço como quem refletiu maduramente:

— Hás de estudar história natural e desenho.

No dia seguinte, um professor do Colégio de Pedro II veio para dar-lhe os primeiros rudimentos de desenho e de história natural.

No desenho Eufrásia fazia uma reta neste gosto, e quanto à história natural não passou nunca da história do tamanduá-bandeira. Dessa vez foi o professor que se despediu ex motu próprio. Quando lhe perguntaram o motivo da retirada, o erudito homem respondeu:

— A tal sujeitinha é estúpida como uma avelã! Antes ensinar a uma ostra! Abre-se com mais facilidade.

Eufrásia começou a atravessar a tentadora quadra dos quinze anos.

— Vamos hoje ao Teatro Lírico, minha filha, disse Lucas Sistema, entusiasmado por uma transação que fizera na Praça do Comércio. Cantam ali hoje a Castra Diva. Manda chamar a madama para te vir enfeitar!

A noite, Eufrásia dependurava-se de um camarote de terceira ordem, e tão contente ficou ouvindo a música, que se pôs a cantar acompanhando o tenor e a prima-dona e a bater palmas furiosamente.

— Psiu! Psiu! sibilavam de todos os ângulos do teatro.

Eufrásia, porém, roxa de inspiração, pôs as mãos na cintura e esganiçou-se cada vez melhor. Era uma gritaria insuportável! O povo reclamava urgentemente silêncio, os permanentes olhavam para o delegado de polícia, o delegado de polícia olhava para o chefe, o chefe olhava para Lucas Sistema e Lucas olhava para Eufrásia, que olhava para a cena, onde os cantores, boquiabertos, olhavam para ela.

— Silêncio!

— Psiu!...

— Não se suporta semelhante algazarra!

— Se está doida, fora!

Lucas Pereira não se pôde conter mais. Ouvindo chamar à filha douda, agarrou no binóculo e arremessou-o à platéia.

— Canalha! bradou ele.

Momentos depois, o chefe de polícia, à porta do camarote, chamava à ordem Lucas Sistema e teve desejos de trancafiá-lo na cadeia. Um amigo, porém, exigiu apenas que a família Sistema se retirasse do teatro, no meio das apupadas do povo.

Os jornais comentaram o episódio, mas como Lucas Pereira Sistema era eleitor do partido que estava no poder, os órgãos do governo acharam-lhe até graça no desfrute.

Dos quinze anos aos dezoito Eufrásia tornou-se mais magra ainda e mais flexível. Em compensação comia por quatro senho­ras gordas.

Lucas Sistema pensou no casamento da filha. Não dormiu três noites, na quarta chamou um caixeiro de loja de fazendas, seu amigo, e propôs-lhe o casamento. O caixeiro recusou. Lucas par­tiu-lhe dois dentes da frente.

Uma família da Lagoa aparentada com os Sistemas, convidou-os a passar a festa em sua casa. No dia 24 às 11 1/2 toda a parentela congregou-se na igreja da freguesia para assistir à Missa do Galo.

Anastácio Agulha li estava também. Viu os pés de Eufrásia e no dia seguinte pediu-lhe a mão. Fez-se o casamento, e quando Agulha abraçou a noiva, em vez de chamar-lhe meu bem, chamou-lhe chorando de alegria:

— Meu pé!...

Foi um dia de prazer indizível.

Entre as recomendações que Lucas Sistema fez a Anastácio Agulha, não se esqueceu da proibição do médico.

— Não a deixe valsar nunca, meu genro! Aquilo para des­manchar-se é em um instante! Tome cuidado!

Anastácio Agulha não tirava os olhos dos pés de sua noiva. — Como são enormemente belos! murmurava ele sufocado de entusiasmo.

Quando se viu só com ela, caiu de joelhos e abraçando-lhe os pés como quem abraça a raiz de uma mangueira:

— Oh! eu morrerei aqui até viver! disse ele atrapalhando-se todo.

Eufrásia sentiu uma dorzinha na cintura.

— Não te desmanches! exclamou Agulha atemorizado.

Estavam unidos catolicamente. E dizem por aí que no Rio de Janeiro quase todo o mundo não tem pés nem cabeça!

Tu desmentiste o adágio, Eufrásia Sistema!

Bendito seja o teu pé!

 

II

A VIÚVA LAMPREIA

Anastácio Agulha considerava-se o homem mais feliz do Império.

O pouco dinheiro que lhe dispensaram algumas pesadas economias de solteiro gastou ele nos arranjos e acomodações da nova residência.

Alugou casa em S. Clemente; mobiliou-a a crédito e com­prou um piano a um alemão seu amigo, com a condição de o pagar quando tivesse o primeiro filho.

Eufrásia tentou de novo aprender a vibrar o ingrato instru­mento! Hoc opus hic labor est. Não passou nunca de um lunduzinho com a mão direita e um dedo da mão esquerda. Para isso foi necessário que um condescendente amigo de Anastácio Agu­lha grudasse vários pedacinhos de papel numerados sobre as teclas em que a rude discípula deveria extrair o cobiçado lundu.

O piano parecia um jogo de roleta 4 – 1, 2, 3, 6, 10, 11, 4 e outros números significativos.

Anastácio para provar à mulher que ela tocava melhor queThalberg punha-se a dançar desesperadamente enquanto o cru­cificado lundu atroava os ares.

— Majestoso, minha filha! Bate! bate bastante no número 6! Era o acompanhamento da mão esquerda.

A vizinhança foi queixar-se à polícia. O jornal do Commercio e o Diário do Rio encheram-se de mofinas cons­tantes, e não havia quem não soubesse da excepcional mania do casal Agulha. Num belo dia de janeiro, Anastácio Agulha achou no corredor uma carta em que se continham as seguintes palavras:

“Ilm°. Sr. – Mande sua mulher tocar lundus na barriga do diabo. É mais proveitoso para ela e menos incomodativo para nós. Não se pode dormir, nem comer, nem respirar, nem bocejar senão a toque de lundus! E que lundus! Ora, meu caro, isso não se atura. Já os jornais falaram, já a polícia intrometeu-se no negó­cio. E nada! Sempre o danado piano a esfolar os ouvidos do pró­ximo e dos... distantes também. Decididamente damos-lhe um tiro, Sr. Agulha de uma figa, se a sua cara-metade não se emendar em vinte e quatro horas. Quem me avisa meu amigo é.

Um já surdo."

Anastácio mostrou a carta à mulher sem pronunciar uma palavra. Desde então o piano serviu apenas para enfeitar a sala. – Nem eu, nem ninguém! disse Eufrásia fechando o berço e o túmulo dos seus malfadados lundus. Aqui ninguém toca!

A vizinhança respirou afinal, e os jornais sustiveram o ímpeto vingativo das mofinas.

No dia seguinte ao da reconciliação de Eufrásia com os ouvi­dos do próximo, uma família vizinha veio visitá-la.

Era a viúva Lampreia, a mulher mais gorda e mais intrigante de S. Clemente. Veio ela, um sobrinho, oficial da guarda nacional, um filho pequeno e duas crioulinhas. Em casa só ficaram o papagaio, o gato e os trastes.

Feitas as saudações do estilo, a viúva abriu o dique da intri­ga: falou de tudo quanto havia e por haver, e da vizinhança só poupou a família Sistema Agulha.

— Ah! minha cara! exclamou ela, dirigindo-se a Eufrásia, não se pode viver mais no Rio de Janeiro! É língua só! A gente dá um passo... falam. Vai à missa, dizem mosquitos por cordas e moscas por arames. Não vai: é o mesmo! Anda bem vestida, toca a falar do vestido! Compra uma casa, querem logo saber donde é que veio o dinheiro. Anda com um parente... dizem... Xi! nem é bom tocar nisso! Enfim! é uma miséria, vizinha! A senhora é filha aqui da Corte?

— Não, senhora, de Macaé.

— Logo vi; eu também sou do Jardim Botânico. Gente da Corte, Deus nos livre! Faladora como ela só! Olhe, eu não sei nem de ti nem de vós! Não me importa a vida de ninguém... Seu mari­do é negociante, vizinha?

— Meu marido é conferente na alfândega.

— Ah! Deve ganhar boas patacas... Essa gente da alfândega! – Qual, minha senhora, não é tanto assim...

— Como! Piano.., trastes de jacarandá... Aquela escrava que eu vejo sempre ir às compras é sua?

— Não, senhora, é alugada.

— Ah! Gosta destes ares de S. Clemente?

— Faz muito calor por cá! Tanto como na cidade. Mas meu marido não achou na ocasião outra casa.

— E paga muito por esta?

— Setenta e cinco mil-réis por mês.

— Oh! para um conferente da alfândega! É verdade que eles têm li os seus ganchos... Faz-me lembrar o que me dizia o defunto Lampreia, que Deus haja: — Ninguém conta um conto sem acrescentar um ponto. Ora, fazem eles muito bem! Hoje em dia, vizinha, não há boa-fé em nada... Diga a seu maridinho que continue; não se importe com as más línguas que falam dele por aí! — Francisco, prosseguiu ela voltando-se para o sobrinho; agora não vás contar a todo gato-sapato o que dizem do Sr. Agulha. Vê lá!

O oficial da guarda nacional afagou o bigode rindo e piscan­do o olho esquerdo.

— Que dizem do meu marido? observou timidamente Eufrásia.

— Cousas do mundo, minha filha. Quem é que escapa? Não faça caso!

— Mas, que é?

— Quase nada; que ele tira mais do que o ordenado da alfân­dega. É o que dizem! Mas quem acredita!...

Eufrásia, apesar de estúpida, tinha bom coração e era ho­nesta. Sentiu-se corar ouvindo as palavras da viúva. A palradora continuou:

— É assim, é! Aqui no Rio não se poupa a uma pulga! Pensa que é só de seu marido que falam? Qual! Pois não ouvi dizer já que seu pai tinha ido ao júri por crime de... de que mesmo Francisco?

— De estelionato.

— De estelionato! exclamou Eufrásia, escancarando os olhos.

— Não faça caso, minha filha, não faça caso! Deixe que falem de seu pai e de seu marido. Não há cavalo sem tacha! Vá conti­nuando a viver sossegadinha que neste mundo é que eles pagam! Olhe, o vizinho ali da frente, o Borges, falava tanto de honras que a filha fugiu antes de ontem com um mascate!

— Com dois mascates, mamãe, eram dois! gritou o filho.

— Pois sim, fugiu, e adeus minhas encomendas! Aquele outro do portão azul e do carro de palhinha deu para jogador que é um Deus nos acuda. A mulher do Pinho que se mudou há dois meses para a casa do canto, anda muito de braço com o Rodrigues, o cunhado, e há quem diga... Tenham paciência, de tudo se dá conta a Deus! Você a que horas janta, vizinha?

— Às quatro, minha senhora. É quando meu marido chega da cidade.

— Olhe, não faça contas ali na venda do Manuel Esquina, que aquilo é uma língua! A que horas vai o Sr. Agulha para o emprego?

— As sete e meia.

— E já almoçado, hein? Almoço de garfo, talvez! Que traba­lho, coitadinha!

— Não, ele toma apenas uma chávena de café com leite; almoça mais tarde na cidade mesmo.

— Em casa de algum amigo. Sempre se acha.

— Não, senhora; no hotel. É por isso que ele está doido por achar casa na cidade.

— Ah! Mostre-me os seus cômodos, vizinha. Eu sou uma curiosa!

— Pois não, minha senhora. Venha.

Eufrásia conduziu a viúva ao interior de sua casa. A temível viúva examinou tudo, analisou tudo, sentiu o peso de tudo, de tudo experimentou a natureza e a qualidade.

— É aqui que guarda os seus vestidos? Bravo! que bonito toucador... Onde mandou fazer este retrato? Não se parece nada com seu marido. Cruz! que olhos!

Eufrásia mostrou-lhe os vestidos.

— São muito baratas estas lãzinhas. Tenho-as comprado para minhas crias a tostão!

— Oh! a tostão?

— É verdade, não valem nada! E estas chitas! Isto desbota que é uma desgraça! Vizinha, já não se usa destes vestidos de seda! São rococó. Ora vejam que gosto de chapéu! Enfim! cada um tem lá o seu paladar! Pensei que o seu guarda-roupa fosse mais bem sortido, vizinha!

— Tenho poucos meios, minha senhora!

— E a Alfândega? Não me estejas a piscar o olho, Francisco! De que fazenda foi o vestido de seu casamento, vizinha?

— De blonde.

— Vejam só! Podendo fazer um bonito toilette de moire. Ah! estes maridos! Que número calça, vizinha?

Eufrásia, dessa vez, não teve ânimo de responder: mostrou-lhe o pé. A viúva Lampreia deu um salto para trás.

— Credo! que pé de homem! Oh! minha filha, isso é molés­tia! Viste, Francisco?

As crioulinhas a esse tempo já tinham empalmado alguns vinténs, que acharam junto ao espelho do toucador.

Foram à sala de jantar.

— Por que não usa de outra louça, vizinha? Esta parte-se num instante. É muito mais barata, mas o barato que não presta é caro! Oh! tem também um gatinho? mas é tão feio! O nosso sim, hein, Francisco? Aquilo é que é, um gato chic! Este pobrezinho está magro que faz dó!

Aportaram finalmente à cozinha.

— Como está maltratada a sua cozinha, minha filha! Eu não era capaz de jantar nesta casa! Fazia-me mal! Que diferença da minha, que dizes Francisco? Limpeza em todo o caso. Sem limpeza não há nada que sirva. Nem lavaram as panelas ainda! Olha o tacho... Meu Deus, vizinha, que desmazelo!

Eufrásia boquiaberta seguia os menores movimentos da viúva.

Nesse ínterim as crioulinhas escondiam no lenço uma faca de prata, um quebra-noz, um paliteiro, etc., tudo o que encon­travam à mão. O oficial da guarda nacional de quando em vez animava-as ao ataque.

Às três horas e meia despediu-se a viúva Lampreia de Eufrásia.

— Até mais ver, disse ela apertando-lhe a mão. E afastando Eufrásia que ia dar-lhe um beijo:

— Desculpe, minha filha. Depois de certo juramento que fiz não beijo ninguém! É uma promessa. Lembras-te, Francisco?-Quando Anastácio Agulha voltou da cidade, encontrou a mulher com a cara amarrotada e aborrecida.

— Que tens, minha vida? perguntou-lhe carinhosamente. Alguma dor de dentes talvez!

Eufrásia contou tudo o que se passara durante a visita da viúva Lampreia. Anastácio franziu o nariz.

À hora do jantar uma das negrinhas da viúva trouxe um bilhete a Eufrásia.

Dizia o bilhete:

"Minha rosa,

Espere-me hoje para tomar chá. Hei de levar-lhe uma amiga que é uma pombinha sem fel: parecemo-nos uma com a outra como dois dedos da mão direita. O Francisco leva também um amigo para apresentar.

Sua vizinha e amiga

Lampreia."

Ao ler o bilhete que Eufrásia lhe entregara, Anastácio mudou de cor cinco a seis vezes. Depois de retirar-se a criouli­nha, correu à secretária, abriu-a e tirando a tal carta anônima, que lhe haviam escrito durante a quadra dos lundus, comparou-a ao bilhete recém-chegado.

— Irra! uivou ele. Achei afinal a fúria que me escreveu os tais desaforos. Desta feita não me escapa!

— Que vais fazer? indagou Eufrásia atemorizada.

— Não te importes! É preciso que saibam o que é a ponta de um Agulha!

À noite, Anastácio chegava de minuto em minuto à janela, dirigindo as vistas para o lado da casa da viúva. Eufrásia trêmula não perdia um gesto, um movimento do consorte.

Numa das vezes Anastácio desprendeu um eufônico — ah! e correu para a porta da rua.

Vinha chegando a comitiva Lampreia.

Na frente a viúva cada vez mais gorda; ao pé dela a amiga: atrás o oficial, o amigo do oficial, o primo e as duas crioulinhas, munidas dos competentes lenços saqueadores.

Quando a viúva Lampreia ia a cumprimentar Anastácio Agulha, ele, sacando do bolso a carta anônima, começou a esfregá-la com toda a força no nariz da matrona.

— Sabes o que é isto, desavergonhada? Atrevida! Intrigante! Feiticeira do diabo! Ainda tens ânimo de pôr as patas em minha casa, língua de cascavel?

A viúva recuava gritando e Anastácio, avançando sempre, dava mais energia às terríveis fricções.

— Francisco! bradou ela sufocada.

Anastácio agarrou-lhe nos cabelos e arrancando-lhe um dos bandós, arrumou-o em cheio nas barbas do militar.

O oficial quis avançar, mas Anastácio metendo a mão no bolso do paletot:

— Um canivete! berrou ele espumando. Um canivete! que eu quero dar cabo de todas estas viúvas, de todos estes oficiais, de todas estas negrinhas, destes diabos todos!

O medo prega asas nos pés dos mais covardes. O bando dis­persou-se como por magia. A gorda viúva deitou a correr diante de todos, deixando pelo caminho xale, sapatos, brincos e o segun­do bandó. O oficial ia atrás sem chapéu; a amiga da viúva entrou

em um ônibus que passava; o amigo do oficial escondeu-se em um corredor e, fechando a retaguarda, voavam as duas negrinhas uivando desesperadamente.

 

III

A CASA DA RUA DAS MARRECAS

N. 27x

Depois do ataque geral à tribo Lampreia et reliqua, Anastácio Agulha tratou de mudar de casa às pressas. Transportou a família para a cidade, onde alugou um mesquinho prédio, que fez as delícias de Eufrásia pelo simples fato de estar longe da língua e dos olhos dos Lampreias.

A fatalidade, porém, que teimava em perseguir o pobre Agulha, fez que o ministro mandasse passar revista nos negócios da alfândega e Anastácio sem mais cerimônia foi posto no olho da rua por motivos de... esperteza particular e de conveniência pública.

O homem tornou-se sombrio. Passava os dias a ler Os lu­síadas e a ensinar palavras francesas ao papagaio da casa. Andava triste,. pálido, cadavérico como se estivesse já com os dois pés na sepultura.

Eufrásia tentava debalde consolá-lo. Anastácio não era capaz de pronunciar uma só frase de carinho conjugal. Contemplava a mu­lher longamente e despedia um profundo suspiro de hora em hora.

— Consola-te, meu amigo; disse-lhe um dia Eufrásia com a voz doce e os olhos cheios de lágrimas.

— Sabes qual é a nossa posição? perguntou ele com a voz trê­mula e soturna. É igual à dos náufragos de Medusa... em terra. Os cobres estão acabando, acabando, acabando. Eu nem sei onde irá parar isso tudo!

Ela calou-se. Passava um realejo pela rua tocando o final do Trovador. Foi mais um incentivo para a tristeza dos dois. Puseram-se ambos a soluçar desesperadamente.

— Aquela Lampreia do diabo foi a causa das minhas des­graças, exclamou Agulha entre os soluços, foi ela, não tem que ver! É prima do inspetor da alfândega e...

— Não te importes, Anastácio, Deus é grande e havemos de sair desta embrulhada.

— Feliz criatura! murmurou Agulha, erguendo os olhos ao céu; ela chama a isto embrulhada!

Bateram à porta. Eufrásia correu a abrir. Era um moleque de libré, portador de uma carta perfumada a Eufrásia Sistema Agulha.

Os dois cônjuges leram o que se segue:

"Eufrazinha,

Uma amiga sua de colégio, que jamais nunca dechou de te querer-te munto, tendo xegado hoge de Macaé, partissipa-te que mora na corte — Rua das Marrecas, numbro 27, e que em Breve hiri dar-the o abrasso mais appertado. Esthou cazadda e filliz.

Joaninha Sacramento."

Vieram novas lágrimas aos olhos de Anastácio Agulha.

— Má ortografia, mas bom coração! disse ele, beijando a carta. E atirando-se aos braços do portador estupefacto:

— Dá este abraço nela, ouviste? Não! no marido! Aperta-o bem! Dize-lhe que eu vou, que ela vai, que tu vis, que nós vamos todos, ouviste? todos!

O moleque olhava para ambos, sem compreender uma efusão tão fora de tempo.

Eufrásia cortou a crise com toda a galanteria.

— Meu filho, diga a Joaninha, que eu e meu marido iremos hoje à noite à sua casa apresentar-lhe os nossos respeitos. E chamando o marido à parte:

— Não tens aí dez tostões para dar a este moleque? Se não dermos nada, é feio!

— Pois não, disse Anastácio consigo, dez tostões nesta quadra! E continuou em voz baixa:

— Nem um vintém, meu amor, nem um vintém. Se a ques­tão é dar-lhe alguma cousa, demos-lhe um... pedaço de doce, por exemplo.

— Ora!

— Os pequenos presentes entretêm as grandes amizades, Eufrásia!

— Mas não entretêm os moleques!

Nesse ínterim já o moleque, meio desconfiado, tinha-se posto ao fresco.

— Sabes, Anastácio? exclamou Eufrásia, quando ficaram sós. Esse moleque caiu do céu!

— E por quê? volveu Agulha, que desde pequeno era muito fraco em raciocínios.

— Porque Joaninha sendo minha amiga como é, e como prova, estando casada e rica, poderá salvar-nos da embrulhada em que estamos.

— Não digas — embrulhada — , dize embaraço em que estamos. — Pois sim, embaraço; dá na mesma. Vai fazer a barba, cortar o cabelo, compra-me um par de luvas, traz à noite um carro e quando voltarmos da Rua das Marrecas n. 27 X, verás que seremos felizes e livres desta embru...

— Já sei, já sei. Não digas mais!

Quando Anastácio saiu à rua, ia murmurando consigo entre os dentes cerrados:

— Ah, viúva Lampreia! ainda hei de dar-te uma sova de pau! À porta da casa da Rua das Marrecas n. 27 X, parou às 8 horas da noite o carro que conduzia a família Agulha.

Anastácio procurara no Largo do Rossio, à estação dos veículos, um cocheiro que o levasse a seu destino pelo menor preço e com as mais sérias garantias.

— Um carro que seja respeitável e seguro; um carro grande, muito grande, um carro que imponha!

— Cá está um, patrão. Um carro grande e barato.

— Fechado.

— Fechado! Aqui temos um todo fechado. Venha freguês.

— Queria um carro, patrão? Para onde?

— Rua das Marrecas.

— Demora-se muito?

— Algumas horas apenas. Que tais são os animais?

— Os primeiros bichinhos da terra, meu amo, entre! Anastácio Agulha estava cercado de cocheiros por todos os lados. Era uma gritaria infernal. Cada qual queria ter a honra de empalmar-lhe os magros cobres da viagem.

Daí a poucos instantes, Eufrásia e o honesto ex-empregado da Alfândega paravam à porta da casa n. 27 X à Rua das Marrecas.

Urge observar à leitora que o carro escolhido por Anastácio Agulha era um desses carros-tipos cuja fisionomia vai desapare­cendo pouco a pouco da circulação. O que há de mais velho, de mais fúnebre, de mais fenomenal no universo, dava-se rendez‑vous no carro em questão. As rodas imensas, os cavalos de uma magreza metafísica, o cocheiro mais magro que os cavalos e o resto mais ridículo que o cocheiro. De forma que, quando chegou ao seu destino, já o veículo ia quase em esqueleto; uma parte de sua individualidade ficara pelo caminho.

Vários assovios de garotos acompanharam o fantástico con­dutor dos noturnos visitantes.

Anastácio Agulha, repleto de alegria e de esperança, deu o chapéu-de-sol a Eufrásia e tomou-lhe o leque. Pôs-se a abanar-se sequiosamente, exalando enormíssimos suspiros.

— Que tens tu?

— Que tenho? Tenho que a tua amiga de escola há de salvar­-nos de toda esta miséria. Há no meu coração como que um vago pressentimento... Toma o teu leque; dá cá o chapéu!

Depois da competente troca, fez-se silêncio entre ambos. Eufrásia não sabia o que imaginar a respeito de sua antiga compa­nheira de colégio. Como a receberia ela? Bem ou mal? E se por acaso fosse realizada a primeira hipótese, seria delicado de sua parte implorar tão repentinamente um obséquio, declarando ao mesmo tempo a posição falsa em que se achava colocada?

Era este pouco mais ou menos o raciocínio da filha de Lucas Pereira Sistema, quando o cocheiro fez estacar a sepultura, quero dizer o carro, à porta da casa demandada.

Anastácio quis por força abrir o guarda-chuva, ao descerem do carro; porque... podia chover, dizia ele.

Eufrásia pediu-lhe com toda a energia que não caísse no ridículo, e depois de ordenarem ao cocheiro que esperasse, subi­ram as escadas iluminadas.

— Hum! murmurava entredentes Anastácio contando os de­graus, isto está-me cheirando a aristocracia. Já estou com vontade de pôr-me ao fresco.

— Olha, Anastácio, estou arrependida de ter vindo. Estás feito roceiro! Nossa Senhora te valha!

— Bom, bom, nada de brigas. Entremos direitinho.

Bateram palmas ambos ao mesmo tempo. Ia já havendo uma questão entre os dois, quando a porta se abriu de par em par e uma criada apresentou-se esperando as ordens dos recém-chegados.

— Anastácio Agulha! gritou ele.

— Eufrásia Sistema! bradou ela.

Mal soara o último nome, quando se ouviu um grito de prazer na sala, moveram-se as cadeiras com alvoroço e alguém correu à porta chamando por Eufrasinha, que era o gracioso diminutivo da Sra. Agulha.

— Eufrasinha!

— Joaninha!

Abraços, beijos, efusão, eis o que presenciou Anastácio Agulha, que tratava de pôr em ordem um dos seus colarinhos, rebelde como um sans culotte.

— Há que tempo! Não te lembras mais, minha flor? — Muito! Estás mais gorda e mais bonita, Joaninha! — E tu também. Vamos para a sala.

— Aqui está meu marido: Anastácio Temporal Agulha, que te apresento.

— Minha senhora!

— Estimo muito conhecê-lo, senhor... Como é que ele se chama mesmo?

— Agulha.

— Agulha! Que caçoada!

— Como! que caçoada?! volveu Anastácio meio aborrecido.

Então meu nome é...

— Vamos, vamos para a sala.

— Jenny! exclamou a dona da casa dirigindo-se à criada, manda alumiar o meu toilette.

Na sala de visitas estavam virias pessoas reunidas.

— Apresento-te minha antiga companheira de colégio, meu marido: D. Eufrásia de tal... E desprendeu uma gargalhada olhando de lado para Anastácio Agulha, sempre às voltas com o colarinho.

— Minha senhora, dá-me um prazer... um prazer!...

— E seu marido, meu amigo.

Anastácio todo atrapalhado, apertou as mãos do dono da casa, dizendo-lhe nervosamente:

— Há que tempo! Não te lembras mais minha flor? Estás mais gordo!

Todo o mundo olhou-se admirado. Sacramento abriu a boca pasmo, a amiga de Eufrásia recuou um passo, e a própria Eufrásia sentiu-se quase incapaz de salvar o marido do ridículo iminente.

— É assim sempre, Joaninha! disse ela à amiga: Anastácio vendo uma pessoa parecida com um seu companheiro de infân­cia de quem sempre me fala, não pode conter-se!

— Ah! exclamaram todos, satisfeitos com a explicação.

As senhoras, isto é, Eufrásia Sistema e a sua antiga compa­nheira de colégio, retiraram-se para o interior da casa a convite da última.

Anastácio Agulha tomou cadeira entre os respeitáveis tipos, que ocupavam a sala de visitas.

Anastácio não estava tranqüilo; em primeiro lugar conser­vava ainda entre os joelhos o guarda-chuva e o chapéu na mão, virando e revirando os olhos para todos os lados como quem vai ter um ataque apoplético. Sacramento conversava em voz baixa com dois sujeitos, e o bichanara das vozes sussurrava lugubre­mente nos ouvidos de Anastácio, que procurou afinal conversar com um vizinho, homem alto e seco, que se propunha a ler o jornal do Commercio.

— Tenha a bondade de dizer que horas são? perguntou-lhe Agulha.

— Nove, volveu o homem, sem tirar o relógio; e começou a ler.

— Não pode ser, meu caro senhor! não pode ser! E Anastácio encostou a cadeira à cadeira do vizinho.

Sacramento continuava no misterioso entretenimento, e o homem interpelado por Agulha lia com toda a impassibilidade o jornal.

Anastácio Agulha ergueu-se, e sempre armado do guarda-chuva e do chapéu, começou a passear pela sala.

Nesse ínterim a palavra — eleições— pronunciada por Sacramento, fê-lo estacar de súbito.

— Ah! bradou Anastácio com a voz sonora e os olhos ardentes como brasas, desta vez os senhores do governo hão de passar bons bocados à minha custa!

Sacramento voltou-se rápido, os dois misteriosos persona­gens levantaram-se, o jornal do Commercio desenrolou-se nas mãos do sujeito seco e alto.

Sacramento correu a Agulha e apertando-lhe vivamente as mãos:

— Mas meu amigo! por que não me falou há mais tempo?

É nosso desejo único fazer baquear a urna ministerial.

— Justamente! afirmaram os três.

— Os senhores não conhecem a minha vida! interrompeu Anastácio Agulha, progressivamente excitado. O ministro Lampreia...

— Lampreia!

— Lampreia!

— Quero dizer, o ministro a pedido de uma tal Lampreia do inferno, arrancou-me da alfândega onde eu ganhava o pão com o suor do meu rosto. Intrigas, calúnias, enredos, infâmias, de tudo lançaram mão para que eu me visse face a face com a miséria e com o desespero no... enfim com o desespero em toda a parte. Quero vingar-me de uma maneira vertiginosa!... E arrancando o jornal das mãos do homem seco e alto, rasgou-o em pedacinhos.

— Que é isto, senhor?

— Isto é a indignação, senhor! Rasguei o seu jornalzinho como em breve rasgarei as cédulas ministeriais, senhor!

— Meu amigo! exclamou Sacramento abraçando-o deliciosa­mente. Os outros apertaram-lhe as mãos, até o sujeito alto e seco, que já cuidava de si para si que Agulha padecia do cérebro.

Restabeleceu-se o sossego geral, e Anastácio Agulha ocupou lugar entre Sacramento e os outros.

— A nossa idéia, meu amável?...

— Agulha.

— Agulha, principiou o dono da casa, é dar um furo no go­verno desta vez.

— Dois furos! volveu Anastácio, olhando furiosamente para o leitor do jornal do Commercio, que recuou a cadeira.

— Havemos de lançar por terra os candidatos do ministro. Dinheiro não falta, graças a Deus! Ora diga-me: quer ser o cabeça do projeto? Dou-lhe, damos-lhe plenos poderes.

Anastácio não respondeu. Os dois personagens a um sinal de Sacramento tomaram os chapéus e despediram-se. Ficou apenas o homem do jornal rasgado.

— As condições, meu caro Agulha, são as seguintes: abro-lhe a minha burra, e o senhor poderá esgotá-la até o último vintém. Estou de ponta com o Dr.***, do governo, e quero em seu lugar pôr na câmara temporária...

— Quem?!

— Este senhor...

O homem alto e seco arregalou o olho com medo de algum desacato da parte de Anastácio Agulha. Este, porém, fez-lhe um cumprimento adorável, e depois de consertar o colarinho:

— Pronto. O senhor sairá deputado, e se for preciso eu tam­bém e mais algumas pessoas!

— Não; há de ser só o nosso Leocádio da Boa-Morte.

— Pois Sr. Boa-Morte, volveu Agulha, conte que está na câmara. Apronte o discurso, e verá para quanto serve a vontade enérgica desta pessoinha que aqui vê.

— Agulha, replicou Sacramento com toda a familiaridade, vem cá amanhã que eu te proporcionarei os primeiros meios. Tudo o que quiseres terás, e quando Leocádio sair deputado tu serás nomeado inspetor geral da Alfândega.

— Boa-Morte! exclamou Anastácio abraçando o homem seco, hei de passar por cima do teu cadáver... não! quero dizer: hão de passar por cima de meu cadáver, para arrancarem-te das mãos a vitória das urnas!

Leocádio da Boa-Morte sentia as pernas tremerem-lhe como os caniços batidos pela tempestade.

 

IV

VIVA A CONSTITUIÇÃO

— Sabes de uma cousa, Eufrasinha? Estás mais magra.

— E tu mais bonita!

— É verdade que a magreza diz-te bem. Ficas mais mimosa. Olha, minha filha, não há quem embirre mais com a gordura do que eu. No dia em que ficar gorda demais, mato-me.

— Lembras-te do colégio ainda?

— Sempre. Aquelas conversas da noite!

— E a inspetora das maiores? Que sujeitinha antipática!

— Sabes que a Antoninha dos caracóis se casou com o primo?

— Sim? Ora, até que afinal! Mais de uma dúzia de bolos apanhou ela por causa do noivo!

— A porteira morreu.

— Coitada! Olha, Joaninha: eu não tinha raiva dessa pobre mulher, não! E depois quando se é criança...

— Quanta asneira, hein?

— É verdade! Mas conta-me como foi o teu casamento, menina, que estou doida por saber!

— Ora, nem vale a pena!

— Gostas de teu marido?

— E tu, gostas do teu?

— Assim, assim!

— Eu também, assim, assim. Contanto que ele não me abor­reça, tudo vai bem.

— Pois eu ando triste, sabes?

— E por quê, meu bem?

— Estou quase na miséria!

— Que caçoada!

— Palavra!

— Mas, por quê? Nossa Senhora!

— Por intrigas! Anastácio perdeu o lugar que tinha na alfân­dega, e estamos agora em bons lençóis!

— Tudo se arranja! Verás!

— E como?

— Deixa por minha conta! O que é necessário é que teu marido saiba alimentar a mania do meu.

— Não me dirás?

— Amanhã. Espera-me.

— Ah! Joaninha! Como as cousas mudam!

— Não te importes! Tudo se arranja, minha jóia. Verás!

Eram as frases trocadas na alcova da Sra Sacramento.

— Oh! já é muito tarde! exclamou Eufrásia descansando os olhos em um relógio que lhe estava fronteiro, uma graciosa pên­dula de porcelana, representando Cupido e Vênus com as compe­tentes flechas.

— Qual! Daqui a pouco vamos tomar chá!

— Não posso, Joaninha. Tenho de estar cedo em casa.

Era ainda a adorável vergonha da pobreza que lhe arrancava essas palavras.

— Leva este frasquinho de sândalo.

— Ora.

— Toma, meu bem! E esta almofadinha. Sabes quem ma deu? A Pontes de Maceió. Guarda-a, anda, leva para casa.

Minutos depois, chegaram as duas amigas à sala de visitas.

Anastácio Agulha estava na maior intimidade com Sacra­mento. Corado, alegre, feliz, o marido de Eufrásia cuidava-se nesse momento o primeiro homem da terra.

Quando as duas senhoras entraram, houve uma forçosa vari­ante na conversação.

Depois de trocadas mais duas ou três palavras, Anastácio Agulha, a um movimento expressivo de Eufrásia, levantou-se e estendeu a mão ao dono da casa.

— Como! Já?

— Já, sim, meu amigo! É urgente, é fatal, é irremediável a nossa partida!

— Esperem ao menos, para tomar chá.

— Perdoe-nos, Sr. Sacramento, aventurou Eufrásia com o seu melhor sorriso, não faltará ocasião para...

— Vai, ingrata! volveu Joaninha beijando a amiga. Felizmente o ano não acaba hoje!

O Sr. Leocádio da Boa-Morte, sem saber o que queria dizer, cortejou três vezes consecutivas o casal Agulha.

— Com que então, disse Anastácio estrangulando entre as suas a mão de Sacramento, amanhã!

— Sim, amanhã. Ou eu vou li, ou...

— Não, senhor, cá estarei a horas convenientes. Havemos de arrebentar a urna se for preciso.

— É mania de meu marido! replicou a dona da casa sorrindo sempre, não pode deixar um momento de tratar de política!

Depois das saudações do estilo, o casal Agulha dirigiu-se para a escada. Anastácio ia de uma maneira difícil de se conceber no estado natural.

Inchava as bochechas soprando com toda a força, e abanava-se ora com o chapéu, ora com o guarda-chuva. Os seus olhinhos saltitantes faiscavam rutilando entre as pestanas ruivas como as pupilas acesas dum gato maltês.

Sacramento pretendeu dar o braço a Eufrásia, mas recebeu um beliscão formidável da mulher. Leocádio da Boa-Morte a um gesto do dono da casa, arqueou o seu enorme e seco braço de fan­tasma, que Eufrásia aceitou sorrindo. O carro estacionava à porta. No corredor, Anastácio Agulha, cuidando-se só com a mulher, abraçou-a sofregamente incluindo no abraço o pescoço de Boa-Morte, que não ficou satisfeito com a brincadeira.

— Sabes que está tudo arranjado, Eufrasinha?! Até que afinal, seremos felizes! Não há mais receios, não há mais dúvidas, não há mais demissões, graças a Deus! Que boa idéia tiveste, minha pomba! Dá cá um beijo.

E beijou estrondosamente as faces da mulher.

Boa-Morte quis subir a escada; já o pobre do homem via o negócio malparado.

Anastácio Agulha segurou-o pelo outro braço.

— E este nosso amigo? Agradeçamos-lhe também! Há de pas­sar dois dias em nossa casa se Deus não mandar o contrário! Hei de sufocá-lo de gratidão! Ah! viúva Lampreia! quero mostrar-te o meu poder nas eleições! Não sei o que sinto, não sei o que sinto, Eufrásia, parece que vou ter...

— O quê? perguntou Boa-Morte assustadíssimo.

— Nada, isto acontece-me às vezes quando estou alegre como agora. Batem-me as fontes, bate-me o coração, as pernas batem-me; fico entre a cruz e a caldeirinha. Resistir a felicidade como a de hoje é dificílimo, meu caro Boa-Morte. Hás de ir conosco para casa hoje. Vamos combinar o negócio, o grande negócio do pleito eleitoral! Verás como entro em funções.

— Mas... aventurou Boa-Morte sentindo desconjuntar-se-lhe a língua.

— Hás de vir! replicou Anastácio Agulha abanando-se com o guarda-chuva. E tomando-o pela mão conduziu-o ao carro em companhia de Eufrásia Sistema. O boleeiro estava na esquina da rua conversando com alguns colegas. Anastácio progressivamente nervoso, empurrou a mulher e o futuro deputado para o fundo do carro, e saltou para a boléia.

— Que é isso, Anastácio? estás doido?

— Contenha seu marido! articulou Boa-Morte, quase des­maiado de medo.

E fazendo um esforço sobre-humano, passou a perna imen­sa sobre a porta fechada do carro para apanhar o estribo e descer.

O boleeiro nesse ínterim correu para a sua propriedade.

— Cá estou, patrão! Oh! patrão!

— Anastácio!

— Sr. Agulha!

Anastácio já tinha perdido a cabeça. Agarrou no chicote e arremessou-o com toda a força sobre os dois quadrúpedes, o carro partiu a toda desfilada; na janela Sacramento fazia sinais e chamava por Agulha; Joaninha teve um faniquito; Eufrásia puxa­va desesperada as abas do paletot do marido, e Leocádio da Boa-Morte com ambas as pernas fora do carro, gritava como um pos­sesso. O boleeiro deitou a correr atrás acenando com o chapéu; um grupo de curiosos engrossou-se e daí a momentos era uma multidão a todo o galope perseguindo o coche fantástico, que subia pelas calçadas, atropelava gente, quebrava vidraças com a rapidez de uma locomotiva a vapor.

— Peguem nesse carro!

— Não o deixem passar!

O povo é sempre amigo de novidades. Correu de boca em boca que o carro conduzia um sujeito que roubara uma mulher a seu marido. O boato espalhou-se e chegou aos ouvidos de alguns policiais que se puseram a perseguir os fugitivos.

Anastácio Agulha, cada vez mais atordoado e frenético, ani­mava os cavalos que, mais nervosos ainda, iam com patas e dentes rompendo o povo.

— Viva a Constituição do Império! bradava Agulha de vez em quando, pondo-se em pé na boléia.

Dois permanentes a cavalo lograram alcançar o carro. Um deles chegando-se à portinhola, mostrou a espada desembai­nhada a Boa-Morte, dando-lhe ordem de prisão.

— Em nome do chefe de polícia, senhor! Minha senhora, não tenha medo; o seu sedutor vai dormir na cadeia. Boleeiro! pára este carro do diabo ou corto-te as orelhas!

Mas era tudo em vão! Os cavalos voavam, Anastácio entu­siasmava-os sem tomar fôlego, grupos cada vez mais numerosos surgiam de todos os lados; as janelas encheram-se de povo, os gri­tos do boleeiro redobravam de ânsia e desespero, e Eufrásia Sistema, perdendo a cabeça, quis lançar-se do carro abaixo.

Leocádio da Boa-Morte tinha desmaiado.

 

V

AS LISTAS DE ANASTÁCIO AGULHA

É inútil dizer que Anastácio Agulha teve de dar contas à polícia de tudo o que a sua organização nervosa pôs em prática na noite da visita à Rua das Marrecas.

Felizmente, nada ocorreu de desagradável à família Agulha, e principalmente ao futuro deputado da oposição, Leocádio da Boa-Morte.

A polícia, conhecedora da causa, perdoou os efeitos. O que aconteceu apenas, foi que o Sr. Boa-Morte ficou de guarda para com os meios irritados do marido de Eufrásia.

No dia seguinte às cinco horas da tarde, houve congresso político em casa de Sacramento.

As eleições aproximavam-se; urgia pôr em ordem as baterias oposicionistas.

— Meu caro Agulha, você veja o que faz! disse Sacramento, batendo no ombro do seu novo amigo.

— O que eu quero é que não me desamparem. Eu cá sou homem para o que vier. Hei de dar com tudo na casa do diabo!

— Nada de barulhos pelo amor de Deus! ponderou Leocádio da Boa-Morte, trêmulo ainda.

— A política, meu amigo e senhor, exclamou Agulha, pondo-se de pé e estendendo a mão como um tribuno popular, não pode caminhar sem ousadia e atrevimento. Em caso de necessidade em eleições arrebenta-se a urna, esfola-se gente, pega-se fogo na igreja e...

— Tá, tá, tá!... para que tanto espalhafato! observou um cir­cunstante. O dinheiro vale mais que o pau. Espalhe-se dinheiro, e eu lhe direi o resultado das eleições.

— Apoiado! exclamou Sacramento. Espalhe-se dinheiro!

— Pois bem! volveu Anastácio Agulha, estou pronto para o que acontecer. Vocês põem à minha disposição...

— Tudo! exclamaram ao mesmo tempo os interlocutores.

— Entre parêntesis: fiam-se em mim?

— Oh! muito!

— Muitíssimo! observou Leocádio da Boa-Morte, que não perdia um só movimento de Agulha.

— Não se importem com o resto! Garanto-lhes que havemos de ganhar as eleições!

— O que é preciso é pagarmos a alguém que escreva alguns artigos contra a arbitrariedade do governo.

— Eu escrevo.., grátis! exclamou Anastácio. Tenho cá umas palavrinhas que nem o demônio atura!

— Onde há de ser o lugar da reunião geral? perguntou Sacramento.

— Aqui, por exemplo!

— Em minha casa! replicou Anastácio.

— Vi que seja! Amanhã lá estaremos. Você é decididamente o chefe? Está com vontade de meter mãos à obra?

— Decerto! retrucou Anastácio Agulha, com voz tão forte que fez estremecer os candelabros da sala. O nosso Boa-Morte ou vivo ou morto há de entrar na câmara!

— Morto! disse Leocádio da Boa-Morte, olhando de esguelha para Anastácio Agulha.

— Isto é um modo de falar! Havemos de fazê-lo deputado geral custe o que custar!

— Quanto se poderá gastar? perguntou um dos amigos de Sacramento.

— Quase nada, uma bagatela! Em eleições, é a esperteza quem ganha, meu rico senhor!

— Estou disposto a arriscar uns dez contos por exemplo!

— Oh! então, poderemos até reformar o código criminal e dar princípio ao código civil de que se fala já por aí!

— Anastácio, não me poupes; o meu único desejo, Anastácio, é vencer estas eleições.

— E havemos de vencê-las, ainda que o ministério arrebente, a polícia desapareça e a população suma-se até o último gato! Amanhã vou falar a um sujeito que há de pintar o padre na festa.

— Nada de sangue! articulou Leocádio da Boa-Morte.

— E por que não, se for preciso?! bradou Anastácio Agulha com o olhar furibundo.

— Ah! se for preciso, volveu Boa-Morte, já assustado, se for preciso, bem; mas como não é preciso...

— É, é, e é!!! A voz de Anastácio retumbou como um tiro de peça.

Ninguém atreveu-se a contestar-lhe. O próprio Sacramento, batendo-lhe no ombro:

— Faça o que entender, Agulha; você é o homem que eu procurava. Não há barreiras que lhe tolham os passos. A energia é a sua divisa! Atenda ao que diz a sua deliberação e marche para a frente sem susto!

Daí a momentos estavam sós Anastácio Agulha e Sacramento.

 

VI

PRELIMINARES

Houve, como fora determinado, um congresso especial em casa de Anastácio Agulha.

Enquanto estão na sala os incansáveis lidadores da oposição, entremos, eu e a leitora, sorrateiramente, na saleta particular onde Eufrásia e sua antiga companheira de colégio se entregam com toda a efusão à mútua confidência de seus íntimos pensamentos.

— Sabes, Joaninha? dizia Eufrásia, eu fui leviana em dizer-te isso! Há cousas que não se contam... Mas trabalhaste de tal modo com os pauzinhos, que...

A jovem esposa de Sacramento desprendeu uma gargalhada, que se prolongou em repetidos gorjeios.

— És uma tola, minha queridinha! Pois não imaginas o pra­zer que tive com a tua descoberta! É uma lição que aproveitará a Sacramento, e que me deixará tranqüila por algum tempo a respeito de política. Com que então, teu marido... Ah! Ah! Ah!

— Ah! Ah! Ah!

— Ah! Ah! Ah!

E as risadas de ambas confundiam-se de instante a instante.

— E o pobre do Boa-Morte? Bem feito! Estou doida para que chegue o dia!

— Mas, pelo amor de Deus, Joaninha, guarda segredo!

— Deixa estar, não te há de acontecer nada, nem à família. Também perder por perder, antes quero que Sacramento perca com teu marido que com outros, o que já lhe tem sucedido por várias vezes. O que é necessário é que vocês façam a cousa com jeito, ouviste? E vais para Macaé, hein, minha espertalhona?

— Vou. Agulha quer meter-se li na empresa de uma estrada, ou não sei de quê. Além disso, sabes que há em Macaé parentes de mamãe, ainda.

— Eu também quero ver se depois dessas malditas eleições, vou passar alguns dias em Petrópolis. Lembras-te do Joãozinho Pinto, mano da Conceição?

— Lembro-me. Por quê?

— Está no Rio. Foi morar em Petrópolis) É muito simpático aquele rapaz, não achas?

— Acho. Dize-me uma cousa: tu me juras que não contas nada a teu marido?

— Ora, estás feita a mulher do inglês, rapariga? Põe o teu coração à larga; e se em companhia do dinheiro das eleições, levasses Sacramento também, fazias-me um favor imenso.

— Oh!

— Eu perco por ser franca, minha cara. O casamento abor­rece-me extraordinariamente.

— Não tens ciúmes do teu marido?

— Por distração, às vezes. Olha, Eufrasinha, se eu fosse rapaz não me casaria nunca! Tenho uma inveja das andorinhas! como são livres! como voam! como vivem contentes!

A frase terminou por um suspiro pouco lisonjeiro para Sacramento, decerto.

Na sala de visitas, estava com a palavra Leocádio da Boa‑Morte.

— Sim, meus senhores, exclamava o candidato, não é por eu pertencer às fileiras da oposição. que quero animar a revolta e as cacetadas. O cacete e o punhal são armas cegas, e podemos, nós próprios, meus senhores, ser vítimas na confusão geral!

— Ora, qual! Já está o senhor sonhando com bordoada! replicou Anastácio Agulha, meio irritado.

— Não estou sonhando com bordoada, não, meus senhores! mas convém evitar todo e qualquer desvario, promovido pela exaltação e pela raiva do desespero!

— Com licença, com licença, bradou Anastácio Agulha.

A minha opinião é que arranjemos outro candidato; o Sr. Boa‑Morte é medroso como um piegas.

Leocádio da Boa-Morte, sem mudar de atitude e com voz tranqüila e assobiada, prosseguiu, referindo-se às palavras de Agulha:

— Não sou medroso como um piegas, não, meus senhores, sou prudente e respeitador da lei. Que ganharíamos nós, se hou­vesse luta armada junto às urnas eleitorais? O nome de assassinos ou de... vítimas, terminou ele fazendo um esforço; de vítimas, o que seria pouco agradável para mim!

— O senhor há de estar conosco no pagode, meu rico! vociferou Anastácio Agulha, mostrando os dentes a Boa-Morte. Ah! pensa que há de fazer como esses candidatos enluvadinhos, de pince-nez no olho e gravata torcida, que não saem de casa com medo da esfrega? Está muito enganado, senhor! Hei de arrastá-lo...

— Senhor!

— Empurrá-lo! — Senhor!

— Estendê-lo! — Sr. Agulha!

— Então que é isso, meus senhores, disse Sacramento, afas­tando Anastácio que se agarrara frenético ao ombro de Boa-Morte.

Anastácio conteve-se, e pedindo a palavra, exprimiu-se nos seguintes termos:

— Eu, meus senhores, só me meti uma vez em barulho de eleições. Tenho ainda uma cicatriz...

— Uma punhalada, talvez!

— Quase; foi a vareta de um chapéu-de-sol, que nos apertos me entrou pela perna adentro. Jurei nunca mais atirar-me ao combate das urnas! E cumpri a minha promessa, senhores!

Todos curvaram-se respeitosos.

— Cumpri a minha promessa, Sr. Boa-Morte!

Leocádio da Boa-Morte sentia ainda uma pequena dor no ombro. Tomou o partido de curvar a cabeça pela segunda vez, com todo o respeito.

— Hoje, porém, prosseguiu Anastácio Agulha, é um negócio de honra! Hei de afoitamente bater-me com a gente do governo! — Muito bem! apoiaram todos.

— A gente que vai comigo é boa; é gente, Sr. Boa-Morte, que mata por devoção.

Leocádio da Boa-Morte, sem saber o que fazia, apertou a mão de Anastácio Agulha.

— Quero portanto, terminou o orador, que me acompanhem os interessados no negócio. Onde eu morrer os senhores morrerão. — Está dito!

— Amanhã começa a votação dos eleitores. A oposição vence, e na lista dos deputados brevemente o nome do Sr. Boa-Morte aparecerá em primeiro lugar!

— Bravo! exclamaram todos.

Pouco depois, Sacramento entregava a Anastácio Agulha a importância monetária de mais duas listas recebidas.

— Não me poupe, Anastácio. Todo é vencer! No mais não vale a pena falar!

— Conte comigo! Já me chegou a mostarda ao nariz. Ou esmigalha-se a urna, ou o Boa-Morte entra!

— Dá-me um abraço bem apertado, meu amigo. És o primeiro homem do Império!

Quando ficaram sós os dois cônjuges, Anastácio Agulha entregou mais algumas notas do banco a Eufrásia, dizendo-lhe entre dois beijos:

— Vai arranjando as malas, meu bem. Fala com a lavadeira e põe tudo em ordem. O dia das eleições está pintando; já fretei um patacho. Havemos de ir à vela e com vento fresco!

 

VII

QUANTOS VOTOS TEVE O SR. LEOCÁDIO DA BOA-MORTE PARA DEPUTADO GERAL PELO MUNICÍPIO NEUTRO

A oposição perdia terreno. O governo, como todos os gover­nos existentes e por existir, fez estacionar em cada igreja um quar­tel com todas as munições para o combate, distribuindo capangas e espalhando prosélitos, munidos de plenos poderes para o que desse e viesse. Anastácio Agulha, com uma penetração finíssima, corria de instante a instante à casa de Sacramento, ou enviava-lhe boletins neste gosto:

"11 horas da manhã. – Pus para fora a pontapés cinco fós­foros do ministério. Nossa gente tem feito o diabo. Consegui que um dos nossos patuscos votasse seis a sete vezes, graças a chapéus diferentes. Vai tudo de melhor a melhor. Lembranças ao nosso futuro deputado."

Leocádio da Boa-Morte, pouco amigo de enganos em matéria de pancadaria, hospedou-se em casa de Sacramento, onde só o via algum influente na causa eleitoral. O candidato do município neutro, sempre prudente e seguro, não punha pé fora do quarto. Qualquer barulho que ouvia na rua, fazia-o tremer como varas verdes.

Lia e relia a todo o momento os boletins de Anastácio Agulha, decorando mesmo algumas frases a seu respeito. Por exemplo, a seguinte: "...o nosso Boa-Morte fez bem em cá não vir. Houve ainda agora uma esfrega de respeito. Dois afilhados do ministro perderam quatro dentes e ficaram de queixo deslocado..."

É ocioso declarar aos incrédulos que Anastácio Agulha ia ao arraial da peleja unicamente por distração e esperteza.

Convinha a todo o custo fazer persuadir a Sacramento e aos outros, da sua fidelidade e energia em levar de vencida a coorte governista. Os amigos de Sacramento cimentavam de um modo inequívoco o conceito de que gozava Agulha no espírito de Sacramento e do candidato da casa.

— A oposição deve estar firme como um baluarte! diziam eles. Ficamos com uma maioria enorme!

— Aquele Agulha é terrível! ponderava Sacramento com uma convicção profunda.

Durante as noites dos memoráveis dias, reuniam-se todos no quarto em que estava hospedado Leocádio da Boa-Morte, que, para dizermos a verdade, emagrecia a olhos vistos.

Enquanto Eufrásia e a Sra Sacramento riam e cochichavam no interior da casa, Anastácio Agulha contava em altas e retum­bantes vozes as suas proezas do dia.

— Já pus ao pé da urna os nossos homens. Sabem que o mi­nistro me mandou chamar hoje pelo secretário?

— Que está dizendo?

Leocádio da Boa-Morte estremeceu até a raiz dos cabelos.

— É o que lhes digo. Mas eu respondi com toda energia ao portador do recado. Ofereceu-me até dinheiro para que aban­donasse as eleições. Tive desejos de... Os tais senhores ministros não sabem com quem se metem! Felizmente, de hoje em diante parece-me que não tentarão mais ferir a minha dignidade!

— Olhe, por dinheiro ninguém me ganha! exclamou Sacramento.

— Não tenha dúvida! Deixe estar que nada poderá derrotar­-nos desta vez. Os eleitores serão nossos na maioria.

— Quantos do governo, sabe? indagou Boa-Morte, com voz quase ininteligível. – Um, talvez! – Um!

— Um só!

— Se eu o deixar vivo! bradou Anastácio, metendo a mão no bolso.

— Nada de extravagâncias! replicou Sacramento. Que pode fazer uma unidade eleitoral? Causa-me riso até a posição do ministério. Triste gente!

Eufrásia dizia a Joaninha:

— Não queres escrever para Macaé?

— Não, o que eu te peço é que não te esqueças de mim, ingrata!

— Hei de escrever-te sempre, deixa estar!

— Pobre Sacramento!

— Pobre Boa-Morte!

E riam a bandeiras despregadas.

— Batemos ambas as asas, Eufrasinha. Tu para Macaé, eu para Petrópolis.

— Se teu marido estiver pela cousa...

— Minha cara, a mulher é quem faz o marido. Queira eu e tu verás!

— Permita Deus que as façanhas de Anastácio não tenham mau resultado.

— Já te disse que te fies em mim. E depois, meu benzinho, Sacramento é um pouco tolo; não compreenderá a caçoada.

— E os outros?

— Quem? O Boa-Morte? O Cosme? E aquele outro que vem aqui sempre? Aquilo tudo não vale um vintém. São umas Maria, vai-te com as outras. Até é dever de caridade passar-lhes um debique de vez em quando.

— Má!

— Sou esperta apenas, minha feiticeira. No tempo presente, a mulher deve ser um azougue para ser feliz. Tenho-me dado bem até hoje com este gênio! Onde compraste esta lãzinha?

— Na Rua da Quitanda. Achas bonita?

— Muito. Já é o dinheiro de Sacramento que anda no barulho, hein?

— Cala a boca pelo amor de Deus.

— Ora, não sejas medrosa. Meu marido está com a política às voltas. Nem se lembra de nossa existência agora. A política é mais necessária à mulher do que ao homem...

– Que idéia!

— Decerto: porque põe os homens cegos e surdos! Que feli­cidade! Em Petrópolis também haverá eleições?

A serpente da malícia transluziu entre os dentes cintilantes da Sra Sacramento. Eufrásia, sem saber o que sentia, tornou-se séria e curvou a cabeça. Joaninha Sacramento era perversa: a mu­lher de Anastácio Agulha bem o compreendia, e isso causava-lhe desgosto e pena.

— Estás triste?

— Não. Vamos para a sala.

A voz de Anastácio retumbava impertinente e imperiosa.

— Depois d'amanhã, bradava ele, saberemos o resultado de tudo, e eu lhes mostrarei a cara feia que vão fazer os do governo. Não hão de ter um eleitor só!

— Nem tanto.., nem tanto... articulou Boa-Morte.

— Como! Nem tanto! exclamou Agulha batendo com o pé  no chão furiosamente. Só se o senhor tem nos traído!

— Eu?!

— Ele?!

— Oh!

— Há exemplos inúmeros na nossa história política, senhores! É tão difícil não haver um traidor em matéria de eleições, como encontrar-se hoje ainda o bigode de Calígula!

— Há notícia de algum traidor entre nós? perguntou Sacramento.

Leocádio da Boa-Morte olhou para Anastácio Agulha, esperando a resposta, ansioso.

— Não sei, disso não sei eu, palavra de honra!

— Ah! então tudo vai pelo melhor! Havemos de vencer!

— E se assim não acontecer, Sr. Sacramento, nunca mais os senhores me verão!

— Um suicídio!

— Nunca mais! vociferou Agulha enterrando as mãos nos bolsos do paletot. Está decidido. Resistir a semelhante vergonha... nunca!

— Depois d'amanhã, disse Sacramento, convido-os e aos nossos correligionários, para um copo d'água no Hotel Pharoux!

— Dito!

— É impossível que não vençamos. Segundo me disse um sujeito hoje, os votantes mais qualificados são da oposição! Foram palavras do tal Sr. Cosme; um dos freqüentadores da casa, de quem Joaninha falara a Eufrásia Sistema.

— Em tempo de guerra, mentira como terra, ponderou Anastácio, sentenciosamente.

Depois do chá, a família Agulha retirou-se. Eufrásia ia calada e pensativa. Anastácio notou imediatamente.

— Se tens pena de deixar o Rio, minha filha, disse ele um pouco azedo, é melhor descobrir tudo a Sacramento, e irmos morrer no Hospital da Misericórdia. É o que nos falta!

— Perdoa-me, meu amigo; mas o gênio da Joaninha impres­siona-me tristemente.

— E por quê? Não me dirás?

— Porque é uma alma sem dignidade, murmurou Eufrásia com a voz surda e eloqüente, e um coração pervertido. Tens razão, vamos embora! Quando partimos? Ah! se fosse hoje!

— Depois d'amanhã ao meio-dia.

No dia da apuração das cédulas, as janelas abertas da casa de Sacramento aparentavam um ar festivo e resplendente. Sobre os consolos jarros com flores, sobre a mesa licor, charutos e bolinhos do Francioni.

Leocádio da Boa-Morte, encasacado e teso, chegava de minu­to em minuto à janela, olhando do alto da sua candidatura para o universo inteiro. Estava magro, mas estava altivo. A própria magreza dava-lhe um certo ar de cemitério que impressionava.

— O Anastácio não aparece! dizia ele a Sacramento.

— Espera por notícias, talvez. Que dia, Boa-Morte, que dia!

Joaninha Sacramento apresentou-se na sala de vestido deco­tado e coberta de jóias, como quem vai para um baile.

A razão era simples. A antiga companheira de colégio de Eufrásia recebera um cartão de visita de alguém que estava em Petrópolis, e que vinha visitá-la naquele dia.

A uma hora da tarde, chegou atropeladamente um dos ami­gos de Sacramento. O homem suava por todos os poros.

— Fui à matriz, começou ele com a voz entrecortada pelo cansaço, fui à matriz! Fomos burlados...

— Hein?! gritou Boa-Morte, com as pernas bambas e o pescoço sem articulações.

— O Agulha enganou-nos. Não fez nada. A oposição até agora não tem um eleitor... São todos do governo!

— Hein?! continuava Boa-Morte, com o olhar empanado e aboca aberta.

— Estava lá o Agulha?

— Qual! Nem Agulha, nem fósforos, nem capangas, nem o diabo!

Joaninha Sacramento defendeu Anastácio, e o marido foi do mesmo parecer.

— É impossível que ele nos engane! Anastácio não tarda aí! Bateram palmas. Um novo amigo de Sacramento, pálido e com os olhos cheios de lágrimas, exclamou entrando:

— Perdemos tudo! Decididamente estamos derrotados. Nesse momento trouxe um preto do ganho um bilhete de Anastácio.

Sacramento leu:

“Meu amigo:

Fujo com a vergonha que me esmaga e me enlouquece. Eufrásia teve três ataques! Levamos cadilho. A nossa gente desertou toda para os do governo. Não posso mais encontrar-me com o respeitável e hon­rado homem que era nosso candidato. Adeus! lamente o seu infeliz

amigo.

A. T. Agulha."

Sacramento atirou-se sobre o sofá. Leocádio da Boa-Morte deu três viravoltas e caiu sentado no chão.

Os dois amigos e o portador do bilhete olhavam-se boqui­abertos, e Joaninha, sem poder mais conter-se, dava cada garga­lhada que se ouvia no Passeio Público.

Saía à barra nesse instante o patacho que conduzia Anastácio Agulha, as bagagens e a família.

— O vento era fresco e o mar calmo.

Boa viagem!

 

VIII

DIABRURAS DE BERNARDINO ANTES E DEPOIS DE VIR AO MUNDO

São passados três anos, como se diz nas novelas francesas, três anos são já passados na ampulheta do tempo.

Quer V. Exa entrar em minha companhia na casa n. 91 Y, na Rua da Misericórdia? Entremos, sim, entremos nessa casa donde vai partir o entrecho de toda a história maravilhosa que eu ando contando há tempos!

Fiquemos no primeiro andar... Penetremos mansamente como fazem os larápios agora. É aí que eles moram, aí que eles jantam, aí que eles respiram!

— Eles quem?

— Explique-se!

— Nada de descrições!

— Meta-se no assunto, logo!

— Pelo amor de Deus! um pouco de paciência, minha senho­ra! Poupe-me V. Exa o desgosto de haver erguido um momento o véu que encobria as peripécias da existência Agulha... Entremos com cautela na casa n. 91 Y.

Que vemos nós? Uma sala medíocre, mediocremente alu­miada, onde conversam várias criaturas medío.., não! não são medíocres as criaturas que conversam nessa casa! Merecem da análise particular cuidado, e aí vou eu!

A sala é uma sala corretamente quadrada, mobiliada à ame­ricana, com alguns quadros nas paredes e um piano velho como Pôncio Pilatos, oculto sob uma modesta colcha de lã cheia de ramagens pitorescas! Como os demais trastes não fazem grande figura nem na casa em questão nem na história que eu lhes estou contando, entreguemo-nos à revista dos tipos sem mais demora, que não há tempo a perder! Esto brevis et placibilis! O que signi­fica; deixemo-nos de maçada que é o melhor!

Ao redor da mesa postada simetricamente no meio da sala, acham-se agrupadas as seguintes pessoas, pouco mais ou menos do sexo feminino: — uma senhora magra como um idílio, alva e linfática, cuja voz é um assobio e que arregala os olhos de um modo impertinente quando conta qualquer cousa que não vem ao caso. É a Sra. Clementina Arrozal, viúva de um major reforma­do, dada à leitura de almanaques velhos e às histórias dos meni­nos célebres! A virtude para a viúva do major Arrozal é um dever imprescindível, e a palavra — honra — ao passar-lhe pelos lábios, sibila como um furacão no mar alto! É feia, não há dúvida, é uma senhora feia, mas honesta.

Traz constantemente os olhos presos no teto quando não os arregala sobre os circunstantes, e tem a mania de falar num monótono solilóquio, com a vista perdida pelo espaço, como quem se dirige a uma sombra invisível!

— É nesses momentos, diz ela com o seu melhor assobio, — que eu me dirijo ao defunto!

Nunca lhe ouviram depois da viuvez o substantivo marido ou major, era sempre o defunto; aquele defunto, o tal defunto, o meu defunto, etc.

No mais, ia comendo os rendimentos do soldo do marido, e era pouco pesada à sociedade essa mulher magra, a mulher do defunto.

Junto dela gesticula e grita como uma possessa, quando fala, uma mulher um tanto velha e gorda que veio ao mundo unica­mente para decifrar e fazer charadas!

Os filólogos não estudaram ainda o caráter dessas mulheres extraordinárias cujo mérito predominante é o de fulminarem impiedosamente os ouvidos alheios sem a menor consideração, sem a menor piedade, sem o menor descanso!

Além de tudo, a Sra.. Leonarda, a quem os de casa chamavam Sinhá Pequena, era surda! majestosamente, piramidalmente surda! Imaginem o efeito dessa mulher na sociedade!

Logo adiante dela via-se uma fisionomia vulgaríssima entre os humanos: a mulher devota. Com o clássico rosário entre os dedos trêmulos, corria a Sra. D. Cândida, dos Barbadinhos ao Carmo e do Carmo aos Barbadinhos, deitando não sei quantas milhas por minuto! Enquanto a viúva do major murmura entre dentes o habitual solilóquio com os olhos estendidos no espaço, e a Sra.. Leonarda trata de adivinhar uma charada da Marmota, D. Cândida dá princípio ao vigésimo terceiro padre-nosso por ter terminado a nonagésima ave-maria ao Senhor dos Aflitos.

— Como estará ela? perguntou em voz baixa uma quarta personagem, senhora alta, empertigada e cheia de fitinhas em toda a parte.

Ouvia-se em uma alcova próxima um ou outro gemido dis­cretamente abafado pelas cortinas e pela porta entreaberta.

Eram nove horas da noite. Chovia a cântaros. As roucas pul­sações de um enorme relógio de parede fizeram eco apenas às palavras da interlocutora.

— No ar — 3 — no navio — 1 — no exército — 2! Que diabo de embrulhada é esta? Estou parafusando o miolo e não sai nada!

— Como estará ela? repetiu a senhora das fitinhas.

— Padre Nosso que estás no céu... Maldita pulga! oh xente! parece que não lavam esta casa há dois anos! Credo! Que estás no céu, bendito seja o teu.. Ah! peste! desta vez agarrei-te mesmo no cós! o teu nome, venha a nós — Ai! cá está outra!

— No navio — 1— Que será, um no navio? Mastro, não pode ser; será capitão? ca-pi-tão... No ar — 3 — No ar 3?...

— Ó D. Leonarda?

— Senhora?... Me chamou?... Eu estava aqui... vendo se... Diga-me, D. Quininha, o que será 3 no ar?

— A comadre ainda não saiu até agora! Haverá novidade?

— Claridade?... Pode ser, pode... No ar... há claridade, mas no exército, claridade?! Vamos ver o conceito, terminou a charadista, examinando a Marmota.

— Pergunto se haverá novidade, novidade, D. Leonarda! acudiu a empertigada senhora das fitinhas, dando força à voz.

— Novidade? Por quê, D. Quininha?

— Até agora a comadre... Que acha, D. Candinha?

— Venha a nós o teu reino.. Eu sei, D. Quininha! Quem lhe pode responder é esta senhora. Oh! D. Clementina, minha se­nhora! Deixe-se de tristezas, ande!

A viúva do major empregou todo o seu estilo vaporoso em um suspiro que terminou em várias volatas assobiadas.

— A senhora que já teve filho...

— Eu? volveu a viúva arregalando os olhos.

— Se não teve, foi casada, que dá na mesma.

— Ah! não me recorde o defunto!

— Pobre major!... A senhora gostava dele deveras, hein?

— Do defunto?

— Do seu marido, sim!

— Do defunto, muito, muito, D. Leonarda! Não o perco nunca de vista. Lá está ele, triste e fardado como nas paradas de 7 de Setembro. Por que me deixaste só aqui, Chico? Chico, estás me escutando? E os olhos da etérea senhora perderam-se de todo nas nuvens da cisma e do sonambulismo.

— Oh! estou impaciente!

— Deus é grande, D. Quininha... Faz tudo pelo bem, como diz frei Bento do Castelo... Ave Maria cheia de... Estou com uma fome, gentes!

— No ar 3. — Será papagaio?

— Deixe-se de charadas. D. Leonarda! Vamos ver a doente!

— No navio 1. — Alcatrão, não pode ser... Não me sacuda assim, D. Quininha, oh! Fale que eu não sou nenhuma surda, graças ao Menino Deus!

— Vamos ver a doente; vamos, D. Clementina? Ande, D. Leonarda! D. Candinha, venha, sim?

— Está em boas mãos, menina. A Quitéria do Amor Divino é a melhor parteira da freguesia. Bendita sois entre as mulheres.

— D. Clementina?

— Chico, em que tristeza vivo eu. Como são longos os dias, os dias... Ah!

— ...o fruto de vosso ventre.

— ...Conceito: nas batalhas.

— Que barulho dos diabos, exclamou um sujeito saindo da alcova. Mas as senhoras fazem um barulho de dez barbeiros jun­tos. Safa!

O autor dessas palavras era um personagem magro, olhos coruscantes e rosto singularmente bilioso. Estava em mangas de camisa, mangas arregaçadas e uns chinelos enormíssimos, onde lhe dançavam os pés como uma sardinha no oceano. Atirou a frase ao ar estendendo os braços nervosamente e batendo com o pé a ponto de fazer tremer a sala toda.

— Como vai ela? perguntou a caridosa senhora das fitas, correndo ao encontro do recém-chegado.

— Um barulho! um barulho! continuou o homem sem dar atenção às palavras que lhe dirigiam. É demais! É insuportável! é cruel! é... é o diabo! E num movimento que fez com o pé, o chinelo voou caracolando e foi cair sobre a Marmota fazendo a velha charadista dar um pinote para trás.

— Que é isso?!

— Não é nada... é o chinelinho dela... Pobre criatura!.., está a gemer que é um Deus nos acuda... E lá a senhora a decifrar charadas, outra a rezar, a outra... Era melhor cá não virem. Isso de vizinhança!...

— O Senhor dos Aflitos há de lançar os olhos sobre ela. Maria mãe de Deus...

O homúnculo pôs-se a passear pela sala manifestando sinais da mais viva inquietação.

— E havemos de dar à luz assim!? bradou ele, estacando adiante da mesa.

As mulheres olharam-se boquiabertas.

— Quê!

— Que está dizendo, senhor?

— O que estou dizendo, o que quero dizer, o que vou dizer, é que estou sentindo umas... estou sentindo... E estalava os dedos com progressiva irritabilidade.

As senhoras ergueram-se da mesa, meio assustadas, e não perderam mais de vista as mãos nervosas de Anastácio Agulha.

Era ele realmente! era o nosso homem! era o nosso desertor! era o nosso herói em gênero, número e caso! Os três anos de ausência haviam-lhe mais ou menos embranquecido os cabelos, dando-lhe agora um certo ar severo, que impressionava e atraía a confiança dos que tinham a desventura de o tratar de perto!

Anastácio Temporal Agulha foi abandonado pela minha sin­cera pena de cronista no capítulo antecedente, ao justo três anos e vinte e sete dias menos quarenta minutos, dentro de um patacho, cujo nome devera ser registrado para glória dos nossos fastos marítimos, sobre as ondas verde-azuis de um mar calmo e à dis­posição de um vento adorável.

Netuno, porém, que pertencia nesse tempo ao partido da oposição, irritado contra aquela atrevida banalidade humana, que traíra o partido, e cuja existência dependia de uma onda mais empolada ou de um furacão mais exigente, espalhou nuvens, per­turbou o elemento líquido, e, no segundo dia de viagem, o pata­cho pulava como uma cobra entre as vagas que ameaçavam engoli-lo por todos os lados.

Eufrásia viu no horror da natureza o castigo iminente.

— Eu bem te dizia, Anastácio. Enganar os outros não é bom. Olha como Deus nos castiga.

— Deus não se mete em eleições, toleirona! Deixa-te disso! O vento crescia de fúria. O mestre do patacho veio pedir aos dois passageiros que descessem à câmara.

— Há perigo, Sr. capitão? perguntou Eufrásia, trêmula como um penacho.

— Não, minha senhora, respondeu o homem, orgulhoso pelo título de capitão que lhe ministrara a Sra.. Agulha; não há perigo, há mar; não há tempestade, há vento! E este patacho não é um brigue, é um patacho!

— Que homem profundo! observou Anastácio Agulha em voz baixa a Eufrásia. Por que lhe chamaste capitão? Devias chamar-lhe major, logo!

O trajeto da Corte a Macaé foi feito em dezoito dias. "Como tudo chega neste mundo", segundo diz a modinha, o pata­cho deu fundo no porto de Macaé, meio desarvorado e com salientes cicatrizes na tolda.

Lucas Pereira Sistema, cuja fisionomia havíamos deixado de parte, por ter já sido dito o seu papelzinho nesta comédia, rece­beu o genro e a filha no meio das mais felizes disposições e con­tentamento. Anastácio Agulha, apresentado aos principais perso­nagens do lugar, tratou de procurar um meio de extorquir mais dinheiro à humanidade desprevenida.

Anastácio Temporal Agulha era fraco em raciocínios sérios, mas destro na velhacaria e na ladroeira. Se houvesse entre nós uma academia nesse gênero, o meu herói seria lente catedrático sem recorrer a concursos! Era um soberano patife, com todos os predicados da espécie, apesar de possuir um gênio impertinentís­simo e original, que por vezes lhe estorvava os projetos.

E já que tratamos de Anastácio Agulha, em terra alheia, é forçoso declararmos que se deve a esse grande homem o primeiro ímpeto a respeito do canal em seco, que forma ainda hoje um dos estudos mais preciosos da indústria macaense! A idéia primitiva foi de Agulha; se coube a outro a execução do projeto é cousa de que nem ele nem eu tivemos a menor culpa, louvado Deus!

Vejamos rapidamente as peripécias aventurosas da vida de Agulha em Macaé. Anastácio não descansou um momento; perto de quatro contos tinha ele no bolso, devidos à candidatura de Leocádio da Boa-Morte.

— Dinheiro parado é papel morto, observava o marido de Eufrásia, judiciosamente.

E tantas transações pôs em movimento, tanto parafusou no artigo mercadorias, insinuou-se de tal maneira no ânimo dos consumidores da terra, que dois anos depois havia duplicado, triplicado o capital!

Os sentimentos biliosos de Anastácio Agulha não fizeram grandes exercícios nesse curto período. Além de uma ou outra discussão apimentada sobre câmbios e o futuro engrandecimento do algodão de Pernambuco, acerca do que ia-se empenhando séria polêmica entre Agulha e um negociante inglês estabelecido em Macaé, até então nada mais houve digno de menção e reparo.

Um amigo, com quem Anastácio se correspondia, mandou-lhe entre outras notícias da Corte participar o desaparecimento completo de Leocádio da Boa-Morte, e a mudança da família Sacramento para Petrópolis... “á mulher do Sacramento, termina­va ele em uma das últimas cartas, não goza de muita fama entre as pessoas honestas. Há até quem diga (mas eu não creio) que o marido pouco se importa com o que lhe vai por casa. São brancos, lá se enten­dem, etc., etc. "

Eufrásia manifestou desejos de voltar à Corte. Lucas Pereira andava adoentado e murcho; o desejo da Sra. Agulha era fazer o pai ser examinado pelos principais médicos da capital do Império.

— Qual, minha filha, volveu-lhe Anastácio Agulha. Nem pensar nisso é bom! O negócio das eleições está muito fresco ainda e eu não ando com grandes disposições de brigar, por ora!

— Mas não vês que papai...

— Aquilo passa; teu pai come muito, é o caso! Se ele deixas­se de jantar um mês, por exemplo, ficava duro e bom como eu! A sobriedade é uma virtude... higiênica!

Pensamento que Anastácio ouvira na véspera a um procu­rador de causas, que o lera em uma folhinha antiga.

No meio de suas explorações mercantis, lembrou-se Anas­tácio Agulha de tornar-se empresário de uma companhia dramática. Sugerira-lhe a idéia um tal Baltazar, por alcunha o por­tuguesinho, rapaz filho de Lisboa e de talento aproveitável para a cena. Associaram-se os dois, ficando a cargo do último a escolha das peças e a direção de cena.

Pouco poderia durar a sociedade. Uma circunstância impre­vista veio dar cabo da empresa e dos espetáculos todos. Ensaiava-se uma comédia de costumes nacionais, cujo protagonista, sujeito ridículo e pretensioso, recebera do autor o nome de Anastácio.

No dia da representação, a que afluíra magna cópia de dilet­antes, Anastácio Agulha apresentou-se no teatro em companhia de Eufrásia e de Lucas Sistema, mais trôpego que sempre.

Subiu o pano: começaram os diálogos e as peripécias da ação. O público satisfeito ria e aplaudia espontaneamente. Eis que salta em cena o herói, caricatura absurda e indefinível.

O povo riu ainda mais, as palmas sucederam as palmas, e as vistas gerais pregaram-se pertinazmente no novo interlocutor. É quando Anastácio ouve chamar em cena ao personagem por seu nome! Como movido por um par de molas elétricas, Agulha pôs-se em pé enterrando o chapéu até as orelhas:

— Abaixa o pano! Já! Abaixa o pano, canalha! Ou sou empresário ou não sou! ó Sr. Baltazar! acabe com esta patifaria!

O sussurro da platéia foi a repercussão das palavras do enraivecido empresário.

— Que é isto? perguntavam de todos os lados.

Os atores, pasmos, suspenderam a representação.

— Meu nome em um cômico! Ah! pensam que eu sou um boneco, um pintalegrete, um troca-tintase, uma figura de armari­nho! Acabou-se a companhia! nunca houve companhia, estão ras­gados os contratos! Se eu tivesse visto os ensaios, não acontecia isto! Deixei de ser empresário com trezentos e setenta diabos!

— Anastácio! articulava Eufrásia trêmula, agarrando-se ao braço do marido.

— Mas que significa semelhante procedimento, senhor? perguntou a autoridade dirigindo-se a Agulha.

— Significa que puseram o meu nome em cena!

Risadas frenéticas dos espectadores.

Anastácio continuou desesperadamente:

— Meu nome, Anastácio, Anastácio Agulha, de que andam fazendo joguete esses cômicos de meia-tigela.

— Contenha-se, senhor, exigiu a autoridade, contenha-se ou retire-se!

Lucas Sistema fez um gesto de ameaça ao delegado, mas Eufrásia prendeu os braços paternos, quase a chorar de medo.

— Retiro-me, sim, senhor, eu me retiro, eu, minha mulher, e meu sogro de quem sou genro único; mas será a última vez que estes desastrados abusam de um nome respeitável e sério!

Os espectadores redobraram as gargalhadas. Anastácio Agulha furioso quis arrancar a bengala das mãos da autoridade e atirar-se à platéia, quando a muitos rogos de Eufrásia e acompa­nhado por Lucas Pereira Sistema, que fechava a retaguarda, retirou-se a família do teatro.

No dia seguinte desmancharam-se os contratos; houve luta, e Anastácio Agulha veio para casa de paletó roto e chapéu sem abas.

Foi a única aventura em que se patenteou o caráter irascível do marido de Eufrásia. Um dia, Lucas Pereira Sistema, depois de receber os últimos sacramentos, chamou Anastácio e a filha, e pronunciou as seguintes palavras com voz compungida e um tremor geral no corpo:

— Meu Anastácio, eu pouco posso durar; já dei o meu cacho neste mundo e estou a ver se mereço um lugar sadio no outro. Deixo-te minha filha, minha pobre Eufrasinha, de quem serás irmão...

— Como! irmão?!

— Sim, a quem terás amizade mais que fraternal. Sinto pro­fundamente, Anastácio, vocês não haverem cuidado em me dar um neto... terminou o doente tentando um sorriso que acabou em careta.

— Ah! é verdade! exclamou Anastácio Agulha, em tom admirável.

— Paciência, prosseguiu Lucas Sistema; não chores Eufrásia; Anastácio, abre aquela janela; cuidado com a gaiola dos coleiros; dá lembranças aos nossos conhecidos.

A voz do doente enfraquecia pouco a pouco. Eufrásia beijou-lhe a testa chorando. Anastácio meteu as mãos nos bolsos da calça, o que costumava fazer quando era sujeito a poderosas comoções.

— Põe fora as minhas botinas velhas, articulou o moribundo no delírio, queima as contas que eu não pude pagar em tempo, dá um abraço ao Quincas do correio... Ah!

— Papai!

— Guarda para ti, Anastácio, o meu chapéu e uma das mi­nhas luvas de lã; dá a outra a Eufrásia... Não embarquem mais em patachos; mandem-me enterrar com jeito. Poucos cartões de convite, Anastácio... Adeus. Ah!

E expirou aquele homem, autor de um dos maiores pés fe­mininos, que têm pisado a poeira dos séculos.

Anastácio Agulha procurou distrair Eufrásia, que não se esquecia um minuto do seu velho Sistema. Mudaram de casa; e dois meses depois, Agulha convidou a mulher a voltarem para a Corte.

— Temos uns cobrinhos que nos ajudarão a levar uma vida mais ou menos má. A Corte tem isso de bom: um pobre-diabo pode passar até com 240 rs. por dia!

Eufrásia aceitou com reconhecimento a proposta do marido. Embarcaram-se.. em um patacho, ainda em um patacho! o que fazia dizer a Anastácio Agulha durante a viagem:

— Nossa vida toda, Eufrásia, está crivada de patachos! Que queres? Enquanto não levarem a cabo o projeto do canal, a nave­gação há de andar sempre assim! Se teu pai se lembrasse disso, não me faria aquela recomendação na hora da morte.

Chegaram à Corte, e o amigo de Agulha, encarregado dos negócios do meu grande homem, veio receber no desembarque a família, levando-a à casa, alugada por ordem de Anastácio, à Rua da Misericórdia n. 91 Y.

Como tudo desaparece entre as garras do progresso, a casa em questão é hoje uma das mais interessantes habitações da Rua da Misericórdia. Rasgaram-se as janelas, pintaram-se os portões, rebocaram-se as paredes.

É hoje bonita; naquele tempo era respeitável! É hoje vulgar; naquele tempo era curiosidade. Já não moram Agulhas nela; moram empregados do tesouro, Que antítese cruel!

A vizinhança começou a taramelares. A viúva Arrozal deixou por um momento as suas locubrações místicas, para indagar da vida dos novos vizinhos.

A Sra. Leonarda, por antonomásia – Sinhá Pequena – aban­donou em meio uma charada da Marmota e andou à espreita entre as rótulas de sua casa, no intuito de pilhar alguém que a esclarecesse no negócio.

D. Candinha perdeu a missa nos Barbadinhos só para ver que gente era aquela. Porque, murmurava a religiosa, é dever de consciência saber cada um com quem vive e com quem anda.

D. Joaquina Ciciosa, a senhora impertigada de quem se tra­tou no princípio deste importante capítulo, e que tinha a mania de fazer bem a todo o mundo, mandou imediatamente, depois da chegada da família Agulha, um portador à casa de Eufrásia Sistema. O portador, ou melhor, a portadora, começou nos seguintes termos:

— A benção, sinhá. Minha senhora manda fazer uma visita, perguntar como vosmecê passou a noite e se não precisa de nada.

Anastácio chegou à janela e cumprimentou D. Quininha, que se dependurava, cada vez mais esguia, do primeiro andar de sua casa, esperando ansiosa a volta da negra.

Agulha fez-lhe três cortesias, dizendo-lhe vivamente adeus com ambas as mãos:

— Muito obrigado! gritou ele, de maneira a fazer parar os que passavam. Cá recebi o recado! Andamos moídos, moídos! sabe? o patacho! os saltos do mar, o enjôo, a morte do pai!..., etc.! Isso mói, minha senhora!...

D. Quininha, sem compreender nada, ria amavelmente, correspondendo aos movimentos corteses de Anastácio Agulha.

A Sra.. Leonarda abriu um pouco a rótula e espiou se a devota Cândida estava no posto; a outra fazia justamente o mesmo exercício e com as mesmas intenções:

— Oh! não foi ao Castelo, D. Candinha?

— Ando hoje com uma dorzinha no lado, Sinhá Pequena, que me tem feito perder o juízo, minha senhora. O Senhor dos Aflitos me perdoa, não acha?

— Pois não! olhe, já tomou uma xicarazinha de macela? Experimente; o boticário da esquina não receita outra cousa. Ou então bote duas gotas de limão em um copinho de água fria sere­nada. Dizem que faz bem! Já sabe que temos vizinhança fresca?

— Que diz? Ah! témos? Não sabia.

— Nem eu. Mas o José da venda inda agorinha me disse que é gente de Macaé. Estão de luto, morreu o pai da mulher... Oh! D. Candinha, credo!

— Que é, Sinhá Pequena?

— Ela tem um pé, minha senhora, capaz de encher a calçada! – Ave Maria cheia de graça!

— É verdade; quando entrou em casa eu reparei, e meteu-me um medo!

— Serão ricos?

— Hum, hum, hum... respondeu guturalmente a outra. Parece que eles só têm uma escrava velha; foi o que eu vi só quan­do entraram em casa.

— Havemos de indagar tudo depois. Dize-me com quem vives...

— Que dúvida! Olhe lá: o que a senhora souber me diga. Adeusinho.

— E a senhora também, ouviu? Até, D. Candinha, até! – Até logo, Sinhá Pequena.

— À proporção que a família Agulha ia-se acostumando na nova habitação, a vizinhança tratava de angariar-lhe a simpatia por meio de bolinhos, frutas, presentes de toda a espécie e quali­dade. A primeira pessoa que se apresentou em casa de Anastácio Temporal Agulha, foi a filantrópica D. Quininha, sempre cober­ta de fitas e sorrisos.

Eufrásia, honra lhe seja feita! recebia com pouco desvaneci­mento a corte invasora. A mulher de Anastácio tremia ainda pelo que sucedera com a viúva Lampreia, de suculenta memória. Chegou até a manifestar os seus receios a Agulha.

— Pelo contrário, minha filha, vizinhança traz lucro. Pode ser que eu arranje com esses conhecimentos alguma cousa que me faça conta.

— Mas teu gênio, Anastácio...

— Ninguém tem sangue de barata, menina. É preciso que um homem seja um homem e um gato um bicho!

Iam pois os dois vivendo em uma espécie de paz bucólica, quando um dia Anastácio Agulha, dirigindo-se à mulher:

— Não me posso esquecer das palavras de teu pai a morrer! disse-lhe ele.

— "Cuidado com a gaiola dos coleiros"... murmurou Eufrásia lembrando, em doce recolhimento, uma das mais enér­gicas frases de seu pai moribundo.

— Qual coleiro, nem meio coleiro! Refiro-me àquele neto de que ele falou com tanta pena!

— E então?

— Oh! Eufrásia, exclamou Anastácio, apertando expressiva­mente as mãos da mulher: se nós tivéssemos um neto!

— Hein?...

— Não, quero dizer, um filho, um caçulinha, um pezinho, um será fim bem gordinho e bem travesso!

— Deus não quer! seria um bem para mim!

— Um bem? um bem? repete um bem, anda! Dize depressa!

— Um bem, sim.

Anastácio Agulha correu ao chapéu, e abotoando o paletó desabridamente:

— Vou já falar a um médico!

— Estás doido!

— A medicina tem descoberto cousas do arco da velha. Vou ao Dr. Cunha, já.

E saiu como um fuzil, deixando Eufrásia atônita.

O médico fez-lhe complacentemente uma longa dissertação em que provava a impossibilidade da ciência corrigir a natureza; mas disse-lhe que se não corrigia, auxiliava. Receitou banhos de mare, alimentos sadios, e, entre outros ingredientes, um cálice de genebra de Holanda por dia.

— Um cálice! exclamou Agulha entusiasmado! Se um cálice faz efeito quanto mais uma garrafa! Ela beberá uma garrafa de genebra por dia!

O discípulo de Esculápio, porém, conseguiu a muito custo fazer entrar Agulha no caminho do senso comum, e quando Anastácio voltou à casa, vinha sobrecarregado de frascos de todo o feitio.

— Amanhã começarão os banhos salgados, disse Anastácio Agulha, pinoteando de alegria.

— E é muito longe? observou timidamente Eufrásia.

— Qual! Um passeio à Glória; em um pulinho está a gente lá. Dizem que aquele lugar da Praia dos Frader ou do Mar de Espanha é milagroso como o diabo. Tomaremos banho todos juntos! É preciso convidar a vizinhança.

Tiveram princípio os banhos, ao segundo canto do galo, todas as manhãs. A natureza que será sempre a eterna caprichosa e que gosta mais ou menos de castigar a humanidade, fazendo-lhe a vontade, concedeu ao casal o ambicionado fruto. Eufrásia sentiu os primeiros sintomas de maternidade, e Anastácio Agulha saltava, cantava, ria, abraçava as visitas, e agradecia em altas vozes ao céu o presente que ia oferecer-lhe.

Em um dos momentos de maior expansão:

— Graças a Deus! bradou ele, passeando a passos largos, abrindo e fechando o piano de vez em quando com toda a força, vou ter um neto, não um filho! um herdeiro! o companheiro de minha velhice! o meu mimoso Carlinhos...

— Carlinhos não, replicou Eufrásia. Não quero o nome de Carlos.

— Está bom, tem tempo, depois arranjaremos um nome capaz. Oh! que felicidade! É preciso passeares bastante, Eufra­sinha, passeares muito, passeares vinte e quatro horas por dia!

Há quem diga que o passeio ajuda!

A vizinhança não poupava parabéns ao ditoso par. D. Clementina Arrozal citava a propósito vários trechos dos meninos célebres, comparando o futuro Agulhinha a Boufflers e outros heróis por excelência. A Sra.. Leonarda começou a fazer toucas e D. Quininha camisas matizadas e o cinteiro, cujo bordado repre­sentava uma agulha atravessando um coração.

A devota dos Barbadinhos dava o seu quinhão em rezas e escolhia bentinhos para pendurar ao pescoço do menino.

Debay, nos seus cursos de higiene militante, apresenta os mais fabulosos casos a propósito desse tempo excepcional no excêntrico organismo da mulher.

Eufrásia Sistema começou a ter desejos, mas desejos únicos, desejos dignos de especialíssima menção.

— Não sei o que sinto, disse ela uma vez a Anastácio; mas ando com uma vontade de...

— De quê? Fala, fala, sem medo! Nada de perturbar a cousa!

— Vontade de bolear um carro, de te ver fardado, de me sentar no meio da rua com a cabeça no teu colo!

— Que criança extraordinária está-se formando ali! observa­va consigo Anastácio, profundamente impressionado. Alta noite a mulher acorda-o atropeladamente.

— Eu queria, Anastácio... estou com um desejo! É uma esquisitice!

— Fala!

— Abacate; vai arranjar-me uns abacates e frutas-do-conde. Eu morro se não trouxeres!

— Cala a boca. Não perturbes o negócio. Lá vou!

E vestia-se às pressas, saía para a rua às duas horas da madru­gada, errando até o tiro de peça, sem encontrar nada, nem sequer semente das tais frutas!

Voltava com a cara franzida e o sobrolho carregado.

— Oh! já vieste?

— Não achei! Sou um desgraçado!

— Perdi a vontade também. Sabes o que queria agora? Mas é maçada para você!

— Fala! Não perturbes o...

— Queria que três cabeleireiros me penteassem ao mesmo tempo!

— Três? Pois hão de vir seis, seis cabeleireiros!

E Anastácio saía novamente murmurando entredentes:

— Que porção de cabelos há de ter essa criança! Deus a proteja!

Os desejos cresciam de dia em dia e de cada vez mais excên­tricos e burlescos. Em uma excursão de ônibus a Botafogo, Eufrásia Sistema quis por força comer as orelhas de um emprega­do público, que ia junto dela. Anastácio dirigiu-se ao homem e propôs-lhe a venda das orelhas:

— Ponha o preço, senhor: eu pago-as por quatro!

O infeliz passageiro deu um salto do ônibus abaixo, pensando que tratava com um alienado.

Havia na vizinhança um barbeiro que empregava as horas vagas em tocar o hino nacional a piston. Eufrásia obrigou o mari­do a ir aprender o referido instrumento com o barbeiro, o que Agulha fazia todos os dias. Graças a muito trabalho e sempre com medo de prejudicar o negócio, Anastácio Agulha conseguiu de ouvido tirar alguns trechos do hino nacional, em um piston que comprou expressamente para o caso.

No melhor do sono era o homem acordado pela mulher que o forçava a executar cochilando o que sabia, no vibrante instru­mento, perturbador do descanso alheio.

— Basta! interrompia ela. Agora assobia qualquer cousa. E Anastácio Agulha assobiava qualquer cousa.

Raiou enfim o desejado dia! A vizinhança foi convidada, e a Sra.. Leonarda trouxe a comadre, uma tal Quitéria do Amor Divino, parda circular e velha, coberta com o clássico lenço de pontas de crivo, um raminho de arruda atrás da orelha e uns trinta cordões, figas e bentinhos no pescoço. O dia tinha sido chuvoso desde o amanhecer; a Sra.. Quitéria vinha molhada e aborrecida.

— Cuidado! disse Anastácio Agulha, batendo amigavelmente no ombro da velha gorda. Cuidado com o desmancho!

— O desmancho?   

— Ah! Vm. não sabe da cousa? Pois é o mesmo, comadre, é o mesmo. Está nas suas mãos a nossa pessoa! Deus queira que sejamos felizes!

A mulher sentou-se em uma cadeira que rangeu dolorosa­mente, e ensaiou algumas palavras de consolação a Eufrásia...

Quando Anastácio pronunciara a última frase na sala, frase de que os leitores ainda se devem lembrar e que assustou deve­ras às três mulheres, um gemido mais surdo e prolongado saiu da alcova.

Ele correu para lá, e lançou-se a Eufrásia em cujo pescoço a comadre já havia acondicionado uma porção de rezas e imagens de prata.

— Anastácio!

— Não perturbes, meu bem, não perturbes! aqui estou eu! balbuciou ele.

Novo gemido mais surdo. A comadre exigiu uma garrafa lavada, imediatamente.

— Para quê? perguntou Anastácio Agulha, pasmo.

— É preciso que ela assopre, senhor!

— É preciso que ela assopre?

E dirigindo-se à Sra. Quitéria do Amor Divino:

— Oh! minha cara garrafa, exclamou Agulha atrapalhando-se todo, vá lavar uma comadre e traga já!

— Que está dizendo, senhor? volveu a mulher, indignada. Novo gemido mais profundo de Eufrásia.

— Ah! se é preciso que ela assopre, continuou Anastácio per­dendo a cabeça; e correu a um canto do quarto, trouxe o piston e meteu-o na boca da mulher.

— Assopra, minha filha!

A comadre esteve para desmaiar de admiração! Eufrásia Sistema exalando um dolorido ai! enlaçou com o braço direito o pescoço do marido, amiudando os gemidos. O piston, em cujo tubo Eufrásia soprava com todo o valor, desprendeu uns sons roucos e intermitentes, que sucediam a outros menos intermi­tentes e roucos.

— Assopra! Assopra que eu estou aqui!

E Anastácio Agulha, nervoso até o delírio, pôs-se a mover as chaves do piston, de forma que Eufrásia começou a tocar o hino nacional a toda a força!

As visitas chegaram à porta da alcova assombradas

— Que era aquilo? Que era aquilo?

— Credo! Cruz!

— Santa Mãe de Deus!

— Misericórdia!

Anastácio, vermelho, abrasado, e suando por todos os poros, movia mais frenético e excitado as chaves do piston. O hino nacional retumbava horrorosamente! As notas desafinadas chocavam-se, partiam-se, baralhavam-se e estrugiam por todo o quarteirão.

Vinha nascendo Bernardino Sistema Temporal Agulha!

 

IX

O SONHO DOS TRÊS

Anastácio, ansioso, quis apoderar-se imediatamente da cri­ança. A Sra. Quitéria do Amor Divino repeliu-o com toda a digni­dade da classe, e preparou-se a mergulhar o novo aspirante nas primeiras águas purificadoras.

A serviçal D. Quininha Ciciosa trouxe a bacia, a Sra. Leo­narda a camisa, D. Clementina Arrozal a touca, e D. Candinha um bentinho de Nossa Senhora do Parto.

Eufrásia, com uma voz quase esvaída em suspiros, tirou de baixo do travesseiro uma moeda de ouro e entregou-a a Anastácio.

— Toma.

— Que é? que vem a ser isto? que queres dizer com isto? Os olhos da comadre faiscaram de cobiça.

— Deita na bacia, Anastácio. É costume e traz felicidade.

A Sra. Quitéria conservando sempre o menino suspenso nos braços, esperava a simbólica moeda de vinte mil réis, com a boca entreaberta, o olhar penetrante, e a respiração trêmula.

— Vinte mil réis! exclamou Anastácio Agulha com um grito retumbante; vinte mil reis! E enterrando a mão no bolso da calça escolheu uma velha moeda de dois vinténs e atirou-a na bacia:

— Anastácio! articulou Eufrásia repreendendo dolorosa­mente o marido.

As três mulheres acercaram-se de Agulha, dizendo-lhe ao ouvido nervosamente, e todas ao mesmo tempo:

— Mas é costume! é bom! todo o mundo faz assim, todo o mundo...

— Todo o mundo lança vinte mil réis no fundo de urna bacia? gritou Anastácio Agulha cortando a frase; pois eu faço por menos; os tempos não estão para mais! Se a comadre tivesse de lavar-me a mim, por exemplo...

— Oh!

— Então, sim, eu sou um homem, e um homem vale já algu­ma cousa! Mas um pirralho, um sujeitinho que ainda não fala, que ainda não pensa, dois vinténs está bem pago! Não dou mais para o banho! Lave o menino, comadre, lave-o enquanto eu não me arrependa!

A Sra. Quitéria do Amor Divino, mergulhou o menino na água, resmungando a nênia da ambicionada moeda.

Bernardino estremecia da cabeça aos pés, chorando. e estican­do o corpinho de uma maneira brusca e incivil. A chuva continua­va em torrentes, e um ou outro relâmpago vinha refletir na alcova.

— Esta criança não pode mais de frio! Dê-me o cueiro e a touca por favor, disse a Sra. Quitéria.

Bernardino redobrava de gritos e em puxões intermitentes. Anastácio Agulha estendia-lhe os braços fazendo trejeitos e sinais, a que o pequeno não ligava a menor importância.

— Passe para cá este menino! exclamou Anastácio impa­ciente. Quero apertá-lo em meus braços, comadre! É preciso que ele conheça afinal o autor dos seus dias!

E recebendo a criança das mãos da Sra. Quitéria, pôs-se a embalá-la, moveu-a, remexeu-a, deu-lhe palmadas, etc.

— Como é pequenino! dizia Anastácio adornando as obser­vações com beijos consecutivos, que nariz! que boca! e é esperto, olhem! Parece que vai dizer alguma cousa! E como chora bem; é uma caixinha de música tal e qual!

E depois de uma pausa:

— Uma cousa! quero ver uma cousa! e estendendo o pequeno sobre a cama afastou o cueiro rapidamente.

— Oh!

— Que é? balbuciou Eufrásia.

— É que este menino não tem pé, não tem pé absolutamente! As vizinhas aproximaram-se curiosas.

— Como, não tem pé, senhor? e isto?

— Isto é isto, mas não é pé. As senhoras já viram um pé que pode navegar dentro de uma casca de avelã? Sou um infeliz, não tem que ver. Falta-me o melhor desta criança!

— Mas, senhor!

— Olha, Anastácio.

— Não tem, olha, nem meio, olha; não há menino comple­to, quero dizer, não há prazer completo neste mundo! Toda a minha esperança, todo o meu sonho estava no pé de meu filho! De manhã, à tarde, à noite, constantemente eu via um anjo sor­rindo-me e apresentando-me um pé dentro de uma bandeja:

— Vês? dizia-me ele docemente, teu filho será assim! Alegra-te, consola-te, feliz pai, o céu ouviu as tuas súplicas e teu herdeiro terá mais pé do que outra cousa!

— Um anjo, Sr. Agulha? observou a devota D. Candinha com certo assombro espasmódico e religioso: Bendito louvado seja!

— Era a minha consolação única! prosseguiu Anastácio passe­ando de um lado ao outro da alcova. A minha ventura, o meu desejo, o meu... E correndo a Eufrásia:

— Sabe por que o menino nasceu assim?

Todos esperaram ansiosos: a própria Sra. Quitéria que ia tomar uma pitada de simonte, conservou os dedos no ar, e os olhos arregalados sobre o marido de Eufrásia.

— Não sabe? não sabe? Foi porque a natureza deu a você tudo quanto havia de pé na redondeza do globo! Faltou para seu filho, é muito natural! Felizmente, este menino é um fenômeno e há de ser o último!

— Deus é quem sabe! Maiores são os poderes de Deus! pon­derou a devota dos Barbadinhos, erguendo os olhos ao teto.

— Há de ser o último! Se viesse outro, seria capaz de não ter pernas!

— Quê, senhor!

— Abrenuntio!

— A outro faltariam os braços, a outro o nariz... Até que o derradeiro fosse uma...

— Menina? acudiu D. Quininha.

— Fosse uma orelha, senhora. De pedaço em pedaço a natu­reza ia tirando tudo. Bonita cousa.

— Como vais Anastácio? perguntavam-me os amigos. Bom, obrigado. — E a senhora? — E os meninos? E a orelha?

— Cruz! rosnou consigo a comadre. Vou-me embora; este homem é maluco.

Mas Anastácio, embrenhado completamente nos labirintos de sua natureza extraordinária, enterrou as mãos nos bolsos e prosseguiu em diferentes tons:

— De forma que minha mulher não daria mais à luz filhos, dava à luz bocados, pedacinhos, fragmentos. Minha família seria uma libra de doces sortidos!

— Anastácio!

O menino chorava desesperadamente.

Um pai sempre é generoso, afinal de contas. Anastácio Agulha com as lágrimas nos olhos tomou o menino entre osbraços sentimentalmente:

— Vem cá, filho das minhas entranhas! disse ele. Tu não tens culpa, eu sei! O teu pé há de vir com o tempo, deixa estar; não chores, não; já não está aqui quem falou, meu anjinho.

As vizinhas tranqüilizadas, rodearam a criança e começaram a analisá-la por todos os lados e em todos os estilos.

— É o seu nariz, Sr. Agulha!

— É a boca da mãe tal e qual!

— Benza-te Deus, criaturinha!

— Em casa — 3 — bradou a Sra. Leonarda aos ouvidos de Anastácio Agulha; no alfabeto, 1 — Apelido de homem 1 — Conceito: — Nos braços do Sr. Agulha!

— Hein? volveu Anastácio, franzindo o sobrolho. Já está a senhora com o diabo da mania!

— Adivinhem!

— Será archote? aventurou a viúva Arrozal, com o seu mais vibrante assobio.

— É CRIANÇA! respondeu a charadista enchendo-se de orgulho. Em casa, 2, cria, — , no alfabeto 1, n, crian; apelido de homem 1, Sá. — Criança; conceito nos braços do Sr. Agulha; é o menino que está nos braços dele.

— Não meta meu filho em charadas que eu não gosto, senho­ra dona! Faça uma a respeito do demônio; é melhor! Deixe-me o pequeno em paz!

O menino, acondicionado junto ao regaço materno, adormeceu tiritando sempre de frio.

D. Quininha Ciciosa pediu a Anastácio permissão para ficar ao lado da doente.

— Pode precisar de alguma cousa, disse ela, e o coração me manda que eu fique.

— Pois fique, fique. Eu vou dormir no sofá da sala. A vizinhança despediu-se.

— Adeus, D. Eufrasinha, seja feliz; amanhã cá estou, minha senhora! O Senhor dos Aflitos dê boa sorte ao nosso anjinho! Amanhã lhe trago uma palminha benta, para pendurar no berço.

Foram palavras da devota.

— Não vem, Sinhá Pequena? Se quer uma xicrinha de chá verde...

— O quê? volveu a surda Leonarda.

— Se quer tomar chá comigo, prosseguiu a beata levantando a voz.

— Ah! sim; eu vou; tenho mesmo uma coisinha para lhe per­guntar, D. Candinha. Até D. Eufrásia, até. Vou mandar o fiscal botar no papel uma charada para se ler no dia do batizado!

Anastácio Agulha, ouvindo falar em charada, resmungou misteriosamente algumas frases entre os dentes cerrados.

D. Clementina Arrozal saiu do seu habitual sonambulismo para abraçar misticamente a mãe do menino.

Depois de um enorme suspiro:

— Se ele estivesse vivo! murmurou ela; como seria bom! Gostava tanto de crianças!

— Quem, o major? perguntou Anastácio.

— O defunto, sim! o defunto que eu choro eternamente!

— Pois vá o chorando e não me aborreça, disse consigo Anastácio Agulha, acompanhando as visitas que se retiravam. A Sra. Quitéria do Amor Divino, a muitos rogos de Eufrásia Sistema, aceitou um grande prato de carne com profusão de jilós e batatas, prometendo não abandoná-la essa noite.

Depois de uma nova coleção de beijos no herdeiro, Anastácio Agulha deixou a comadre e D. Quininha ao pé de Eufrásia, e foi para a sala.

O espírito do homem estava desassossegado e inquieto. Um filho! uma nova existência! Uma variante sensível em seus hábitos e nas suas aspirações mundanas.

— Hei de fazer desse menino o que houver de melhor. Há de ser deputado, desembargador, poeta, tesoureiro de loterias, juiz de paz, archeiro, comendador...

Encostou-se ao sofá, bocejando profundamente.

— Há de ser dono de uma loja na rua Direita; hei de ensinar-lhe o gamão e comprar-lhe um pajem para... um pajem para...

O sono apoderou-se de Anastácio Agulha; daí a pouco aos ruídos monótonos da chuva na calçada sucedia o surdo respirar do homem estendido horizontalmente.

Na alcova Eufrásia Sistema dormia com o menino nos braços; a Sra. Quitéria do Amor Divino roncava com o rosário entre dedos e D. Quininha, que procurara em vão lutar com o cansaço e com o sono, entregou-se em um belo sorriso às papou­las do deus mitológico. Anastácio Agulha sonhava; Eufrásia Sistema sonhava; o pequeno sonhava. A chuva caía constante­mente e na vizinhança a Sra. Leonarda e D. Candinha afiavam a língua contra a vida alheia. Era meia-noite: hora dos intrigantes e dos ratos.

Anastácio Agulha viu aparecer-lhe a comitiva de todas as suas vítimas e conhecimentos antigos. Em primeiro lugar a viúva Lampreia com os dois bandós pendurados à cintura, atrás o ofi­cial da guarda nacional, as negrinhas fazendo tinir dentro dos lenços o quebra-noz, as colheres, o paliteiro, etc., Joaninha Sacramento, sempre risonha e saltitante, Leocádio da Boa-Morte, magríssimo e fúnebre, tendo na cabeça uma urna eleitoral em vez de chapéu; Sacramento sorumbático e triste; o sócio da empresa dramática em Macaé, com os contratos rotos na mão, e fechando a comitiva um personagem indescritível, que pousando-lhe os dedos frios na cabeça:

— Anastácio Agulha, exclamou ele com uma voz fanhosa e sepucral, teu filho vai ser o bode expiatório dos teus horrendos crimes! Essa gente toda brada vingança! só há talvez um meio de salvar o pequeno.

— E qual é? volveu Anastácio com a fronte suada e o corpo oscilante.

— É dar-lhe um padrinho raro, um padrinho fora do comum, um padrinho admiravelmente original! Sem o que estarás perdido sem tir-te nem guar-te!

A viúva Lampreia, o oficial, as negrinhas, Sacramento, Boa-Morte e os outros começaram a rir rangendo os dentes e dançan­do em redor de Anastácio furiosamente.

— E onde acharei esse padrinho raro? Os padrinhos em geral são raros hoje!

— Fala com teu amigo procurador, e serás servido. Adeus!

O personagem fantástico desapareceu, mas os outros conti­nuaram a dançar e a cantar sem tréguas nem repouso. As criouli­nhas agarravam-se às pernas de Anastácio Agulha e a viúva Lampreia excitava-as fazendo viravoltas caprichosas com os afamados bandós.

— Agulha! Agulha! Agulha! Agulha! diziam todos ao mesmo tempo entre inúmeras acentuações extravagantes.

Anastácio tentava debalde salvar-se do ataque. O suor caía-lhe em torrentes por todo o corpo, enregelado de medo.

Eufrásia viu chegar-se a ela vagarosamente a figura de seu pai, envolta na mortalha:

— Obrigado, minha filha, obrigado pelo neto que me deste. Toma cuidado com ele; Anastácio é doido, não vá dar cabo do pequeno! Ensina-lhe tu mesma as primeiras letras e não consintas que meu genro se meta na educação do menino. Eu farei o que puder, do cemitério. Dá lembranças a Anastácio e dize-lhe que nós vamos indo sem novidade, graças a Deus. E desapareceu, assobiando uma canção em moda nesse tempo.

O pequeno sonhava que uma porção de soldadinhos de chumbo vinham fazer exercícios adiante dele, e que um cavalo de pau com rodas relinchava orgulhosamente, sacudindo as crinas. Ao romper do dia Anastácio, pálido e convulso, deu um murro na porta da alcova, entrando de chapéu na cabeça, bengala, pronto enfim para sair.

D. Quininha assustou-se, e a Sra. Quitéria caiu da cadeira abaixo.

Eufrásia Sistema acordou sobressaltada enquanto o menino tiritava e dava guinchos atroadores.

— Onde vais?

— Onde vou? Onde vou? Vou ver um padrinho raro! É preciso salvá-lo a todo transe! O sujeito alto foi quem me disse! Bode expiatório! nunca! até logo! Não te importes! Tudo se remediará!Eram trinta e tantos diabos!

E Anastácio Agulha saiu estrondosamente, deixando as mulheres pasmas, olhando uma para a outra de boca aberta.

 

X

A CAÇA AO PADRINHO

Anastácio Agulha corria pelas ruas com a velocidade de uma locomotiva.

— Irra!

— Salta!

— Não tem olhos, senhor!

— Arre! que bruto!

— Diabo de doido!

Eram as exclamações dos poucos madrugadores, acotovela­dos rispidamente pelo marido de Eufrásia, que não dava atenção a calos, ombros, vestidos e carroças, na sua marcha torrencial. Um único pensamento, uma única idéia o movia com a força irresistível da eletricidade e do vapor. As imagens pavorosas do sonho acometiam-no por todos os lados. Houve momentos em que ele chegava a confundir qualquer senhora robusta com a viúva Lampreia e dobrava a esquina aos arrancos como um cava­lo que perde os freios. A comparação é das mais lisonjeiras para ambos os animais. A aragem fresca da manhã enregelava-lhe o corpo suado, e a umidade das calçadas inundadas pela chuva durante a noite inteira, penetrando-lhe através das costuras dos sapatos, proporcionara-lhe uma ou duas dúzias de espirros a que o nosso herói não ligava a menor importância. A questão toda era chegar, salvar o filho, torcer o fatal vaticínio da tremenda visão do sonho.

Gastou oito minutos, pouco mais ou menos, no trajeto da Rua da Misericórdia à Rua da Providência para as bandas do Saco do Alferes.

No nono minuto já ele batia desesperadamente à porta de uma casa baixa, insignificante, de duas janelas, e com uma peque­na tabuleta por baixo de uma chapa de seguros contra o fogo.

A tabuleta dizia assim:

FELISBERTO CANUDO DE OLIVEIRA CON CEIÇAM ALBUQUERQUE E MELO, prokurador. Enkarrega-ce de Cauzas crimes, civeis, comerciaes, eclesiásticas, titolos de Nobreza, Deplomas de Irmandade, verços para cazamentos e Batisados, cartas de amores e artigus para Jornaes de todas as coures puliticas, e outros misteris de çua profição. N.B.

Puxe a campainha.

Havia um pequeno cordão cheio de nós ao longo da porta; era decerto o condutor da campainha a que se referia a tabuleta.

Anastácio Agulha continuou a bater estrondosamente na porta, sem ligar a mais ligeira consideração à observação supra­mencionada.

— Quem é? perguntou uma voz.

Agulha, sem responder, prosseguiu no ataque à porta. Não satisfeito com o eco profundo que as suas mãos cerradas aspera­mente produziam, o marido de Eufrásia agarrou-se à bengala com ambas as mãos e deu novas bordoadas na porta ainda fechada. Erauma espécie de assalto em regra em que a bengala representava a mais temível de todas as alavancas. Dir-se-ia que Anastácio Agulha pretendia não deixar em pé uma nesga de parede da casa do procurador. Alguns vizinhos abriram as janelas cuidando que havia revolução na rua.

— É em casa do Albuquerque!

— Parece que o sujeito está maluco! observou uma vizinha.

— Ih! que cara de condenado! Credo! vou já para dentro. Ele é capaz de vir pôr-me a casa em migalhas também!

Anastácio Agulha, vendo que a vizinhança cochichava a seu respeito, amiudou os golpes com um desespero inconcebível.

— Ah! não se abre esta porta? não se abre esta porta? não?! Espera, diabo, que eu te boto embaixo!

— Oh! senhor! gritou-lhe um da vizinhança. Puxe o cordão da campainha que abrem logo!

Anastácio Agulha olhou furiosamente para a pessoa que o interpelara, e caindo completamente nos seus hábitos sobre-­humanos, recuou para atrás até o meio da rua, e daí tomando um grande alento e ensaiando uns quatro ou cinco movimentos de corpo, atirou-se gritando sobre a porta, que se abalava e rangia a cada arremesso da enorme bengala.

— Mas estará surdo o Albuquerque, gente? continuavam as vizinhas. Nossa Senhora! que barulho! As peças da fortaleza são melhores de se ouvir!

Anastácio cada vez mais encolerizado, voltava ao meio da rua e lançava-se de novo à porta bloqueada.

Em um dos mais vigorosos choques, abriu-se a porta, e Anastácio Agulha, perdendo o equilíbrio, estendeu-se a fio com­prido no corredor. Imediatamente, porém, pôs-se de pé e descar­regou com todo o valor a bengala sobre a cabeça da pessoa que lhe abrira a porta.

Uma escrava velha voou para o interior da casa pedindo socorro.

Anastácio ia persegui-la, quando no corredor apareceu um homenzinho baixo, magro, aflautado, de ceroulas, camisa de flanela e carapuça de algodão. Esse personagem distinguia-se por uns óculos descomunais de aro de chumbo e pelo tremor que fazia dançarem-lhe os óculos sobre o nariz.

— Que é isto? Oh! lá senhor! Um crime! ataque à pro­priedade!... Ponha-se no olho da rua ou vou chamar o inspetor.

Anastácio Agulha deixou cair aos pés a bengala e virou-se em cheio para o dono da casa.

— Felisberto!

— Anastácio!

— Felisberto! Oh! Felisberto! Sou eu, Felisberto! Vem cá, Felisberto! E Anastácio Agulha, apoderando-se da mão do homenzinho seco, arrastou-o para a saleta de visitas.

Fê-lo sentar quase à força em um velho sofá cheio de autos e de poeira, exclamando vibrantemente, sem tomar fôlego, enquanto fazia exercícios com o chapéu, os pés, os braços, etc.

— Salva-me, Felisberto! Tu vais salvar-me, quero que me salves, já me salvaste, Felisberto! Um padrinho raro, disse a alma do outro mundo, um padrinho que não se pareça com outro, que seja um homem sem ser um homem, seja um padrinho sem ser um... Felisberto! tudo apareceu-me! não me deixaram um minuto! Era um barulho, era um desespero! era uma cambada de diabos e de almas, Felisberto! Oh! bode expiatório, diziam eles...

— Mas, homem!

— Se tu fosses pai de um bode expiatório, Felisberto, que farias, meu amigo? Que vais fazer, compadre?

— Como! compadre? Que diabo de ... ?

— Manda a escrava fechar a porta da rua, tudo fechado! que ninguém saiba o que se vai passar aqui entre nós neste subterrâneo!

— Subterrâneo? Pior! Já está você amalucando...

— Manda fechar!

— Isto é bom de dizer. Você quase me dá cabo da negra. Mas que tens tu, que barulho foi esse na porta? Não leste a tabuleta, a tabuleta que está em cima da..?

— Qual! não leio, nunca li, não tenho tempo de ler tabu­letas! A única tabuleta que eu conheço, és tu, Felisberto! Abraça-me, tabuleta!

Anastácio Agulha apertou nos braços o pescoço do procu­rador, em risco de o asfixiar.

— O sujeito alto me disse que eu falasse contigo, Felisberto! "Só o teu amigo procurador é quem poderá salvar a cousa." Oh! Felisberto! se tu salvasses a cousa!...

— Explica-te, afinal, com todos os infernos! bradou o homem seco, pondo-se de pé e prendendo os óculos que lhe escorregavam aceleradamente.

— Oh! Salva a cousa! prosseguiu Anastácio, indo dar novo abraço, que o procurador evitou em um pulo nervoso.

— Que cousa? Que cousa? Mas que cousa é essa, homem extraordinário?

— Eu te conto: Carlinhos, não, quero dizer Juquinha, não! – Não, ecoou automaticamente o outro.

— Enfim, meu filho!

— Ah!

— O primeiro que soube do negócio foi tu; foste você, Felisberto! exclamou Anastácio com uma ternura pouco grama­tical. O meu único amigo és tu; o meu correspondente de Macaé eras tu, o meu salva-vida serás tu ainda!

— Vais embarcar?

— Embarcado ando eu no bote da fatalidade! observou poeti­camente Agulha, caindo sobre o sofá e dando curso a uma imen­sidade de suspiros e arrancos cavernosos.

O procurador esperou resignadamente a reação no organismo excêntrico do amigo.

— Olha, Felisberto, começou Anastácio Agulha, levantando-se e tirando distraidamente a carapuça de procurador: eu estou entre a cruz e a caldeirinha. Dize-me cá: tu não acreditas em almas de outro mundo?

— Ah! Ah! gracejou o homúnculo rindo com certo ar de raposa e de procurador velhaco, almas do outro mundo, meu caro! Não dão para um almoço! Eu cá por mim gosto mais das almas deste! Leste a tabuleta? Dantes não havia tabuleta na porta, nem campainha. Assim dá mais importância à casa, hein?

— Não acreditas em sonhos, Felisberto? interrogou ainda Anastácio Agulha, sem responder à frase que lhe fora endereçada.

— Então vieste aqui só para perguntar-me se ... ?

— Venho aqui para te contar tudo!

— Pois conta-me tudo!

— Aí vai. Senta-te e presta-me atenção.

— Eu todo sou um ouvido só!

— O meu único desejo era ter um filho.., era dar a luz a um filho.

— Então...?

— Está feito! sou o homem, ou por outra, eu era o homem mais feliz do mundo, um homem, Felisberto, que ia ter para sua velhice a alegria e a única ventura da terra. Sonhei...

— Sonhaste?

— Sonhei, Felisberto! sonhei, meu amigo íntimo!

— Sonhaste o quê?

— Sonhei que tudo quanto é gente com quem tive relações dantes, aparecia-me em sonhos para me morder.

— Para o quê? Estás doido!

— Para fazer-me mal! para acabar-me com a casta e pôr-me no hospital da Misericórdia a pau e corda como um maluco!

— Fala!

— Entre o povo todo que me cercava havia um sujeito feio e magro; assim como tu.

— Hein?

— Como tu, Felisberto! Aquele fantasma é de tua família, com certeza! Chegou-se a mim e disse-me sem mais cerimônia que só tu poderias salvar o bode expiatório!

— O...?

— Meu filho a quem ele chamou isso. "Só de um padrinho raro depende a vida e a salvação de teu filho, o procurador teu amigo...”

— Eu não! não quero ser padrinho de ninguém e nunca fui, graças a Deus! Não está nos meus hábitos gastar com os outros. Um padrinho! carro, padre, doces, chá de noite, touquinha enfeitada. Safa! lá se iam as economias de um ano!

— Se não aceitas a cousa, hás de arranjar-me por força um!

— Pois sim!

— Mas já, já, já ou eu me enforco e a ti também!

— Mais devagar, homem, mais devagar. Olha; fala-se com o cônego João, da Capela! É um bom velho que já tem sessenta afilhados pelo menos.

— Não serve! Quero um padrinho fora do comum! Vai dizendo os nomes de sujeitos esquisitos que tu conheces, para ver!

— Homem! conheço um tal Veríssimo, que fez o diabo há pouco tempo em um batizado também!

— Que me dizes? exclamou Anastácio com os olhos cinti­lantes. Continua, Felisberto!

— Fez o diabo! No meio da ceia atracou-se com o pai da criança e quase dá-lhe cabo do canastro!

— Por quê?

— Por nada. É costume dele. Tem batizado umas três crianças e quebrado a cara de dois compadres pouco mais ou menos.

— Não serve, não; vê outro Felisberto. Isso de caras quebradas não tem nada de engraçado! Risque-se o Veríssimo; para fora o danado!

— Conheço um outro, o Greeth, um inglês, que vai à igreja de chambre e chapéu alto.

— Não serve, Felisberto! Mais raro, mais fora do comum! Um chambre, um chapéu alto.., um inglês, oh!

— Mas de que gênero queres o padrinho, Agulha? Serve-te um ministro?

— Ora!

— Um chefe de seção?

— Ora!

— Um confeiteiro?

— Pior! Já te disse que é necessário um ente fora do..

— Um parecido contigo, talvez.

— Comigo?

— Decerto: és o homem mais admirável que eu conheço. Tu e teu sogro a quem Deus haja.

— Ah! se ele estivesse vivo!

— Pois, meu caro, dou-te parte de que estou em seco a respeito do teu negócio. E por falar em negócio, tenho a declarar-te que vou ao cartório do Lopes, e depois dar uns passos urgentes. Trata-se de averiguar o dote de uma órfã, e portanto não tenho tempo a perder!

— Fica!

— Amanhã, amanhã conversaremos.

— E se eu te dissesse que há cobres a ganhar na cousa?

— Cobres? volveu o procurador corando de cobiça e de prazer.

— Cobres, sim! Compro-te um padrinho por quanto exigires.

— Um conto!

— Dois! dois contos e trezentos e seiscentos e quarenta réis.

— Está dito. Guarda as duas patacas para amêndoas do bati­zado. Arranjo-te o homem!

— Oh! um abraço!

— Nunca! replicou o procurador, assustando-se.

— Pois então dize quem é o tal!

O procurador Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo debruçou a cabeça e entregou-se a uma pro­funda meditação.

— O barão não serve, murmurou ele, seguindo o íntimo pensamento. O inglês, o sirgueiro da Lapa, o fiscal de S. José, o tesoureiro, o Valentim da caixa filial, o...

— Então, Felisberto? descobre, Felisberto! Explica-te, Felisb...

— Oh! gritou o procurador dando um salto acima do sofá e levantando os braços com os sinais do mais estupendo prazer.

Anastácio Agulha maquinalmente trepou também no sofá seguindo os menores movimentos do procurador.

— Achei! gritou de novo o outro.

— E quem é? perguntou Anastácio, trêmulo, ofegante, e agarrando-se freneticamente ao ombro do salvador de sua vida.

O procurador, depois de examinar se estavam sós, precaução inútil, tomou as mãos de Anastácio Agulha, e:

— Achei! exclamou ainda ele, com a fisionomia cheia de con­trações caprichosas. Achei, Anastácio!... Estão cumpridos os teus desejos, Agulha de minh'alma!

Anastácio Agulha abriu de novo os braços, furiosamente expansivo.

— Um abraço! vociferou ele; dá cá um dos teus maiores abraços!

O procurador recuou mais espavorido do que das outras vezes. Anastácio Agulha, arregaçando as mangas do paletó, arremessou-se ao outro, insistindo de braços abertos, com os olhos injetados de sangue e rangendo os dentes, de forma que parecia querer acabar com o procurador ou pelo menos triturar-lhe os ossos.

— Abraça-me com trezentos diabos! bradou Anastácio dando à voz as proporções do trovão.

— Tem modo, homem, oh! Anastácio, deixa-te de brinca­deiras, articulou o procurador, entrincheirando-se por trás do sofá.

Mas Anastácio Agulha de um pulo galgou o espaço que os separava, e agarrando o homenzinho a ponto de esmagar-lhe a espi­nha dorsal, deu-lhe um retumbante beijo nos olhos. Caíram os ócu­los, desengonçou-se o sofá, rolou o procurador na confusão geral.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo levantou-se a custo e aproveitando o ensejo correu para a alcova e fechou a porta. Anastácio Agulha acompanhou-o imediatamente.

— Abre a porta, vem cá, Felisberto! Felisberto! não me faças ver escuro, que vai tudo pela água abaixo; portas, trastes, rua, papéis e o diabo!

O procurador ergueu misteriosamente a cortina de chita, que velava o interior do quarto, e mostrou uma cara assustada em cujos olhos se lia o mais eloqüente tratado da inquietação e do terror.

— Não abro a porta!

— Abre! vem! conta-me! Estou com febre, Felisberto!

E Anastácio Agulha descansou o ombro na porta oscilante.

— Prometes, aventurou o procurador, através do vidro, prometes não continuar com as tuas caçoadas de abraços e beijocas?

— Prometo.

— Juras?

— Juro.

— Pelo quê?

— Por tudo o que tu quiseres, Felisberto! Mas anda!

— Juras por teu filho?

— Está dito! Juro por meu filho!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, um pouco tranqüilizado, saiu da alcova, seguindo semprepor precaução os mais sutis movimentos do amigo.

Anastácio Agulha fê-lo sentar ou antes enterrar-se em uma velha poltrona, junto à secretária.

— Achaste o padrinho? viste o padrinho? conheces o pa­drinho? Mas, esclarece a cousa que é tempo, Felisberto! Estou suando de curiosidade!

— Não sei se te convirá...

— Dize!

— Devagar, meu pequeno, devagar, replicou o procurador rindo e piscando os olhos maliciosamente, sabes que há um trato entre nós?

— Passo-te uma letra. Não tens aí letras? Dá cá uma letra de 2,6OO$ que eu encho!

— Não, senhor; não senhor. Negócio, negócio, amigos à parte. Eu cá tenho a minha praxezinha... Eh! eh!

— E então? volveu Anastácio Agulha, aborrecendo-se.

— Bom, bom, vais começar com as tuas, acudiu o procu­rador, de novo assustado.

— Não faço nada, descansa, velho; não faço nada. O que quero, o que desejo, o que... é que andes ligeiro, grandessíssimo!...

— Hein?!

— Nada, descansa, velho; não faço nada. Venha o nome do homem, descobre-me o compadre, Felisberto! Põe tudo em pratos limpos; pão pão, queijo queijo!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo procurou entre os seus papéis uma folha selada e escreveu o seguinte, que Anastácio acompanhava febril com os olhos:

Nóz a Baxo accçinadus, dêclaramos que é du Noço Agrado e pelas Garantias, que a lei nus Fakulta, fazzermus o contrato siguinte, de que Seremus fiés cumpridores perant a honrra da Dignidadi peççoal e a lêi iscripta e admittidda nu Co Digo Comercial e na constituição du brasil. ARTIGU PREMERO: — A parte contratanti de nomi Felisberto Canudo de Oliveira Conceiçam Albuquerq e Mello, prokurador de Cauzas, crimes, civeis, comerciaes, eclesiasticas, etc., etc., etc., nu fóro judissiario da côurte, compremete se a dar por dous contos e seiscentos mil reis um homim para servir de Paldrrinho para u filio de seu Amiggo o sr. Anastacio Temporal Agulia.

— Agulha não se escreve assim, homem!

— E como é então? Eu sempre soletrei A-g-u-Agu-l-i-a - Agulia.

— É com l-h-a, lha! Risque isso e ponha direito. Do contrário rasgo tudo!

— Dá na mesma, ora! l, i, ou l, h, pouco difere. Dar na cabeça ou na cabeça dar. Enfim, vá lá.

E prosseguiu:

Agulhha... "

— Pior! gritou Anastácio desesperado, dando um murro na mesa.

— Que é? exclamou o procurador atemorizado.

— Tira um h do nome com trezentos, não sei o que diga! É só um h! Um h! Um h! Um h!

— Basta! já sei, safa! que me rompes a ceroula! balbuciou o procurador, arredando a cadeira para o lado.

“Agulha padrinho qui stárá nas condissõs isijidas pela parte contratanti.”

— Escreve as condições! – Lá vai, lá vai. Irra!

"... pela parte contratanti sem o quê é Nulo o prezzente contra­to, qui será liddo e sátisfeitas as clasulas perante o dito padrinho no dia du Batisado.

Rio de Janero, 14 de Otubro de 1849.

Felisberto Canudo de Olivero Conceiçam Albuquerq e Mello, prokurador."

— Agora assina você.

Anastácio assinou o nome por inteiro abaixo do procurador. – E as condições exigidas?

— Isso é comigo. Tenho em primeiro lugar a dizer-te que o homem que te arranjei...

— Como se chama?

— Depois saberás. É o sujeito mais extraordinário de cidade.

— Sinais particulares! bradou Anastácio Agulha com força.

— Já esteve seis vezes na casa dos loucos, respondeu o procurador.

— Seis vezes?! acudiu Anastácio com os olhos chamejantes de alegria. Seis? Há de ir sete, oito, doze vezes! Eu mesmo farei que ele vá umas treze! Continua Felisberto, oh! continua, Felisberto! Que mais, Felisberto?

— Não responde certo a nada que lhe perguntam.

— Bom!

— É gago às vezes, outras surdo, outras cego; tem manias...

— Manias! disseste manias? repete manias, anda!

— Manias, sim!

— Dize uma! uma mania só!

— Impossível! volveu o procurador alongando o beiço infe­rior. Há cousas que não se contam. Ele faz o diabo! faz, Anastácio, o que você nunca fez nem fará neste mundo.

— Oh! Grande homem! Grande compadre! Grande padrinho! Vou trocar as bolas! Felisberto, esse sujeito será meu padrinho...

— Quê?!

— Sim! e compadre de meu filho!

— Aí estás tu já a bracejar como um desesperado. Mau, dessa maneira fica o negócio em pantanas.

Anastácio Agulha, com os olhos presos na boca do procu­rador, não perdia um som, uma palavra, um sopro sequer!

— Dize mais alguma cousa, Felisberto! Felisberto! Dize alguma cousa mais! Olha, Felisberto, não sei onde estou que não te dê um...

— Um abraço? exclamou o procurador, levantando-se às pressas e indo correr para a alcova.

— Vem cá; não te faço nada. Responde-me: és amigo do louco?

— Não; mas o Lopes apresentar-te-á e eu arranjarei a cousa da melhor maneira possível!

— Dito. Vamos já!

— Depois, depois. Deixa-me vestir e tomar um ovinho quente ao menos. Estou ainda em jejum.

— Não precisa.

— Como, não precisa?

— Não! comerás depois; almoçarás amanhã, por exemplo. Em primeiro lugar está o bode expiatório.

— Daqui a meia hora sou teu, homem!

— Bode expiatório! prosseguiu Anastácio murmurando entredentes e tremendo convulsivamente. Eram trinta demônios em roda de mim: "Salva teu filho; o padrinho! o louco! o procu­rador teu amigo".

— Anastácio...

— Não! guarda o ovo para amanhã, Felisberto! É preciso que me leves já, sem perder um instante à casa do...

— Está bom; larga-me.

— Vens? perguntou Anastácio Agulha, com um riso sinistro.

— Vou sim; larga-me, deixa-me ir vestir umas calças e um paletó...

— Não calças! paletó! ovo! comerás tudo amanhã! Vem!– Anastácio!

— Ah! não queres vir por bem? pois hás de vir à força! eu te levarei nas costas até, se for preciso...

E apoderando-se do homenzinho, sem que este tivesse tempo de escapar ao assalto, Anastácio Agulha atravessou a alco­va, o corredor e saiu à rua.

— Anastácio! deixa-me! bradou o procurador, abanando com as mãos, a cabeça e as pernas, sem conseguir livrar-se dos braços que o subjugavam.

A vizinhança atraída pelos gritos correu à janela.

— Que é aquilo?

— O Albuquerque de ceroulas e camisa de flanela! Para den­tro, menina! Já para dentro!

— E quem será aquele outro? Pôs a porta abaixo, gritou, fez as últimas e agora leva o procurador carregado!

— Deixa-me! vociferava a vítima, lívida de cólera e de medo.

Era tarde porém! Anastácio Agulha já não se pertencia: pertencia às regiões do fantástico e do impossível. Sem prestar ouvidos aos gritos do procurador, ao grupo dos vizinhos, e de alguns transeuntes que se aglomeravam, com os dentes cerrados e o chapéu mergulhado até as orelhas, deu novo e valoroso impul­so aos braços, respirou vibrantemente o ar e carregando o procu­rador ao ombro deitou a correr pela rua abaixo.

Alguns assobios e gargalhadas partiram atrás do grupo incompreensível.

— Vamos ao louco! vais levar-me ao louco! Hás de atirar-me nos braços do louco! rosnava ele, sacudindo o procurador.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo encomendava nesse momento a alma a Deus.

 

XI
A CAXUXA!

A última e fabulosa aventura de Anastácio Temporal Agulha teve os mesmos resultados das outras. Esse homem fora talhado pelo destino para o que houvesse de mais incrível e inenarrável no universo. Ao mesmo tempo, porém, que tantas e tão excêntricas cenas o acompanhavam e precediam na sociedade, uma estrela feliz parecia guiá-lo, protegendo-o a todo o momento, com essa pertinácia da providência inacessível ao raciocínio humano.

Anastácio Agulha, tipo de que o ex-visconde Ponson du Terrail poderia tirar as mais rocambólicas vantagens, era um prodígio de originalidade e felicidades impossíveis. Ainda hei de deixá-lo em um capítulo qualquer torrado dentro de uma frigideira, e no capítulo seguinte fá-lo-ei passear pela Rua do Ouvidor, a cavalo, e de hábito da Rosa na casa do paletó.

Se V.Exa, cuida que esse personagem é criação apenas da fantasia e de uma imaginação excêntrica, tomo a liberdade de assegurar-lhe que se engana. Há no Rio de Janeiro, a quem mais de um gracioso tem chamado Babilônia Americana, uma profusão de velhacos, uma caterva de criaturas burlescas e fora do alinhamento, que fariam a fortuna de Chama se já não houvessem servido em grande parte para a glória do nosso original caricatu­rista P. G., sob cujo lápis penetrante e vivo o ridículo fustigado morde-se e pula como um diabo preso pela garganta!

Entre nós há Anastácios Agulhas a torto e a direito, e se con­siderarmos o tipo pelo lado da velhacaria e do desaforo, isso então é que é! Em cada esquina há três pelo menos!

Os procuradores (com – c – e não com k, oh Felisberto Canudo!) os procuradores sim: têm tomado novo aspecto agora; já não moram na Rua da Providência, moram nos palacetes do... moram nos mais esculturais palácios da terra! A tua raça, oh Albuquerque e Mélo (com que e não com q) desapareceu completamente na onda tempestuosa do progresso, que arrastou tanto ciganos, tantos meirinhos, e tantos imperadores do Espí­rito Santo! A nova geração é brilhante e sacudida! é um povo de heróis, são os Titãs do processo e os Atilas da bolsa pública! Contigo, Felisberto, sumiu-se aquele resto de ingenuidade e de lhaneza dos nossos antepassados.

Tu roubavas é certo, procurador, roubavas, mas roubavas com sinceridade, roubavas com uma nobre segurança de espírito, que era o condão das passadas eras! Os teus gloriosos descen­dentes diferem em tudo do tronco primitivo. O único ponto de semelhança que há entre vós, Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, é que os de hoje estragam a ortografia da mesma maneira!

Da herança paterna foi o único tesouro que a moda não pôde ainda perverter, nem a gramática modificar sequer! Donde se conclui, oh! Felisberto, que a esperteza é uma ciência inata e que não é preciso recorrer à sintaxe para ter um diploma de velhaco ou de tratante!

Vamos reatar sem mais demora o fio entrecortado!

Anastácio Agulha, até o canto da Rua do Saco, carregou desabrida e valorosamente aos ombros o desditoso Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. Os gaiatos perseguiam gritando os fugitivos, e as exclamações acompa­nhavam-nos em todos os sentidos:

— Oh!

— Vejam!

— Que é aquilo?

— São dois doidos!

— É o procurador!

— Pega! bradavam os moleques acelerando os passos e cer­cando os dois à esquerda e à direita entre gargalhadas estridentes.

Anastácio Agulha, no canto da rua, estacou subitamente, despejando o procurador sobre a calçada.

— Irra! como pesa este magricela!

As risadas aumentaram, e os curiosos atracaram de todo a vítima e o algoz. Anastácio abanava-se com o chapéu, suando por todos os poros; quanto a Felisberto, o magro Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, torcia-se no chão apalpando as pernas, a ilharga e os ombros moídos pela queda.

O terror, porém, imprimiu-lhe ao corpo uma elasticidade fenomenal. Leve e pronto como o gato, o procurador ergueu-se de um salto e precipitou-se gritando e gesticulando para a casa. Anastácio perseguiu-o de novo; de novo a assuada acompanhou ruidosamente o fugitivo e o agressor. Enfiaram juntos pela porta adentro e quando Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo ia a respirar julgando-se livre do perigo, os braços nervosos de Anastácio Agulha abafaram-no em um aperto Vertiginoso, e uma frase fatídica atravessou-lhe os ouvidos como gotas de chumbo derretido:

— Ah! desta vez não me escapas!

— Aqui d'el-rei!

— Não me escapas!

— Aqui d'el...!

— Não me escapas!!!

— Aqui...!

.................................................................................................................................................................................

Eufrásia Sistema esperara Anastácio Agulha até às três horas da tarde.

— Estou com o coração na mão, dizia ela a D. Quininha Ciciosa.

— Oh! mas a senhora está livre de perigo. Não é, comadre? A Sra. Quitéria comia; fez um sinal apenas com a mons­truosa e imponente cabeça!

— Estou livre, disse Eufrásia. E Anastácio? Anastácio que saiu daqui de manhã como um raio? Aquele homem há de ser causa das minhas desgraças. Ora, vejam que gosto! Deixar-me só até esta hora, assustada e sem saber o que aconteceu por lá.

— Fé em Deus, minha filha, observou a Sra. Quitéria do Amor Divino, preparando novo prato; fé em Deus e na Santís­sima Virgem da Conceição!

— Se eu mandasse à casa do procurador, amigo dele? Mas nem sei onde esse homem mora, por minha desgraça!

— Está tratando de algum negócio, replicou D. Quininha com um sorriso amabilíssimo, separando as fitinhas que se haviam emaranhado umas nas outras; algum negócio sério! quem sabe, D. Eufrasinha?

— Qual! Meu marido tem um gênio que ninguém entende. A senhora não viu como ele saiu hoje falando, fazendo sinais, dizendo umas cousas de gente doida? Estou que não me posso ter de susto!

— Nada de pretubação, minha filha, articulou a comadre dispos­ta a sacrificar um resto de carne ensopada que lhe estava em frente.

Parou nesse momento um carro à porta.

— Será ele? disseram as três mulheres ao mesmo tempo.

D. Quininha Ciciosa, sempre cheia de doçuras, sorrisos e fitas, correu à janela da sala.

— É ele com certeza. Há de dar-me alvíssaras, D. Eufrasinha! Mas, logo depois:

— Não é não, é uma moça!

— Uma moça? perguntou Eufrásia admirada.

— Deixe-me tirar estes pratos daqui, acudiu a Sra. Quitéria do Amor Divino, atrapalhada com o bufete, o banco e os pratos que a rodeavam.

— Quem será? continuou Eufrásia Sistema. E erguendo a voz ainda fraca:

— É para cá, D. Quininha?

— É sim, D. Eufrasinha. Ela está perguntando não sei o que a D. Candinha. É, é para cá! A Felizarda está mostrando a porta e lá vem ela! Entrou.

A oficiosa senhora retirou-se da janela e veio para o quarto, com a perturbação e esse ar inquieto que a novidade imprime especialmente às filhas de Eva.

— Mas, meu Deus, eu não conheço ninguém..., disse Eufrá­sia refletindo.

Nesse instante um rumor de sedas amarrotadas e um vivo perfume de patchouly invadiram a sala e a alcova.

— Sou eu, Eufrasinha! Eu! exclamou a elegante, penetrando familiarmente no quarto.

— Joaninha!

— Meu bem!

Joaninha Sacramento apertou entre os braços a cabeça de Eufrásia, enchendo-a de beijos, carícias e risadas cristalinas.

Notava-se grande diferença na fisionomia e no caráter geral da faceira mulher de Sacramento.

O rosto naturalmente corado e vivo estava um pouco pálido e umas leves rugas cruzavam-se-lhe entre os sobrolhos inquietos. Os lábios rubros e úmidos, constantemente entreabertos, as jóias cintilantes, o vestido luxuoso que lhe envolvia o corpo emagrecido, tudo isso dava-lhe um novo ar e novo aspecto que impressionava.

O leque estremecia palpitante entre os dedos enluvados.

— Minha amiga D. Quininha: D. Joaninha Sacramento; disse Eufrásia apresentando as duas.

A mulher de Sacramento curvou ligeiramente a cabeça, der­reando o talhe com uma graça toda parisiense.

— Mas ainda não me disseste, exclamou Joaninha Sacra­mento, abraçando de novo a amiga, não me disseste nada a teu respeito. Estou sequiosa de novidades!

O pequeno fez ouvir um vagido penetrante e áspero.

— Oh! oh! parabéns, minha jóia! bravo! deixa-me ver! É menino ou menina? Que nome vais lhe dar? É bonitinho? Anda, passa-o para cá.

A criança, meio oculta junto ao seio materno, foi exposta à investigação e à análise como acontece aos objetos raros.

— Oh! tão pequeno! é engraçadinho, sabes? Dá cá um beijo, filhote! Pega, pega teu filho! Como estranha!

Vinha surgindo o colossal perfil da Sra. Quitéria do Amor Divino, que lambia ainda os beiços e palitava os dentes.

— Deus lhe dê as mesmas! disse a gorda mulher saudando

Joaninha, que a olhou entre a curiosidade e a zombaria.

— É a comadre, volveu Eufrásia.

— Ah! E Joaninha Sacramento desprendeu uma gargalhada vibrante e prolongada.

A Sra. Quitéria do Amor Divino lançou-lhe um olhar carre­gado de fastio e de cólera.

Eufrásia acudiu a tempo.

— E tu como estás? Que tens feito? Há que tempo não recebo notícias tuas!

— Mais de três anos!

— É verdade. Em uma carta escrita pelo procurador Melo a meu marido, quando estávamos em Macaé, é que eu soube que tu te havias mudado para Petrópolis.

— Já mudei-me para a Corte outra vez! Petrópolis está triste que é uma lástima. Aqueles alemães enfastiavam-me!

— E o ... ? ia dizendo Eufrásia, mas a mulher de Sacramento interrompeu-a.

— Ah! não me fales nisso. Aquilo é um pedaço d'asno. Felizmente acordei a tempo! Um rapaz sem espírito, sem graça, sem... e fez o movimento do polegar e do índex para exprimir o pensamento.

— Quem é esta lambisgóia derretida? perguntou a comadre em voz baixa a D. Quininha Ciciosa.

— Não sei, não.

— Há de ser das tais! volveu filosoficamente a Sra. Quitéria. Hum!.., aquelas sedas... aquela maneira de dizer as cousas... E dando duas pancadas nas faces: – Nós estamos todos no mundo: valha-nos Nossa Senhora do Carmo!

— Onde está teu marido, Eufrasinha?

— A quem perguntas, minha filha! Saiu daqui como um louco de manhã, e até agora não há quem me dê notícias dele. Disse que ia à casa do procurador arranjar não sei o quê...

— Ah! o célebre procurador Melo! Foi por um conhecido dele que eu soube que tu moravas nesta rua! Dize-me cá: tens madrinha para o pequeno?

— Por ora, não.

— Pois, minha cara, se quiseres dar-me a honra.., prosseguiu a elegante, dobrando o talhe com um gesto encantador.

— Antes uma boa morte de que Deus a livre.., rosnou a Sra. Quitéria do Amor Divino.

— Com todo o gosto, respondeu Eufrásia. Como vai teu marido?

— Quem? Sacramento? Pauvre petit!!

— Que diabo de língua é aquela? perguntou a comadre, puxando o vestido de D. Quininha Ciciosa.

— Oh!

— Admiras de me ouvir falar francês? Pois, ma toute belle, não faço mais do que aprender francês, piano, flores de papel, tapeçaria e ir de vez em quando ao teatro! Voilà!

A Sra. Quitéria do Amor Divino abria desmesuradamente os olhos, e D. Quininha emaranhou de novo as suas mil e uma fitinhas saltitantes.

— Mas teu marido?

Joaninha Sacramento moveu com mais rapidez o leque, e mordeu o lábio, franzindo o sobrolho.

— Está por aí; não sei: faz política talvez! E riu nas últimas palavras, consertando o botão da luva.

— Por que ele não veio agora com você? indagou ainda Eufrásia insistindo.

— Ora, minha filha, porque não quis. Está no seu direito. Tu sabes que lugar onde não houver dois eleitores pelo menos não tem a honra de receber Sacramento! Mas conta-me: tencionas voltar para Macaé? continuou Joaninha Sacramento, sentando-se desembaraçadamente na cama.

— Se eu fosse a dona da casa, resmungou a Sra. Quitéria do Amor Divino, no ouvido de D. Quininha Ciciosa, botava esta sujeita pela porta fora!

Eufrásia ia responder quando Anastácio Agulha subia as escadas rindo, cantando, e trocando palavras com alguém que o acompanhava.

— Oh! felizmente! é Anastácio!

A mulher de Sacramento dirigiu-se à sala e foi até a porta.

Entram Anastácio Agulha, o procurador Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, completamente vestido, e um outro sujeito a quem Anastácio dava o braço.

Joaninha Sacramento dirigiu-se ao marido de Eufrásia, esten­dendo-lhe ambas as mãos em um movimento livre e adorável.

— Oh! a Sra. Sacramento! exclamou Anastácio Agulha, dando dois passos para a frente e indo ao encontro da elegante.

Mas o procurador detendo-o impetuosamente:

— Esta mulher...

— Quê!

Eufrásia Sistema prestou o ouvido ansiosa: a comadre e D. Quininha correram à porta da alcova.

— Chama-se... continuou o procurador com a face vermelha e os olhos acesos.

— Quem é este homem? indagou altivamente Joaninha Sacramento.

— Chama-se Caxuxa! É a Caxuxa! todo o mundo conhece a...

— Caxuxa! bradou Anastácio Temporal Agulha, enterrando o chapéu até os olhos e brandindo a bengala.

Joaninha Sacramento recuou um pouco pálida, mordendo nos lábios um sorriso de piedade e de escárnio.

Eufrásia Sistema, prevendo algum novo desacato da parte de Anastácio Agulha, ergueu-se a custo na cama e chamou o marido, com a voz trêmula e assustada:

— Anastácio!

— Caxuxa! repetiu ainda Anastácio Agulha, faiscando de entusiasmo.

— Anastácio! prosseguiu a voz de Eufrásia.

A Sra. Quitéria do Amor Divino voltava-se nesse momento e prevendo as intenções da doente, que parecia querer abandonar a cama e correr à sala:

— Credo, menina! Oh! minha senhora, você está maluca?

— Que é? indagou D. Quininha Ciciosa, meio atemorizada já com o que se ia passando por ali.

— Pois a senhora não quer ir apanhar vento, sair do quarto, fazer quanta asneira há!

Eufrásia tremia dos pés à cabeça como se fora atacada de febres intermitentes.

Anastácio Agulha, fazendo sempre evoluções com a bengala como um tambor-mor, agarrou em um dos braços de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que dessa vez, valha a verdade, teve alguns receios pela sua magríssima pessoa.

— Fala, Felisberto! Dize alguma cousa, Felisberto! Eu estou calmo; estou calmo; tu vês que eu estou calmo demais, Felisberto!

— É Caxuxa, replicou o procurador, despedindo as palavras desabridamente, uma sobre outra, roucas e duras como a escala cromática de um piano velho. Esta mulher anda de carro, tem sedas, tem brilhantes, dança nos bailes públicos e pôs a fortuna do Carneirinho Campos de pernas para o ar!

— De pernas para o ar! ecoou Anastácio Agulha, sem perder um só gesto do procurador.

— Não tem coração, nem sentimento, e deixou o marido para atirar-se nos braços do primeiro homem que passou!

— O senhor é um miserável! disse Joaninha Sacramento, coberta de uma palidez mortal. E dando um passo para a porta: – Deixem-me passar.

O sujeito a quem Anastácio Agulha dava o braço ao entrar em casa, olhava para tudo com a mais correta indiferença. Ouvindo, porém a última frase da elegante, pôs uma cadeira no corredor e sentou-se encostando os pés à parede, a ponto de tomar a passagem toda.

Anastácio Agulha desse momento em diante sentiu o seu sistema orgânico encher-se de todas as qualidades descomunais, que o caracterizavam nas horas de maior tempestade.

— Não! não passará! É preciso que a senhora ouça tudo! E rangendo os dentes uniu o rosto ao rosto da mulher de Sacramento, exclamando estrondosamente: – Você vai ouvir tudo, Caxuxa!

O homem do corredor dormia a sono solto como César na véspera da batalha de Farsália.

— Entrar na casa de uma família honesta! prosseguiu o procurador, sob a pressão elétrica dos olhos de Anastácio Agulha. Sem dizer a ninguém quem é! Sem declarar que uma mulher de sua laia só deve subir as escadas de uma família para pedir dois vinténs de esmola!

Anastácio Agulha sem saber já onde tinha a cabeça, meteu a mão no bolso e tirando uma moeda de cobre lançou-a aos pés de Joaninha Sacramento.

— Oh!

A infeliz mulher correu à alcova de Eufrásia Sistema.

— Eufrásia! bradou ela mais num gemido de dor do que num grito de indignação.

— No quarto de minha mulher! vociferou Anastácio, colo­cando-se ameaçador à porta da alcova. Passa fora, já! Ou então!...

Joaninha Sacramento, lívida como uma defunta, teve medo dessa vez, mais talvez do ridículo, que lhe passava sobre a cabeça, do que pelos insultos que lhe cuspiam em face.

— Anastácio! exclamou ainda Eufrásia, Anastácio! pela vida de nosso filho!

A Sra. Quitéria do Amor Divino continha a custo Eufrásia Sistema, que esforçava por levantar-se da cama:

— Diabo daquela mulher! resmungava a gorda comadre. Para que veio cá essa bruxa? Bem feito que lhe ponham a calva à mostra! E ainda aquela não sei que diga soube caçoar da gente!

— Deixe-me comadre!

— Nossa Senhora do Monte do Carmo não premita isso, minha filha! Já não basta o cheiro que aquela endemoniada botou aqui no quarto! Uma cousa que faz tanto mal para a gente que está como a senhora!

Quininha Ciciosa arriscou-se a aproximar-se de Anastácio Agulha:

— Sr. Anastácio, balbuciou ela, compadecida pela sorte de Joaninha Sacramento.

— Saia daqui! uivou Anastácio Agulha, cravando-lhe um olhar incendiário.

D. Quininha desprendendo — um ah! musical, sumiu-se no quarto como uma andorinha que partiu a asa.

— De forma que a senhora.., que você, continuou Anastácio dirigindo-se a Joaninha Sacramento, acha que minha casa é um lugar de dança, é um mau lugar, é um lugar que... Sabe duma cousa? Não sei onde estou que não faço já aqui voar tudo pelos ares!

— Não há pintalegrete que não conheça esta mulher! repli­cou Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. Na Rua do Ouvidor o carro que aparece todos os dias com um boleeiro fardado, de chapéu branco, é dela! As melhores cassas, sedinhas e chamalotes são para ela! Tem escravos está sujeitinha, tem luxo, boa mesa e não passa de...

Joaninha Sacramento adiantou-se para o procurador. O homenzinho acastelou-se à sombra de Anastácio Agulha.

— Se eu tivesse na minha mão um chicote, disse ela com a voz convulsa e surda, tu saberias engolir um por um os desaforos que acabas de dizer!

E tomando um grande ar e um porte majestoso, a pobre diva dirigiu-se à porta da sala.

— Eu é que ainda não disse tudo o que me está fazendo cóce­gas aqui na garganta! sibilou Anastácio Agulha.

— O Sr... volveu Joaninha Sacramento com um triste sorriso de comiseração. O senhor é marido de uma amiga minha e...

— Amiga! Retire a palavra sem demora! Amiga, marido! Aqui não há nada disso, ouviu? Onde está o seu? Aonde está Sacra­mento? Não tenha vergonha, vamos! acabe de tirar a sua máscara!

— Sacramento? Antes de ser minha vítima, foi sua!

— Hein?

— Sr. Anastácio, é mais conveniente que acabe neste ponto uma comédia tão ridícula como miserável! Descanse, nunca mais porei os pés na sua casa. Vá ver sua mulher que é melhor! E quan­to a este ladrão de órfãs (referia-se ao procurador), eu o mandarei castigar por um lacaio, amanhã ou depois!

Mas Anastácio Agulha sem lhe dar tempo de pronunciar as últimas sílabas, atirou-se a Joaninha Sacramento, e arrastando-a pelo braço violentamente, levou-a para a janela quase de rastos.

— Anastácio! gritou o procurador temendo um desastre.

A vizinhança, avultando entre todos as Sras. Felizarda, Cândida, Clementina Arrozal, e os mais habitantes do quarteirão, estava à janela desde a chegada do luxuoso trem.

Anastácio Agulha, rubro e desesperado, dirigiu-se aos vizi­nhos em exclamações diabólicas e gesticulação horrível:

— Sabem quem é esta? É a fera, a mulher dos bailes públicos, a tal Caxuxa que todos conhecem e que pôs a fortuna do outro de pernas para o ar!

— Oh! diziam as mulheres. Senhor! que será aquilo? Joaninha Sacramento tentava debalde fugir ao aperto da mão crispada de Anastácio Agulha.

— É ela! Ninguém a receba! Esta mulherzinha é da pele do diabo! O carro de chapéu branco e de boleeiro fardado, é dela! Os chamalotes são dela! as chitas são dela! O Carneirinho Campos foi dela!

E arrancando o leque das mãos fracas e trêmulas da infeliz vítima, arremessou-o à calçada, onde o leque se fez em pedacinhos.

O povo aglomerou-se pouco a pouco em redor do carro.

O próprio boleeiro, sem poder conter-se, ria olhando para a patroa.

— Pelo amor de Deus! murmurou Joaninha Sacramento, humilhada até o fundo da alma. Deixe-me ir embora por tudo quanto há de mais sagrado na terra!

Anastácio Agulha, sem abandonar-lhe o pulso que subjugava entre os dedos de ferro:

— Vai! vai-te embora! O teu lugar é outro, serpente! não me ponhas mais o pé em casa de gente honrada! Se tu não fosses uma mulher, eu...! mas és uma mulher, és uma mulher, não podes negar que és uma mulher! A vizinhança toda te conhece! Vocês todos não conhecem ela? Lá está teu boleeiro branco e teu carro fardado! Vem! não te demores mais um minuto que já o diabo me está dando vontade de te atirar da janela abaixo!

Quando Anastácio Agulha, em risco de a fazer rolar pelas escadas, chegou à porta da rua, arrastando a pobre mulher, a autoridade policial embargava-lhe os modos arrogantes e punha cobro aos padecimentos da desventurada Sacramento.

— O senhor vai seguir-me à delegacia de polícia.

— Eu? E por quê? Sabe o senhor quem é esta mulher? Joaninha Sacramento dirigiu um olhar suplicante à auto­ridade.

— Este carro é seu, minha senhora?

— É, volveu ela, sem poder erguer os olhos, corrida de ver­gonha e de cólera.

O povo amontoava-se à porta murmurando, cochichando e sorrindo.

A autoridade policial fez separar a multidão e abriu a porti­nhola do coupé.

— Tenha a bondade de entrar, minha senhora.

Joaninha Sacramento, cabisbaixa sempre, subiu o estribo e atirou-se chorando dentro do carro. O boleeiro fustigou os animais, e o carro partiu seguido das gargalhadas do povo.

— Vou participar tudo ao Dr. delegado, e daqui a uma hora o senhor irá à polícia para se averiguar o fato.

Anastácio Agulha não prestou ouvidos à ameaça da autoridade.

Galgou dum pulo as escadas da casa e entrou na sala.

O sujeito do corredor, que à saída de Joaninha tinha vindo à janela em companhia do procurador, apresentava um novo aspecto no momento em que apareceu Anastácio Agulha.

Era uma confusão a sala toda!

O homem arrebentava vasos de porcelana, quadros e cadeiras contra a parede, e, embrulhado no tapete à guisa de manto, dançava, saltava e estorcia-se, cantando desenfreadamente uma modinha sem nexo:

Vou-me embora desta terra:

Que eu no mato é que nasci;

A laranja é boa fruta

Mas eu gosto mais do limão.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, acocorado atrás do piano, suava e tremia como um con­denado. A Sra. Quitéria do Amor Divino fugira para a cozinha e D. Quininha Ciciosa escondera-se dentro do guarda-roupa.

O homem cantava, quebrava, e pulava sempre!

Anastácio Agulha chamando-o a si por um movimento febril e irresistível, conduziu-o em um salto à porta da alcova.

— Eufrásia! retumbou ele: aqui está o homem. É o padrinho! é o segundo pai! é o nosso compadre! Apresento-te o senhor...

Mas o sujeito tapou-lhe a boca com ambas as mãos, repetindo tempestuosamente a segunda quadra da modinha.

Eufrásia Sistema tinha perdido os sentidos.

 

XII

NÃO HÁ TÍTULO QUE SIRVA

As reticências que eu tive o cuidado de espalhar por baixo dos gritos do procurador, atracado de novo à casa da Rua da Providência, quando se julgava completamente livre das perse­guições de Anastácio Agulha, explicam-se da mais simples e admirável maneira.

Anastácio conseguira apagar com uma ou duas promessas mais, os terrores profundos de que se achava possuído o magro Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. O certo é que uma hora depois, entravam ambos, braço aqui braço ali, no cartório do escrivão Lopes, amicíssimo do procurador, e ainda mais dos rendimentos de qualquer órfã desprevenida. A fisionomia característica desse escrivão, a quem vulgarmente chamavam Lopes Pilha ou Pilha-Pilha, há de aparecer em dois ou três notáveis escritos meus, para irmos todos, sem grande traba­lho, aos arquivos da posteridade. Descansa pois, oh! Lopes, que mais dias menos dia eu te pregarei na soberana galeria das celebri­dades forenses e dos bustos judiciários!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo apresentou Anastácio Agulha ao escrivão, e puxando-o de parte:

— Tu conheces muito este sujeito; é um tal Anastácio Agulha, alfinete, espeto ou o diabo que o carregue! É doido varrido, mas os doidos hein? os doidos servem-nos à grande. Por exemplo: fiz um contrato que... E concluiu o período no ouvido do escrivão.

O outro estalou com a língua vibrantemente.

— Caspité, Melo! Isso é negócio da China, meu velho! Mas já se sabe que eu não fico chuchando no dedo, vê lá, eh?

Anastácio Agulha, meio enfadado com a demora dos dois, começou a resmungar fazendo um tremolo com a bengala no soalho.

— Lá está o furioso rosnando, articulou o procurador; vem para cá, Lopes, e não o zangues em nada, senão ele arrebenta-nos como se tu fosses um paliteiro e eu outro!

O escrivão Lopes era um homem redondo, de cabelo à escovinha, grisalho, barba cerrada, olhos verdes de uma eletri­cidade felina, e senhor de uma voz tão fina que parecia pertencer a um recém-nascido. Vivia sempre risonho, com uma larga sobre­casaca de cor duvidosa e umas notáveis calças curtas de presilhas envernizadas a que ele chamava, – a companheira de minha infân­cia. No mais era escrivão e, para tudo dizer, ganhara nos tribunais e fora deles a expressiva alcunha de Pilha-Pilha.

Os dois aproximaram-se de Anastácio Agulha, que conti­nuava a resmungar e a fazer arabescos com a bengala no chão.

— Quando quiseres, Anastácio, começou o procurador, armando-se do seu mais benévolo sorriso, quando quiseres. Está o nosso amigo pronto a levar-te à casa do homem!

— Como se chama o homem? perguntou Anastácio Agulha, erguendo-se imediatamente.

— Bernardo José, respondeu o escrivão todo risonho.

— Pior! volveu Anastácio impacientando-se, está o senhor a rir como se isto não passasse de um pagodes! Pois, isto não é um pagode, meu caro! Aqui está Felisberto que pode dizer se isto é um pagode!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo por prudência interveio no diálogo:

— Vai-te aprontar, Lopes.

— Para quê? replicou Anastácio Agulha. Não se apronte, não é preciso aprontar-se. Aqui estou eu que não me apronto nunca!

O procurador desviando um pouco o amigo, disse-lhe acele­radamente e em voz baixa:

— Depressa, desgraçado!

— Que é?

— Vai vestir o casaco, pega no chapéu e anda, se não queres ver bonito!

O escrivão olhava atônito para o procurador.

— Ele é capaz de carregar-te às costas e derramar-te depois no meio da rua como se fosses uma trouxa!

— Que está você a resmungar aí, Felisberto! exclamou Anastácio Agulha. Que diabo de zunzum de todos os diabos! Oh! Sr. Lopes, vamos que são horas!

O escrivão, sem que Anastácio Agulha tivesse tempo de o impedir, enfiou a sobrecasaca legendária, que estava junto à mesa numa enorme poltrona, e tomando o chapéu, um desses chapéus impossíveis, verdadeira fotografia da torre da Cande­lária, esperou, sempre risonho, as ordens de Anastácio Agulha.

— Vamos!

Saíram os três, e no meio da rua houve logo uma questão entre eles. Anastácio quis por força que todos fossem em um tílburi, por ser cousa de dar logo na vista! ponderava ele.

O boleeiro, felizmente amedrontado pelos gestos de Anas­tácio, que ia apoderar-se do freio do animal, fustigou o magro corcel e dobrou a rua a todo o galope.

— Bruto! gritou Anastácio Agulha, fazendo viravoltas com a bengala, que bateu em cheio no elevado chapéu do escrivão.

— Sabes de uma cousa? murmurou este ao procurador. Estou meio arrependido de ter entrado no barulho. O homem é das costelas do demônio.

— Que te disse eu?

— Resmunga-se ainda, Felisberto! acudiu Anastácio, mor­dendo os lábios raivosamente.

— Não, homem, é aqui o Lopes que me dizia...

— Quê?! Que te dizia ele? Porque alguma cousa te dizia ele! dize-me o que ele te dizia, Felisberto.

— Nada, meu caro Sr. Agulha, nada ou quase nada. Aper­temos o passo que eu estou doido por apresentá-lo sem mais demora; tenho muito que fazer daqui a pouco. Aquele negócio que tu sabes, Melo!

— Contanto que me apresente, volveu Anastácio Agulha, é o meu único desejo hoje! ser apresentado é o que eu quero, é o que eu sonho, é o que eu!... Ah!

Foi tão forte a exclamação que o escrivão Lopes perdeu o equilíbrio, e da calçada correu a patinhar na rua enlameada.

— Que tens tu? indagou Felisberto ansiosamente.

— Lembro-me agora! retrucou Anastácio Agulha, franzindo energicamente os sobrolhos... Lembro-me de que o homem pode não estar em casa, e então...!

— Então?

— Então eu não respondo por mim nem por vocês, nem por ninguém!

Dessa vez o risonho escrivão tomou uma atitude séria e inquieta. Lopes Pilha já começava a ter medo de Anastácio Temporal Agulha.

 

XIII
ENTRAM EM CENA O PADRINHO, O CASAL AGULHA, OS VIZINHOS, O MENINO, O PROCURADOR, O AUTOR, E NÃO SEI MAIS QUANTOS PERSONAGENS ILUSTRES

Estou disposto a não fazer largas considerações sobre o com­padre escolhido por Anastácio Agulha, para excitar mais viva mente a curiosidade dos amantes da fábula e do maravilhoso. Quero deixá-lo caracterizar-se a si próprio.

E depois, francamente, já ando um pouco moído com os espalhafatos do Sr. Temporal Agulha e não sei se a minha pena, verdadeira até o excesso, poderia apanhar e descrever as qualidade monstruosas do novo personagem, que tomo a liberdade de oferecer aos leitores desta serena, poética e lacrimosa história de salão.


Bernardo José, cujo sobrenome não houve nunca quem tivesse a ousadia de pronunciar, era um homem tempestuosamente feio, sem caráter definido, hóspede assíduo do Hospital da Misericórdia (casa dos loucos) e que se retirara do comércio por ter incendiado o armazém ao meio-dia.

Era pobre? era rico? era casado? era solteiro ou viúvo? Poupe-me a leitora respostas a perguntas que eu teria medo de fazer a mim próprio. Bernardo José é um tipo indescritível e de que no entanto há ainda hoje mais de um exemplar fora do Hospício de Pedro II.

Para que declarar os meios de subsistência desse homem? Quantos compatriotas se acotovelam por essas ruas todas, respeitados, cortejados e condecorados, sem que ninguém saiba, nem eles mesmos, a origem de seus nascimentos ilustres e de sua fortuna invejável!

Mas reconheço que estou moralizando demais o fato; fale­mos de Bernardo José! Bernardo José sem sobrenome! Bernardo José, compadre legítimo de Anastácio Temporal Agulha e de D. Eufrásia Sistema Agulha!

Quando o escrivão apresentou Anastácio ao futuro padri­nho, este último, depois de ensaiar quatro ou cinco cortesias fora do comum, sentou-se em uma cadeira dando as costas a Anas­tácio Agulha.

O marido de Eufrásia Sistema arregalou os olhos admirado, mas dando imediatamente um murro em cima da mesa redonda:

— É ele! isto sim! isto é que é! Graças a Deus! Há de ser o compadre! Havemos de ser padrinhos todos! Padrinhos para a vida e para a morte!

Bernardo José... dormia.

Uma mulher idosa... (já ia eu entrando em vulgaridades descritivas acerca do homem indescritível!) Não havia mulher idosa nenhuma não! Mentira! Esse extraordinário sujeito vivia só (só com as suas barbas e com a sua loucura!).

Bernardo José dormia.

Anastácio Agulha, metendo as mãos nos bolsos, continuou dando à voz o ruído e a força pulmonar das grandes ocasiões:

— Ah! Estás feliz, meu filho! Este homem te salvará, meu anjo!

E sacudindo o compadre:

— Não é verdade, anjo, que tu salvarás o homem?

O escrivão, vendo o negócio em começo de desastre, retirou-se sorrateiramente sem dizer uma só palavra, olhando de esguelha para Anastácio Agulha.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo propunha-se a fazer o mesmo, quando Anastácio Agulha, agarrando-o pela gola:

— Repara, Felisberto! Vê, Felisberto! É ele, Felisberto! Que queres de mim? Que queres de... ? E abriu os braços ao procurador.

— Pelo amor de Deus! exclamou o pobre homem sentindo o abraço iminente.

Bernardo José, sem que ninguém previsse semelhante acon­tecimento, de um pulo nervoso, ficou dois minutos em pé, abaixou-se incontinenti, agarrou a cadeira por um dos pés e erguendo-a com o braço hirto, e sem articulações começou a passear solenemente pela sala. Anastácio Agulha imitou-o maquinalmente, e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, possuído da febre contagiosa, agarrou tam­bém a sua cadeira e marchou atrás de Anastácio Agulha.

— Basta! gritou Anastácio. Felisberto, vem! vamos que são horas! Você sabe, Felisberto, que eu às vezes faço cousas de doido e...

— Às vezes! murmurou o procurador, ensaiando um sorriso que Anastácio Agulha tolheu com um furioso estampido:

— Sempre! Pois sim, sempre! Melhor para mim, melhor para ti, melhor para eles! Vamos, compadre. Troquemos os chapéus, Felisberto; dá cá o teu!

— Hein?

— Cobre-te com o meu; irás com o do compadre e vice-versa. Cada um irá com o vice-versa! Vice-versa para todos!

— Que diabo?...

— Mau! Já me está subindo a mostarda ao nariz! Tome este chapéu, compadre; talvez lhe sirva; se não servir, melhor; eu mesmo queria que não servisse! Dava mais na vista! Cubra-se e venha.

Bernardo José acompanhava todo esse diálogo com um olhar fúnebre, que incutia na alma do procurador os maiores receios pela sua individualidade. Momentos depois seguiam os três para a casa de Anastácio Agulha. Durante o trajeto nada houve digno de especial menção a não ser uma espécie de luta empenhada entre Anastácio e o procurador, por não querer este último conservar na cabeça o chapéu de Bernardo José que lhe descia até o pescoço.

— Põe o chapéu, Felisberto!

— Mas, homem, se ele me entra pela cabeça abaixo! Deixa-me ir assim mesmo; vou-me abanando que é mais bonito!

— Nada de bonitos nem de feios, Felisberto. Põe o chapéu!...

Bernardo José apertou tristemente a mão do procurador, e depois de exalar um grande suspiro:

— Põe o chapéu! disse ele com a sua mais melodiosa voz.

— Mas se eu não posso ver por onde ando depois! O chapéu tapa-me a vista!

— É por isso mesmo! observou Anastácio Agulha.

— Como! por isso mesmo?

— Pões ou não pões este diabo na cabeça! vociferou Anas­tácio Agulha tempestuosamente. E apoderando-se de surpresa do chapéu que o procurador tinha nas mãos, colocou-o rapidamente na cabecinha do pobre homem, enterrando-lho até os ombros com um murro monstruoso.

Além de um gemido oco do procurador e algumas risadas de transeuntes, nada mais aconteceu até chegar a comitiva à casa de Anastácio Agulha.

Já tive a honra de contar à leitora o que se passou aí.

A poder de muitos rogos e ameaças, D. Quininha Ciciosa abriu o guarda-roupa onde se escondera e a Sra. Quitéria do Amor Divino, vindo da cozinha, seu supremo refúgio, acudiram a Eu­frásia Sistema, que perdera os sentidos. Não se pouparam águas aromáticas, espíritos, e o mais que se proporciona ao doente em idênticas circunstâncias.

Nesse ínterim, Bernardo José, que voltara à sala, acocorara-se defronte de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albu­querque e Melo, olhando-o fixamente, sem dizer uma palavra. O procurador, amarelo de susto, não perdia um só dos movimentos do compadre de Anastácio Agulha.

Eufrásia Sistema abriu os olhos.

— Graças! graças a Deus! exclamou Anastácio Agulha uivan­do de prazer.

Eufrásia espalhou a vista pelo quarto, correndo as mãos frias na testa abrasada. Parecia-lhe tudo um pesadelo; infeliz mulher!

— Que estás procurando? Que estás procurando? Aquela...

— Sr. Anastácio! volveu D. Quininha, cujas fitas haviam-se enlaçado de uma maneira impossível. Deixe-a descansar.

— E o que estou eu fazendo, senhora? Parece que não a convidei para sair, nem para dançar o minuetes afandangado!

— Não digo isso, porém...

— Que lhe dói, minha filha? indagou a Sra. Quitéria do Amor Divino, debruçando a sua colossal pessoa sobre a cama.

— Nada, respondeu Eufrásia com a voz fraca e trêmula. Uma escuridão nos olhos!

O menino começou a chorar.

Na sala, Bernardo José, acocorado sempre defronte do procurador, não se movia, não fazia um sinal, um gesto qualquer: olhava só com uma persistência incrível para Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que não cessava de tremer cada vez mais.

Anastácio Agulha salvou o procurador penetrando na sala com a impetuosidade de uma chuva de pedras.

— Está boa, já! Vou convidar a vizinhança.

— Para quê? perguntou o procurador, conseguindo, com a velocidade do medo, escapar à presença de Bernardo José.

— Para tratarmos do dia! do grande dia! do dia do nosso bati­zado. Havemos de nos batizar na Capela Imperial, Felisberto! Se a câmara municipal deixar atacar-se foguetes, bota-se música no Largo do Paço, e nós havemos de ir todos de ônibus para o pagode!

Bernardo José na mesma posição sempre, isto é, acocorado junto ao piano, dormia.

Anastácio Agulha prosseguiu passeando a largos passos:

— De ônibus! Aluga-se uma casa no Engenho-Velho para se dar o jantar! A vizinhança toda vai! Que dia, Felisberto! Podes levar os teus conhecidos que há comida a dar com o pau. Vou mandar fazer fogo de vista! Tu mesmo, tu mesmo farás o fogo de vista! Deves saber fazer um fogo de vista, Felisberto!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo ia protestar, quando uma escrava apareceu à porta da sala.

— Que é lá? perguntou Anastácio Agulha, dirigindo-se à escrava.

— Sou da casa de D. Clementina, sim, senhor. Ela mandou saber...

— Basta, não digas mais! Vai-te embora! Eu respondo o que ela mandou saber.

E chegando intrepidamente à janela:

— Venha! bradou ele cortejando a vizinha Arrozal, que se dependurava da janela de sua casa; venha! Cá está ele já! Não se demore um minuto, entende? Estamos tratando de tudo!

A escrava da viúva Arrozal saía de casa de Anastácio Agulha, quando ele, chamando-a com sibilantes psius:

— Ambrósia! oh Joana! oh Francisca! oh... Chega aí à casa dessas mulheres, à vizinhança, à minha gente, e dize-lhe que venha. Olha, lá está a Sra. Leonarda, vai chamá-la; e a outra também! Anda, negra!

Anastácio Agulha voltou-se à voz do procurador, que de chapéu em punho, se propunha a retirar-se.

— Não, senhor, essa é boa! Fique; vamos ter obra! Felisberto, já me estás tu...!

— Está bem, homem, fico, fico, não te apoquentes!

— Vai acordar o padrinho, Felisberto!

— Deus me livre. Que olhos! vá você mesmo.

— Oh! compadre, levante-se, ande, é dia! Vou apresentar-lhe a roda! Um homem é um homem, homem! Em pé, vamos!

Bernardo José levantou-se e pôs-se a olhar fixamente como uma estátua para Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Que terá ele comigo, senhor? pensou o procurador. Que terá aquele doido comigo?

A vizinhança compareceu ao chamado, com uma pontua­lidade rara.

A Sra. Leonarda, por antonomásia Sinhá Pequena, foi a primeira a abrir a marcha. Todo o seu cuidado nesse dia consistiu na rijeza da goma com que inundou o vestido de chita encarnada com ramagens multicolores. Vinha imponente a Sra. Leonarda, por alcunha Sinhá Pequena! Quando entrou trazia uma charada na ponta da língua.

Seguiu-se-lhe D. Candinha, a devota dos Barbadinhos, com aquele profundo ar de catolicismo e de beatice que lhe ia às mil maravilhas. A viúva do major, a mulher do defunto, não se fez esperar dois minutos. Saudou a todos com um melodioso suspiro,cravando imediatamente os olhos no teto da casa. Anastácio Agulha, mostrando-lhes Bernardo José, que não tirava os olhos de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo:

— É o tal, bradou triunfante; é o mesmo que eu procurava por toda a parte! É o nosso padrinho! Há de batizar-nos a todos porque Deus quer e ele também. O outro é um dos meus melho­res procuradores! Chama-se Felisberto. Vem cá, Felisberto! Essas senhoras são da vizinhança; moram todas aqui por perto.

— Uma é Candinha, outra Sinhazinha, outra não sei o quê! Tudo acaba em inha!

O procurador, sempre perseguido pelos olhos de Bernardo José, curvou-se amavelmente perante as recém-chegadas.

— Com licença! disse a devota dos Barbadinhos. E entrou na alcova. Como vai, vizinha? Oh! comadre, por aqui ainda?

A Sra. Quitéria, pensando nas terríveis cenas de que fora testemunha, não respondeu; suspirou cavernosamente, pondo ambas as mãos no peito.

Entraram no quarto as duas outras mulheres. Depois das saudações habituais, tratou cada uma de examinar o menino e enchê-lo das mais retumbantes carícias.

— Louvado seja Deus! observou a devota, como treme esta criança! Parece que está com frio.

— É tão engraçadinho, não é, D. Clementina? continuou a oficiosa D. Quininha, que já havia principiado a desembaraçar as fitas.

A viúva Arrozal fez um sinal afirmativo com a cabeça, e:

— Qual é o nome, D. Eufrasinha?

— Não sei não, minha senhora. O nome do santo talvez! Ele nasceu no dia de...?

— De S. Crisóstomo, mártir, acudiu a benta dos Barbadi­nhos. E dando um beijo na criança: Psiu, oh Crisostominho! E um nome sério e bonito, não acham?

— Na estrada – 2 – exclamou a Sra. Leonarda, dando um pas­so para a frente e estendendo a mão aberta. – Nome de homem – 2 – Conceito: – Nome de homem. Adivinhem!

D. Quininha Ciciosa sorrindo graciosamente e desembaraçando as últimas fitas:

— Será Amaral? perguntou movendo faceiramente o corpo. As outras mulheres sorriram também, menos a charadista que continuou, como se fosse possuída do sonambulismo:

— Faz dormir – 2 – Falta um h para se beber – 2 – Conceito:– Nome de homem.

A surda e eloqüente senhora voltou-se para os circunstantes com um majestoso ar de vitória e de orgulho:

— Adivinhem.

— Que é? perguntou a amável D. Quininha Ciciosa. Será orchata? Faz dormir!

— Bendito louvado seja com tantas adivinhações! ponderou a devota.

— Não sabem? volveu a charadista. A primeira é Marcolino. Na estrada 2 – marco – nome de homem, 2 – Lino. – Conceito: nome de homem: – Marcolino!

— E a outra? a outra?

— A outra é Etervino! Faz dormir 2 – éter; – Falta um h para se beber – vino – com h era vinho! Foi assim que me ensinou o fiscal!

Anastácio Agulha chegou à porta da alcova:

— Venham para a sala; ou nós entramos lá! É preciso arran­jar e aprontar as cousas sem demora!

— Na chácara... 1 – começou a Sra. Leonarda...

— Qual chácara! nem meia chácara! gritou Anastácio Agulha,fazendo a charadista recuar assustada. Olhe o menino como chora!  Deixemos de charadas, charedas, charidas e charadas! Irra!
 

Na sala, Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo tremia de novo e de novo sentia o terror parali­sar-lhe os membros. Bernardo José, defronte dele silencioso e imóvel, olhava-o como a cobra quando quer devorar uma rã, por exemplo.

 

XIV

O DIA DO BATIZADO

A polícia perdoou de novo a Anastácio Agulha. O homem ainda dessa vez não foi à cadeia! Há entes predestinados sobre cuja existência a ação policial passa incólume como uma sombra inofensiva. Anastácio Agulha era desse número, felizmente; sem o que eu não o tomaria para herói de uma tão edificante quanto extraordinária história!

Dois meses depois das cenas decorridas no capítulo passado (pomposo estilo!) realizou-se o batizado do menino.

Havia quase todas as noites conferências em casa de Anastácio Agulha para se tratar do nome do ilustre descendente. Em uma dessas noites decidiu-se afinal tudo; o problema foi resolvido com uma clareza digna dos debates ministeriais.

A Sra. Leonarda, depois de fazer correr quatro ou cinco charadas a propósito, declarou que o nome mais adequado era Leonardo.

— Se fosse eu, punha no menino o nome de Leonardo. É um nome cheio!

— Francisco é melhor! balbuciou a viúva Arrozal, olhando suspirosamente para o teto. O defunto chamava-se Francisco, Francisco... E exalou alguns novos suspiros.

— Deixemos o defunto em paz! exclamou Anastácio Agulha. O compadre é quem vai arranjar um nomezinho de truz. Vamos lá, compadre! um nome de truz!

Bernardo José fez três piruetas características no meio da sala, e começou a assobiar vivamente uma de suas mais estron­dosas modinhas.

Anastácio, sem prestar atenção à original resposta do com­padre, voltou-se para as demais pessoas, e esperou uma idéia auxiliar.

— Não era melhor batizar ele por Antoninho? aventurou D. Quininha Ciciosa, empertigando-se toda.

— Antoninho! volveu Anastácio Agulha. Antônio, é que a senhora quer dizer.

— Não senhor, Antoninho mesmo. Eu conheço um padre que o batizava por Antoninho, se eu pedisse.

— E que padre é esse? perguntou a devota dos Barbadinhos. Olhe, o padre João da Sé não era capaz, o cônego Silva o mesmo, Frei Santa Josefa, também, o padre Romão, muito menos. Ave Maria! a senhora tem lembranças!

Eufrásia Sistema entrou na conversa sem mais cerimônias:

— Meu gosto era que ele se chamasse Santinho.

— Como! Santinho?

— Santinho é um nome tão bonito!

O menino que não cessava nunca de chorar, redobrou de fúria nesse momento.

— Como ele devia se chamar era Sorvete, exclamou Anastácio Agulha, já aborrecido. Que diabo de criança para tremer, safa!

— Diabo, Anastácio! Oh! assim é que se diz de um filho?

— Isso eu digo de qualquer, prosseguiu Anastácio, aquecendo-se mais; diabo é aqui esta senhora, aquela, eu, o compadre, a casa, o Felisberto, o batizado!

— Nossa Senhora do Carmo! acudiu a beata, persignando-se trêmula.

— Vamos lá, vamos lá, que já me está parecendo caçoada isto de nomes. Que nome vai ter o menino? Como vai ele chamar-se? Como havemos de nos chamar de amanhã em diante?

— O Sr. dá licença? perguntou a Sra. Leonarda, levantando-se a custo da cadeira para fazer uma cortesia ao padrinho.

— Aí vem a senhora com alguma charada, aposto! observou rispidamente Anastácio Agulha, cravando um olhar de fogo na gorda charadista.

— Não é charada, não senhor! replicou a Sra. Leonarda, cerrando o sobrolho.

— Então diga!

— Para mim o nome do menino deve ser o do padrinho.

— Oh!

Anastácio Agulha, no calor do entusiasmo, atirou-se de braços abertos sobre a charadista e sentou-se-lhe entre os joelhos, dizendo atropeladamente:

— Sim, é isso! Tem razão! O nome do padrinho dele! o nome do nosso padrinho! Vamo-nos chamar assim, e há de ser o nome inteiro com todos os ff e rr!

A Sra. Leonarda soprava como um fole, aturdida pelo peso de Anastácio Agulha, que continuou batendo com pés e mãos e fazendo trejeitos elétricos:

— Oh! por que não nos lembramos disso há mais tempo? Deus lhe pague! A senhora é que tem juízo aqui só! E dando um enorme beijo na Sra. Leonarda:

— Não faça caso! Isto é uma charada.., é a charada da gratidão!

— Senhor!

— Deus lhe pague, ouviu? Deus lhe há de pagar que eu sei! Anastácio Agulha deixou em paz a rotunda mulher, e dirigindo se a toda a sala:

— Está decidido. O menino chama-se Bernardo.

— Bernardo!

— Bernardo!

— Nunca ele se chamou senão Bernardo! bradou Anastácio Agulha, completamente nervoso: Bernardo foi o nome que eu sempre lhe dei antes e depois de nascer! Nós todos nos chamamos Bernardo! Tudo aqui é Bernardo!

Agarrando freneticamente nas mãos da devota dos Barba­dinhos, que fechou os olhos espavorida:

— Não é verdade que a senhora se chama Bernardo?

D. Quininha Ciciosa olhou para o guarda-roupa, seu refú­gio em casos de perigo, e a viúva Arrozal esqueceu-se de fixar a vista no teto para acompanhar os gestos intermitentes de Anas­tácio Agulha.

Bernardo José estava dormindo desde o beijo que recebera a charadista.

— Não era melhor então que ele se chamasse Bernardino? articulou Eufrásia Sistema, beijando o menino que estremecia como se fosse atacado de convulsões.

— Bernardino é mais mimoso! continuou D. Quininha Ciciosa.

Anastácio Agulha bateu no ombro do padrinho, que abriu os olhos com uma lentidão invejável:

— Que acha? Bernardino, dizem que é mais mimoso!

— Bernardino.., repetiu como em um eco o sonolento homem. Bernardi... e dormiu de novo.

— Pois sim! retumbou Anastácio; está dito! Como é pequeno ficar-se-á chamando Bernardino. Quando crescer há de ser Bernardo!

Todos concordaram risonhos com a decisão paterna, e ficou tratado o batizado para dois dias depois.

Anastácio Agulha não quis que Bernardo José deixasse a casa do afilhado, senão passado o grande momento. Acomodou-o, portanto, o melhor que lhe foi possível, durante os dois dias que precederam a festiva cerimônia.

A casa da Rua da Misericórdia tomou novo aspecto. Sentia se como que o surdo ruído de um vulcão dentro daquele prédio, já tão ilustrado pelas façanhas do inquilino. Anastácio Agulha andava por todas as ruas da cidade, encomendava bandejas de bolos de toda a qualidade, pedindo à vizinhança que levasse gente para a festa, todos os seus amigos e os amigos de seus ami­gos, alugou uma mobília de jacarandá com símbolos alegóricos para ornar a sala, mandou afinar um piano, e tratou um ônibus para levá-los em passeio fora da cidade.

— Olha que temos pouca louça, observou-lhe Eufrásia Sistema.

— Mas é preciso muita, muita louça; uma das cousas que deve haver mais aqui é louça! Vou comprar.

— Estás maluco! Pede-se à D. Quininha, por exemplo.

— Vá feito! Iremos lá hoje fazer-lhe uma visita para pedir louça.

— Não precisa, não; eu mando dizer a ela em um bilhetinho, é bastante.

— Ou isso, ou isso. Escreves um bilhetinho, eu escrevo outro e o padrinho outro. Se ela com um bilhetinho mandava, quanto mais com três!

— Começa você já com as suas esquisitices!

— Mau!

— Já falaste com o padre?

— Ainda não! Oh! vou já!

— Para quê? Eu já pedi a D. Candinha, e ela disse-me que sim!

— O padre há de assistir ao pagode.

— Quê!

— É preciso. O Felisberto prometeu-me trazer um tocador de violão.

— Violão, Anastácio!

— Fora a música. Zabumba, pratos, tambor, ferrinhos...

— E a música?!

— Fora o resto. Hás de ver como se fala na rua um mês inteiro. Que pechincha! Estás vendo a alegria que uma pessoa sente no dia de seu batizado! Nunca estive tão alegre, Eufrasinha!

— O menino não tem chorado tanto hoje, sabes?

— Você verá que daqui por diante ele não faz senão rir.

— Coitadinho!

— Hás de ver! Quando a gente se batiza, muda inteiramente! Eu hei de mudar muito! muito!

À chegada dos trastes alugados, Anastácio Agulha não cabia em si de contente. Era ele próprio que ajudava aos carregadores, sacudia a poeira, acondicionava tudo, entre brados de prazer e descomedida felicidade. Um afinador francês chamado para pôr em ordem o piano foi recebido com as maiores provas de afeição possível.

Oh! Monsiu quer fazer-me um bem? quer fazer-me um bem, monsiu? perguntou-lhe Anastácio Agulha, quando o homem batia na primeira tecla.

Quoi!

— Espera um pouco, espera um bocadinho, meu caro profes­sor de músicas! Anastácio correu ao interior da casa e trouxe nos braços o menino, que esperneava horrivelmente.

O afinador propunha-se a afinar a tecla. Mas Anastácio levantando-lhe a mão do piano:

— Carregue este menino, carregue este menino, monsiu, que eu afino o piano!

— Ah! Ah!

— Carregue este menino, vamos! E como o francês olhava admirado para tudo aquilo, Anastácio Agulha fez o gesto de arremessar ao chão o pequeno, recebido nos braços de Eufrásia, que preveniu o desastre.

— Retire-se! Saia daqui já! Não lhe pago, não quero pagar, eu nunca paguei a ninguém!

O afinador teve o espírito de retirar-se daquele hospício de alienados, sem querer entrar em uma luta tão soberanamente ridícula.

No dia do batizado, quando a vizinhança toda reunida em casa da família Agulha, esperava o momento da partida para a igreja, Anastácio dirigindo-se a Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo:

— Vai alugar três tílburis, Felisberto! Três tílburis bons!

— Que é?

— Num deles irá o padrinho com o menino nos braços; no outro eu com você nos braços...

— Hein?

— Pois bem, vou eu sozinho no outro. O terceiro será para você, Felisberto. Tudo o mais vai a pé.

— Anastácio... murmurou Eufrásia aproximando-se meiga.

— Vai alugar os tílburis, com todos os diabos! Ah! pensam que eu me batizo como fazem por aí! Tinha que ver! Há de ser assim, ou o menino morre pagão como um judeu!

A vizinhança e uns novos personagens convidados contem­plavam absortos tão inesperada cena.

— O ônibus virá à noite para o passeio, bradou Anastácio Agulha, pondo o chapéu; agora só eu, o padrinho e o Felisberto é que vamos de tílburi!

A Sra. Leonarda, que ia desenrolando um papel bordado para ler a charada do fiscal, encontrou os olhos fumegantes de Anastácio Agulha, fitos nela.

Abrenuntio! murmurou a charadista, encolhendo-se toda, ele é capaz de meter-me o papel pela goela abaixo!

Bernardo José não tirava os olhos de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

 

XV

ONDE SE CONTA TUDO QUANTO ACONTECEU NA IGREJA, EM CASA, NO CAMINHO E EM OUTROS LUGARES MAIS. OS CONVIDADOS SENTAM-SE À MESA

A distância da Rua da Misericórdia à igreja de S. José é pequena, como sabem. Os desejos de Anastácio Agulha foram cumpridos apesar de todos os rogos e admoestações da família e dos convidados. Bernardo José, com o menino sobre os joelhos, abria a marcha dentro do primeiro tílburi. Seguia-se-lhe Anastácio Agulha sem ninguém ao colo, o que foi uma ventura para Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. O escrivão Lopes atreveu-se a alugar um carro, onde se acondicionaram quase todas as senhoras. Anastácio Agulha, à porta da igreja, travou-se de razões com o escrivão, a propósito disso, e metendo-lhe a mão em um dos bolsos da grande sobre­casaca, rasgou-o de alto a baixo.

— Irra! não é preciso bolso! Não quero que use mais bolsos, senhor! Lembre-se bem!

Quando o padre perguntou o nome do menino, Anastácio Agulha respondeu imediatamente:

— Bernardino, padre-mestre, Bernardino por ora. Daqui a alguns anos havemos de batizá-lo outra vez por Bernardo!

O sacerdote quis saber o nome dos padrinhos. Bernardo José ajoelhou-se atropeladamente, embrulhando-se no vestido da Sra. Leonarda, que praguejou como um fuzileiro.

— O padrinho é este! exclamou Anastácio. É Bernardo José, reverendíssimo, Bernardo José, o louco!

— Oh! sussurraram todos.

Mas Anastácio Agulha, transpirando já abundantemente, endireitou a gola russa da casaca, puxou as manguitas e pros­seguiu, dando à voz inúmeros tons diferentes:

— Não sei por que fizeram oh! Para que oh!? Oh! quer dizer embasbacamento ou medo. Perguntem a ele mesmo se eu disse a verdade ou não!

E batendo no ombro de Bernardo José, que se preparava para pegar no sono:

— Não é verdade que eu disse a verdade, compadre? Bernardo José respondeu cantando em voz baixa uma modi­nha do seu repertório.

— Santa Mãe de Deus! querem ver que o homem vai fazer espalhafatos aqui na igreja? observou a devota do Castelo.

— Se isto não toma caminho, eu vou me embora! prosseguiu a Sra. Leonarda. Veja que rasgão no meu vestido novo, D. Candinha!

— Oh! xente! o homem é maluco mesmo!

— A madrinha? indagou o sacerdote, ansioso por abreviar a cerimônia.

Eufrásia Sistema, que fazia parte da comitiva, unicamente para prevenir alguma feroz manifestação do gênio de Anastácio, chegou-se ao padre com todo o respeito e:

— É Nossa Senhora, disse ela. A madrinha é Nossa Senhora.

— Como!? Como?! bradou Anastácio Agulha batendo com o pé no chão. A madrinha há de ser quem eu quiser! Eu é que hei de escolher a madrinha!

Todos esperaram ansiosos.

— A madrinha é Felisberto! Felisberto, vem cá, Felisberto! Tu é que és a madrinha! Vem servir de madrinha, Felisberto!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo tinha desaparecido da igreja.

Eufrásia Sistema, quase a chorar, conteve o marido, e D. Quininha Ciciosa teve a honra de sustentar o menino sobre a pia batismal.

De volta para a casa, Anastácio Agulha descompôs o melhor que pôde ao boleeiro do tílburi, obrigando-o a fazer grandes voltas pelas ruas da cidade, antes de ir para casa da Rua da Misericórdia.

Eufrásia Sistema, o menino e os convidados, livres de Anastácio, adquiriram dois carros e retiraram-se da igreja. Bernardino Agulha gritava desaforadamente; e Eufrásia Sistema, impressionada por tudo o que acontecera durante a cerimônia, ia sorumbática e muda.

Chegados à casa, foi o pequeno recebido com uma porção de rosas, manjericões e perpétuas pela Sra. Quitéria do Amor Divino, que já estava no topo da escada!

Subiram alegremente todos sob tão protetora égide. O escrivão tratou logo de arranjar uma escrava que lhe cosesse o bolso, e as senhoras encheram a sala de visitas.

— Onde estará Anastácio? perguntou Eufrásia, depois de ter examinado o interior da casa.

— Na igreja talvez! disse D. Quininha Ciciosa, consertando as fitas.

— Na igreja não está que eu vi ele meter-se no tibre, obser­vou a Sra. Leonarda. A senhora me empresta uma agulha com linha, D. Eufrasinha?

— Oh! que foi isso? perguntou a viúva Arrozal.

— Foi aquele não sei que diga, (Deus me perdoe!) que me rasgou assim!

— É verdade, o padrinho ficou na igreja, não?

— Ficou sim, até por sinal que roncava que era um gosto!

— Que homem para dormir, credo!

Bernardino Agulha estava majestoso no meio de suas fitas e rendas! Podia quase rivalizar com D. Quininha Ciciosa! Uma monstruosa touca de cambraia branca, cheia de fitas amarelas, moldurava-lhe o rostinho original e o pescoço mal sustentava o peso de tudo quanto o amor materno arrecadara entre figas, con­tas douradas, bentinhos e bugigangas de toda a espécie. Apesar do cinteiro que lhe comprimia o corpo de uma maneira incrível, o menino tiritava e vagia como uma dúzia de crianças juntas!

— Há de ser muito feliz, verá, D. Eufrasinha, disse a beata dos barbadinhos. Nossa Senhora do Carmo olhe para ele sempre!

— Amém, D. Candinha.

— Que vida quer que ele siga? perguntou a viúva Arrozal, entre dois suspiros e pregando os olhos no teto. Militar, não é?

— Oh! não se pensa nisso ainda, D. Clementina! Tão pequeno!

— Eu se tivesse um filho, continuou a viúva do major, ele havia de ser militar, como era o defunto! E espalhou alguns sus­piros necessários.

— Qual o quê, minha senhora! acudiu D. Quininha Ciciosa, militar uma vida de trabalhos e de desgostos! Ponha ele na mari­nha. Capitão de fragata, D. Eufrasinha.

— Em toda parte — 1, bradou a Sra. Leonarda impondo silêncio com as duas mãos estendidas. Não é da terra – 3 Conceito: – É o que o menino deve ter. Adivinhem!

Uma mocinha magra e bexigosa, que viera em companhia da viúva Arrozal, bateu palmas de contente, exclamando entre sorrisos continuados:

— Oh! como eu gosto de versos! Diga outro, outro mais! ande! A charadista olhou-a desdenhosamente.

— Versos! que versos, senhora?! Isto é uma charada. Não sabe o que é charada? Versos! Que me importa a mim com versalhadas! E dirigindo-se às outras pessoas:

— Então? Adivinhem.

— Diga outra vez, Sinhá pequena.

— Em toda a parte – 1. Não é da terr...

— Já sei! atalhou D. Quininha Ciciosa com um gorjeio musi­cal. É andorinha! A andorinha anda em toda a parte!

A Sra. Leonarda não se dignou sequer olhar para a sua oficiosa interlocutora.

— Não acertam? prosseguiu ela, contemplando um por um todos os personagens que a rodeavam. Não? Pois é armarinho. Em toda a parte –1– ar, – Não é da terra 3 – marinho; conceito: é o que menino deve ter: armarinho! não há melhor negócio hoje. O Chico de Paula enriqueceu em dois anos!

— Dois anos? a senhora disse dois anos? perguntou a viúva Arrozal entre seis suspiros.

— Dois anos, sim! Acha pouco? Pois olhe, não há na rua quem não saiba disso. Pergunte ao Gonçalves da loja!

— Não é por isso não, volveu a viúva angustiosamente. É que ele esteve também dois anos de cama antes de morrer!

— Ah! o...?

— O defunto, sim, o defunto sofreu dois anos inteiros antes de ir para o céu!

A viúva do major tapou o rosto com o lenço.

— Deixemo-nos de tristezas! disse D. Quininha Ciciosa, erguendo-se e derreando o corpo com a ligeireza de uma cobra. Vejam como o menino chora! Oh! não há quem toque piano aqui? Não toca, D. Eufrasinha?

Eufrásia Sistema, lembrando-se da malfadada época dos lundus, exalou um suspiro profundo.

— Não, D. Quininha. A senhora não toca?

— Vai cantar um pouco, Bembém; atalhou a viúva Arrozal, dirigindo-se à nova conhecida.

A mocinha foi ao piano e bateu em algumas teclas.

— Como está desafinado!

— Não faz mal. Toca assim mesmo!

— Assim fazem os pintos – 2 – interrompeu a Sra. Leonarda com estrondo: nos lenços –1. Conceito. – Nesta casa! Adivinhem.

— Agora acertei! exclamou D. Quininha Ciciosa dando um pulinho.

— Que é? perguntou a charadista arregalando os olhos.

— É tapete, não é?

— Qual tapete, minha senhora! Que diabo de maneira de adivinhar charadas! Assim fazem os pintos – 2 – Então os pintos fazem tapete? Por que é que a senhora falou em tapetes, minha gente? Assim fazem os pintos, 2 — pia — nos laços — 1 — nó — Conceito: nesta casa: — Piano!

— Bravo! gritou a mocinha dando palmas. Oh! diga outro!

— Outro, o quê?

— Outro verso! ande!

A Sra. Leonarda mordeu o beiço inferior, e murmurou resmungando:

— Que delambida aquela com os tais versos, arre! Se eu fosse tua mãe dava-te bons versos, malcriada!

— Cante, Bembém!

— Sim, cante! pediu Eufrásia Sistema.

D. Quininha Ciciosa dirigiu-se ao piano e rogou também por sua vez à cantora.

— Que querem que eu cante? perguntou a pequena.

— Uma modinhas!

O escrivão Lopes, que estivera até então afastado do grupo, lendo os anúncios do Jornal do Commercio, fez uma enorme cortesia à cantora, sorrindo amabilissimamente:

— Sim, minha senhora, disse ele; uma de suas melhores modinhas!

A mocinha, passando três a quatro vezes a mão na garganta, esticou o corpo, tossiu, olhou para o ar, respirou com força e começou, levando o acompanhamento para o Norte e o canto para o Sudoeste:

Arvoredo tu já viste

A minha Jônia mimosa...

Um grande ruído nas escadas chamou a atenção de todos.

Eufrásia dirigiu-se ao corredor. Anastácio Agulha trazendo um sujeito preso pela gola, ambos espumando de raiva, entrou na sala com o ímpeto de um esquadrão de cavalaria:

— Hás de beber, ladrão!

— Largue-me com todos os diabos!

A mocinha deixando o piano correu para o vão da janela, tremendo e dando uns gritos mais afinados do que a modinha.

A Sra. Leonarda, com um sinal, convidou a D. Quininha a fugirem para a alcova, e a viúva Arrozal deixou a cadeira em que estava.

— Hás de beber! uivava Anastácio Agulha apertando O pescoço do homem.

— Anastácio! exclamou Eufrásia assustada.

— Vai buscar vinho, Eufrasinha, bradou Anastácio Agulha, subjugando sempre o outro. Eu quero que ele beba à saúde do menino! É o boleeiro do tílburi! Há de beber e tocar violão depois!

— Senhor!

— Hás de beber, ou eu te dou um tiro, pedaço de patife!

— Largue-me, senhor!

— Não te largo, não quero largar-te! eu nunca te largarei, desgraçado!

A consternação na sala era geral. O escrivão Lopes, temen­do mais por si do que pela vítima de Anastácio Agulha, se a cena continuasse, aproximou-se respeitosamente ao grupo:

— Sr. Agulha, atenda-me.

— Anastácio! suplicou Eufrásia Sistema.

— No dia do batizado, senhor! observou D. Quininha Ciciosa, do batizado de seu filho!

Anastácio Agulha, a essa última observação, afrouxou insen­sivelmente os dedos; o boleeiro de um arranco pulou para o meio da sala.

— Este homem é gira! disse ele, pondo em ordem a gola comprometida na luta.

— Que dizes!

— Com licença! tenho muito que fazer. Deixem-me passar, por favor!

Eufrásia Sistema mandou uma escrava trazer vinho para a sala. Anastácio Agulha encheu um grande copo, tomando a pas­sagem do cocheiro.

— É o dia do meu batizado! Fica sabendo: vais beber ao dia do teu batizado! Bebe, anda, bebe ao dia do nosso batizado!

Resistir a tão provocador convite naquelas paragens, e com o calor que fazia, fora incrível: um sorriso eqüestre desabrochou na boca do cocheiro.

Mas Anastácio Agulha, mudando repentinamente de idéia, e caindo nos seus hábitos vulgares, correu a Eufrásia, tomou-lhe o menino do colo, e entregando-o ao boleeiro:

— Segura! ordenou ele.

O pobre homem boquiaberto não moveu sequer com os braços. Anastácio, sacudindo-o vivamente:

— Pega nesta criança, diabo, exclamou furioso. Pega na criança que eu bebo à tua saúde!

Bernardino no colo pouco macio do boleeiro, gritava e fazia mil e uma evoluções com os bracinhos, as perninhas e a cabeci­nha. Eufrásia Sistema, caridosa até o excesso, cortou a crise pas­sando o menino para os seus braços.

Anastácio Agulha esvaziou o copo; estalou com a língua rui­dosamente e olhando de perto o cocheiro, que não saía da posição espasmódica:

— Agora que já bebeste à saúde do batizado, vai-te, ladrão! Sai já daqui, grandessíssimo velhaco das dúzias!

O infeliz não se fez repetir a frase, que era em linguagem poética, nada mais nem menos do que o grito da sua liberdade! Galgou de um salto a distância que o separava da escada e sem apoiar-se ao corrimão desceu os degraus de cinco em cinco.

O vinho conseguiu dar a Anastácio Agulha um certo ar amável e prazenteiro, de que não apareceram muitos exemplares na sua fabulosa existência. A cantora da modinha veio da janela menos trêmula, a Sra. Leonarda estendeu-se comodamente na sua cadeira, a viúva Arrozal continuou a olhar para o teto, e a devota dos Barbadinhos, depois de benzer-se, trocou com D. Quininha Ciciosa um eloqüente olhar de segurança coletiva.

— Isto que horas são? perguntou Anastácio Agulha. Duas pelo menos e... É verdade! onde está o padrinho?

— Você é que deve saber, volveu Eufrásia.

— Onde está Felisberto? Ainda não veio Felisberto?

— Não. Esse teu gênio há de desarranjar tudo, Anastácio! Nunca deixas de fazer alguma! Até na igreja!

— Cala a boca! Estou fresquinho, vês. Estou satisfeito, estou bom. Não é verdade que eu estou bom, fresquinho e satisfeito, minha gente?

A Sra. Leonarda ia abrindo a grandiosa boca.

— Menos essa! exclamou Anastácio Agulha. Nada de charadas, pelo amor de Deus! Se a senhora começa com charadas então é que lá se vai tudo quanto Marta fiou! Mas onde estará Felisberto com o tocador de violão?

— Tocador de violão?

— Tocador de violão, sim! E não é só isso! Havemos de levar músicos no ônibus, e há de se dançar aqui um pouco também!

— Oh! eu gosto! exclamou a mocinha bexigosa.

— De que é que gosta? de que é que a senhora gosta? indagou Anastácio.

— De dançar polcas!

— E de versos também, resmungou a Sra. Leonarda; gosta de versos muito essa moça!

— Por que não hei de gostar de versos? Eu tenho um primo que faz versos tão bonitos! O Juca; não se lembra, D. Clementina?

"No meio da noite entre os clarões empalidecidos... "

— Que é isso? É discurso? perguntou Anastácio Agulha quase impaciente.

— Não senhor; é o princípio de um verso de Juca para modinha!

A viúva Arrozal suspirou misteriosamente.

— Ele também era doido por versos! murmurou ela.

— Ele também? acudiu Anastácio. Será o...?

— O defunto, sim senhor! Ainda me lembro das sete graças, das flechas de Cupido, da Serpente do ciúme, da Olina! Como soavam bem no cavaquinho.

— Oh! um cavaquinho! bradou Anastácio Agulha, entusiasmado. É preciso arranjar um cavaquinho para aqui hoje! Não há quem dance o fado?

D. Quininha Ciciosa, afastando as fitinhas, alongou o lábio com um maravilhoso desdém:

— O fado, Sr. Agulha? pois havíamos de dançar o...?

— E que é que tem? atalhou a Sra. Leonarda, levantando-se a custo; o fado é uma dança de encher o olho! Vai fazer dois anos que eu estive em Jacarepaguá e ainda tenho saudade! Aquilo é que foi adivertimento! comeu-se, dançou-se, bebeu-se dois dias segui­dos sem parar! Foi lá que ouvi dizer uma charada...

— Basta! gritou Anastácio Agulha. Nada de charadas, faça favor, nada de 2, nem 3, nem 8, nem conceitos, nem o diabo que carregue todas as charadas do mundo!

O escrivão apoderou-se do chapéu para sair.

— Eu já volto, disse ele. O jantar é só às...?

— O jantar é já, não pode tardar, não deve demorar. Já se jantou!

— Quê?

— É um modo de falar, não repare. Mas onde vai agora? Precisa de alguma cousa?

— Vou a casa, já volto.

— Então me faça um obséquio! Traga algum conhecido seu bom para o pagode! O ladrão do Felisberto está mangando comigo. Veja se o encontra também e mande-o para cá.

O escrivão cortejou a todos e adiantou-se à escada.

— Olhe, prosseguiu Anastácio, se vir o padrinho...

— Cá o trarei. Até logo!

Anastácio Agulha foi à sala de jantar, onde a Sra. Quitéria do Amor Divino, em companhia de uma escrava dos Agulhas e das crias da viúva Arrozal, tratava de enfeitar simetricamente a mesa.

— Assim, comadre. Você é uma grande cousa! Ponha-me isto tudo em ordem de batalha!

A Sra. Quitéria do Amor Divino não descansava. Os guarda­napos equilibrados, os talheres, quatro piramidais vasos de flores, os pratos em linha de ataque, as vastas sopeiras e terrinas em pare­lhas, tudo revelava o acurado trabalho da excelsa matrona.

Anastácio Agulha bateu palmas de contente.

— Que dia, comadre! No fim é que será tudo como deve ser! Você há de ir no ônibus conosco! Há de ir na boléia!

A Sra. Quitéria deixou de pôr no seu lugar um paliteiro de louça dourada, olhando com admiração para Anastácio Agulha!

— Na boléia, Sr. Agulha?

— E então? Na boléia, na boléia! Iremos juntos! No meio do caminho atira-se o cocheiro do ônibus abaixo!

— Credo, meu senhor! Vão vosmicês sós. Eu embarcar em omnigus e bote! andar por cima da água do mar e rolando nas calçadas! Deus me livre e guarde!

— Pior! hoje não há livres nem guardes, comadre! O que se disse está dito!

— Negrinha, atalhou a Sra. Quitéria do Amor Divino, voltan­do-se para uma das crias, vai buscar aquela compoteira e bota aqui! Mexe-te daí, minha filha! Olhe aquela terrina; empurre mais para o lado de lá. Que faz você de braços cruzados, gente? Enxote as moscas, vamos!

Anastácio Agulha começou a desarrolhar garrafas.

— Beba um trago, comadre!

— Depois. Agora não, que é capaz de me tontear!

— Qual tontear! Hoje tudo fica da direita para a esquerda.

— Nossa Senhora não premita!

— Hoje tudo leva a breca, comadre!

A Sra. Quitéria do Amor Divino, pouco satisfeita com o estado de Anastácio Agulha, que de cada garrafa provava um cálice, dirigia-se às mucamas com uma sofreguidão e uma impaciência pouco vulgares.

— Tira aquela compoteira; puxa mais para cá, sim, para aí mesmo. Muda o vinho para a garrafa azul. Repara na toalha, negrinha, que está desarranjando tudo, minha filha! Passa esses ananás, que eu quero mesmo descascar!

Anastácio Agulha olhou para a gorda mulher com os olhos suficientemente nublados e ternos.

— Vai chamar D. Eufrasinha, na sala, continuou a comadre; anda, negrinha!

Quando Eufrásia veio para o interior da casa, as vizinhas entabularam em voz baixa uma conversação digna dos anais de todas as sociedades presentes, passadas e futuras!

— Que cheiro de galinha ensopada, Sinhá Pequena! mur­murou a devota ao ouvido da charadista. A senhora acredita que eu não almocei hoje?

— Nem eu, D. Candinha. Haverá presunto na janta?

— Parece. Eu vi entrar um negro com um tabuleiro na cabeça! A escrava da Quininha levou à padaria do canto uma porção de cousas para assar.

— Mas então tem dinheiro o tal danado?

— Eu sei, Sinhá Pequena! Hoje quem mais gasta, como diz frei Romão, é quem menos possui! Eu cá por mim lavo as minhas mãos. Estou bem contente com o que Nosso Senhor me deu!

A charadista aspirou com força o ar, passando a língua entre os grossos lábios esfaimados.

— Hum! Há cousa boa lá por dentro! Isto dá-se poucas vezes, hein, D. Candinha? É preciso aproveitar.

— Que dúvida! Olhe se a sopa for só de macarrão estou mal, porque é comida de minha quizila

— Só peço a Nossa Senhora da Conceição que o tal endia­brado não faça alguma na janta.

— Ele já não está muito certo; bebeu vinho!

— E o passeio de ônibus?

— Assim que acabar a janta, ponho-me ao fresco!

— Pois eu também!

— Para comer estou pronta, mas para ir parar na cadeia, credo! Aquele doido é capaz de nos fazer dormir todos no quartel!

— No quartel? No xadrez, D. Candinha!

À viúva Arrozal dizia a mocinha do Arvoredo tu já viste:

— É preciso a gente arranjar uns doces para mandar à titia!

— Tire, não se importe.

— Ponho no lenço, não é?

— Pois sim. Mas que o homem não veja!

— Deixe estar. Eu escondo direitinho!

Estourou uma rolha na sala de jantar:

— Será champanha, Sinhá Pequena? Eu gosto tanto de cham­panha!

— Há de haver licor logo mais, não há de? perguntou a mocinha.

— Por força. Gosta?

— Gosto que me pélo. Toda a vez que eu vou à casa de titia bebo três e quatro copinhos sem me fazer mal.

D. Quininha Ciciosa, enquanto regularizava as suas fitinhas, pensava em arroz de forno, papo de peru e ervilhas com ovos.

Estourou mais uma rolha, e logo depois Anastácio Agulha apareceu na sala de visitas. Trazia os cabelos um pouco desali­nhados e a face vermelha.

— Felisberto? exclamou ele. Ainda não chegou o Felisberto? E o padrinho? E o escrivão? e o povo?

— Sabes o que é melhor, Anastácio, observou Eufrásia Sis­tema, é jantarmos nós e deixarmos os outros.

— Não me digas asneiras!

— Pois onde se meteram os teus amigos até agora?

— Onde se meteram? Eu sei lá onde se meteram? O Felis­berto está arranjando o ônibus decerto. O escrivão foi buscar gente, o padrinho, o padrinho esse é que eu não posso saber em que lugar se encafuou!

— Na igreja talvez, acudiu D. Quininha Ciciosa, sorrindo adoravelmente. Que homem para dormir aquele!

— Aquele homem não dorme, senhora, volveu Anastácio Agulha, fechando o sobrolho. Aquele homem pensa de olhos fechados. É um cacoete como outro qualquer!

A mocinha do Arvoredo tu já viste aproximou-se ao piano. Anastácio Agulha, despedindo um retumbante psiu! fez estacar a cantora antes de sentar-se no competente tamborete.

— Que é? perguntou ela hesitando.

— É que não se toca mais por ora! Deixemo-nos de tanto piano! Que é que se ganha com tanto piano, não me dirá?

A viúva Arrozal suspirou com o seu melhor estilo.

— Fome, hein? disse-lhe Anastácio, tentando um sorriso que terminou em careta.

A viúva contemplou-o misticamente:

— Não é fome, não, senhor; estou-me lembrando do...

— Já sei! não diga mais! quer falar do defunto, do meu defunto, do meu marido major. Nada de falar aqui hoje em cousas tristes!

Bernardino Agulha, que de vez em quando dava sinais evidentes de vida, estirou as pernas resmungando surdamente.

— Olha o pobrezinho! exclamou Anastácio com rara ternura. É dor de estômago, aposto.

— Se as pessoas grandes têm, continuou a Sra. Leonarda, olhando expressivamente para a devota dos Barbadinhos, quanto mais as crianças!

— Vai dar-lhe um bocado de peru, Eufrasinha!

— Peru, Anastácio? Estás doido? Uma criancinha que só come escaldados.

A Sra. Leonarda fingiu que ia pôr em ordem os cabelos da beata, para dizer-lhe ao ouvido:

— Então? Peru há com toda a certeza. Tomara que esteja bem recheado!

Várias pessoas subiam as escadas da casa. A primeira que se apresentou foi Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. Anastácio Agulha correu chamejante ao encontro do procurador.

— Felisberto! Vieste sempre, Felisberto. Dá cá um! E abriu os braços.

O homenzinho, assustado, voltou-se para dois personagens que vinham em sua companhia, repetindo sem tomar fôlego:

— O Sr. Passos, dono de uma loja de calçado ao Beco do Cotovelo, pessoa de minha amizade e simpatia, e aqui este...

— Clementino! bradou o outro personagem com voz soturna, Clementino, da Cidade Nova, um criado de V.Sa!

— É o tocador de violão! prosseguiu o procurador com receio ainda dos braços abertos de Anastácio Agulha. Pedi-lhe que viesse; ele tinha muito que fazer, está com um filhinho doente, mas para fazer a vontade...

— Oh! meu caro Clementino dos Passos! bradou Anastácio apertando ao peito o primeiro dos apresentados.

— Mas, olha Anastácio, interrompeu o procurador, tentando afastar o engano; é aqui este outro senhor que...

— Vieste apesar do teu filhinho doente, Clementino! continuou Anastácio Agulha, dirigindo-se sempre ao primeiro apresentado, vieste? vieste? Onde está o violão?

— Aqui! exclamou o verdadeiro Clementino, mostrando uma caixa de violão, que sustentava na mão direita.

— Eu não falo com o senhor! gritou Anastácio Agulha. Estou falando com o meu amigo Clementino que tem o filhinho doente!

— Mas sou eu, senhor!

— Pior, senhor! Contente-se com a sua loja de calçado que é o que deve fazer!

— Escuta, Anastácio, atreveu-se a dizer Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

Eufrásia Sistema, sempre alerta às façanhas no marido, chegou-se imediatamente ao lugar da questão.

A mocinha do piano foi procurar o seu vão da janela por causa de dúvidas, e as outras mulheres puseram-se à escuta de olho engatilhado para a alcova.

Anastácio Agulha, já com bastantes fumaças báquicas na cabeça, e ainda mais sujeito à sua inextricável natureza, pros­seguiu com a atenção e a vista presas no primeiro apresentado:

— Clementino! eu saberei sempre apreciar o que fizeste por mim sem me conheceres. Deixar um filhinho doente de coqueluche...

— De sarampos, replicou o outro personagem.

Anastácio Agulha, fazendo reboar no soalho os seus tacões: – Mas o Sr. não se calará nunca, Sr. Passos!

— Pois eu falei? perguntou o primeiro apresentado, olhando meio desconfiado para o procurador.

— Ah! temos outra! temos outra! Agora é o Clementino tomando as dores pelo sapateiro!

— Quê!

— São três horas, Anastácio, balbuciou Eufrásia Sistema, implorando com o olhar o socorro de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Não quero saber de nada! não quero saber de nada! Me importa lá que se chame José, ou Clementino, outro Félix, outro Pedro, outro Ambrósio, outro patife, outro tratante, outro pelintra! Onde está o violão? Dá cá o violão.

E tomando um embrulho quadrado que o primeiro apresenta­do trazia por baixo do braço, Anastácio Agulha respirou com força!

— Isto não é violão! é gamão! gritou o homem.

— Quê? Pois o senhor vem tocar... gamão? Felisberto! tu é que me pagas tudo por junto!

— O violão está aqui, senhor! bradou o segundo apresentado.

Eufrásia Sistema teve nesse momento uma inspiração sublime. Acercou-se do verdadeiro Clementino e disse-lhe rapi­damente em voz baixa:

— Toque, senhor! toque pelo amor de Deus, para não haver barulho.

O homem arriou imediatamente a caixa, abriu-a em meio minuto e sacou o instrumento, sobre cujas cordas correu os dedos com maestria.

Anastácio Agulha lançando o tabuleiro de gamão aos pés, exalou uma interjeição sincera e apaixonada.

— Oh! sim! toque, meu caro Clementino! Entrem, entrem para a sala. Estas senhoras são todas pagodistas!

— São o quê? que é que ele disse, D. Candinha?

— Que nós éramos pagodistas! Santa Maria do Rosário, que homem maluco aquele! sabe de uma cousa, Sinhá Pequena? Vou-me embora.

— Por quê?

— Pois não, minha senhora! Se isto no princípio já é assim, quanto mais no fim!

— Nós nos escapamos bem, D. Candinha, verá!!

— Qual! Ele é capaz de nos encafuar no forro da casa até!... Aquilo é o demo em carne e osso! Bendito louvado seja o sacrossanto coração de Jesus!

O violonista era um pardo alto, de olhos vesgos e com falta absoluta de dentes na gengiva superior.

Um desses tipos que se encontram em dia de festa na roça, no meio da aguardente e de uma porção de criaturas felizes que desconhecem a existência da gramática e preferem o cateretê e o fado às delícias de Jouvin e à tesoura da Dason!

O Sr. Passos, da loja de calçado do Beco do Cotovelo, era um homem gordinho, de estatura insignificante e porte prazenteiro. A única ambição dessa venturosa pessoa era realizar uma certa soma para abandonar o comércio, e tornar-se célebre no jogo do gamão. O gamão não o deixava um momento sequer. A toda a parte que o nosso homem ia, lá ia também o tabuleiro inseparável, ao qual Passos consagrava um amor excessivamente paternal. Aquele tabuleiro era seu filho legítimo e único.

— Toque, Clementino! exclamava Anastácio Agulha, com todos os movimentos da mais irresistível alegria.

Estou afinando.

— Qual afinando! Não afine, não precisa afinar! Peço-lhe que não afine, Clementino! Se me quer bem, Clementino, não me afine este violão!

— Mas?...

— Pois bem, toque primeiro, você afinará depois! Agora ou logo é o mesmo, as cordas estão sempre no mesmo lugar!

O dono da loja de calçado do Beco do Cotovelo sentou-se comodamente, descansando sobre os joelhos o tabuleiro predileto.

— Não gosta? perguntou ele a Anastácio, mostrando os dados.

— Muito! Oh! muito! volveu Anastácio Agulha chocalhando os dados e lançando-os ao chão: terno! Havemos de jogar mais tarde, Clementino.

— Passos, Anastácio, observou o procurador. Este é o Sr. Passos; aquele é que é o Sr. Clementino.

— O do filhinho doente? exclamou Anastácio Agulha, em um tom de suprema felicidade.

— Sim! ele mesmo!

— Clementino! quando precisares de mim! continuou Anastácio dando dois safanões nas cordas do violão.

O violonista começou por uns prelúdios chorosos de fado. A Sra. Leonarda, com a orelha vermelha e a boca entre­aberta, abriu as ventas colossais desabridamente, como quem respira os aromas do passado, que trazem a mocidade e a folia!

— É um fado, não é, D. Candinha?

— Eu sei! Parece, Sinhá Pequena.

O violonista acelerou os movimentos e deu à música as proporções exigidas pelo gênero popular. Insensivelmente, auto­maticamente, levantando primeiro a cabeça; em seguida as mãos, depois os braços, meio busto, meio corpo, erguendo-se toda, enfim, a Sra. Leonarda começou com uns passos miúdos e harmo­niosos a acompanhar a música. A mulher parecia ter remoçado vinte anos! Ao peso de seu corpo suculento e monstruoso sucedeu a elasticidade dos quinze anos! Todos, até o próprio Anastácio Temporal Agulha, seguiram religiosamente as evoluções capri­chosas daquela dança original. A Sra. Leonarda foi até o meio da sala nos mesmos passinhos sempre; com os olhos fitos no vago, meio nublados pela saudade, pelo desejo, pela recordação dos dias desaparecidos no horizonte de outra idade, a gorda mulher esque­cera até o lugar em que se achava, dando livre curso aos convul­sivos estremoços dos pés, que acompanhavam sem parar os sons lascivos da música.

O violonista, cheio de delírio nacional, amiudou os tons, feriu as cordas, deu mais calor à prima que gemia, murmu­rando entredentes uma quadras relativas à dança:

Oh lé lé, oh lé lé, Lauriana,

Eu dei um abraço nela,

Outro lá na mana dela,

Ao assubir da janela,

Eu apanhei por mor dela!

Oh! lé lé oh lé lé, Lauriana!

A Sra. Leonarda continuou com outra quadra idêntica. O entusiasmo apoderou-se dela pouco a pouco. Nervosa, impaciente, majestosamente suada, a charadista, ora lânguida, ora rápida, viva e vagarosa, pulando em figuras características e dei­xando o corpo ondular voluptuosamente como um pato que abre as asas, dançava constantemente quase sem tomar fôlego até. Anastácio Agulha sentiu bater a sua hora fatídica: de um salto atirou-se ao meio da sala, uniu-se à dançarina e imitou-lhe grotes­camente os passos, repetindo, em vez de quadrinhas, algumas asneiras por música. A dança é contagiosa e principalmente o fado: toda a comunhão pôs-se em pé e acompanhou os dois, todos, até a viúva Arrozal, olhando para o teto sempre e dançan­do talvez à memória do defunto!

Eufrásia foi a única que não tomou parte no delírio geral. Durava um quarto de hora já aquela espécie de sabbat, quando a Sra. Leonarda arquejante, revirando os olhos como quem vai ter um ataque apoplético, estacou repentinamente com a boca escan­carada. Pararam todos como os hebreus à espera das revelações do profeta.

A charadista, reunindo as últimas forças e entre duas baforadas como as baleias no mar alto:

— Na música — 1, gritou ela. Na música outra! — Conceito...

— Conceito? perguntou Anastácio espiando dentro da boca da enorme mulher como em um poço artesiano.

— Conceito: — Na roça! terminou ela, e caiu no chão des­maiada!

— Ah! agora adivinhei! uivou Anastácio Agulha. É fado!

 

XVI

SENTAM-SE AFINAL À MESA

A poder de muito vinagre a Sra. Leonarda deu-se por pronta para entrar em funções estomacais. Esperaram ainda um quarto de hora pelo escrivão, o padrinho e o resto da companhia, inutil­mente. Durante o quarto de hora Anastácio Agulha quis por força aprender a tocar algumas variações ao violão, não conse­guindo extrair um som sequer, apesar da admirável paciência do Sr. Clementino, do filhinho doente.

— Pois bem, fica para outro dia. Havemos de aprender seja o que for, Clementino! Prometes, Clementino? Dize!

O violonista, que já se havia arrependido umas três vezes de ter ido àquela casa, digna dos contos de Hoffmann, fez um sinal afirmativo com a cabeça, apenas.

Surgiu à porta o busto colossal da Sra. Quitéria do Amor Divino.

Houve um movimento elétrico de cadeiras à chegada da incomensurável mulher. A devota dos Barbadinhos beliscou a charadista, piscando os olhos expressivamente.

Eufrásia Sistema aproximou-se do marido e depositou lhe em voz baixa algumas palavras no ouvido. Anastácio Agulha, depois de várias réplicas e tréplicas, voltou-se para os convivas e deixou sair esta simples frase, cujo conteúdo produziu mais efeito do que as palavras de Napoleão ante as pirâmides do Egito:

— Vamos jantar!

A Sra. Leonarda foi a primeira que acudiu à ordem superior. Dir-se-ia que a mulher ia repetir a cena do fado, tanto fulgor chegou a derramar-se-lhe nos olhos cúpidos! Para disfarce urgente, a charadista acondicionou vagarosamente os rijos baba­dos do seu vestido, esmagados pelo volume do corpo sobre a cadeira. A devota do Castelo, a viúva Arrozal, a mocinha do arvoredo tu já viste, o escrivão e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que estalava os dedos enquanto compunha intimamente um discurso de ocasião, seguiram a Sra. Leonarda e dirigiram-se todos à sala de jantar. A beata dos Barbadinhos alongava os olhos pelo corredor estendendo-os até a mesa, para contar as iguarias. A Sra. Leonarda respirava valorosa­mente. D. Quininha Ciciosa pôs em ordem simétrica todas as suas fitinhas. A viúva Arrozal abandonou a memória do defunto, e a mocinha, umedecendo os lábios com a ponta da língua, mostrava ser muito mais expressiva à mesa do que ao piano.

O violonista, o Passos do Beco do Cotovelo e do tabuleiro do gamão fechavam a marcha triunfal.

— Felisberto vai para a cabeceira! gritou Anastácio Agulha, indicando os lugares. Sente-se aí mesmo, Sra. Leonarda, a senhora aí também. Eufrásia fica ao pé do nosso Lopes. Clementina junto de mim. Oh! menina do piano! bem juntinha de D. Clementina. Nada de cerimônias! Então, comadre?

— Não se lhe importe comigo, Sr. Agulha, observou a Sra. Quitéria do Amor Divino. Eu cá não me perco!

— Toca a comer, minha gente! bradou Anastácio Agulha, sentando-se com estrondo.

O silêncio sucedeu às palavras: ouvia-se apenas o ruído dos talheres e dos queixos vorazes. A Sra. Leonarda parecia querer engolir a sopa, o prato, os talheres e a sala ao mesmo tempo! Aquilo já não era uma mulher, era um minotauro! Se as onze mil virgens coubessem em um prato de sopa, seria questão de uma colherada apenas para a Sra. Leonarda!

A devota devorava rapidamente, mas sem barulho. Com a cabeça baixa e a boça unida ao prato, parecia estar pregando algum sermão ou rezando a ladainha com a maior fé exigida pelo catolicismo. De vez em quando pregava os olhos em um leitão que lhe estava em frente!

A viúva Arrozal adotara um sistema particular nas horas de refeição. Bebia uma colher de sopa, erguia os olhos ao teto e suspirava profundamente. Até comendo, aquela pobre senhora conversava com o defunto!

Os mais faziam o que lhes era possível em tal situação. O violonista, talvez por não ter comido desde que caíra o filhi­nho doente, bloqueava o prato com mais atrevimento do que os aliados atacaram Itororó!

A mocinha do arvoredo tu já viste, sempre recuando e avan­çando a cadeira, sorrindo, olhando para todos, resmungando uma modinha entredentes, tomava a sopa fazendo da ponta da colher uma espécie de assobio!

O Passos, do Beco do Cotovelo, com o tabuleiro de gamão debaixo do braço esquerdo, entregava-se às delícias do seu prato, sem dar a mínima atenção aos outros.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo não quis sopa: estava estudando o discurso.

O escrivão Lopes, inteiramente risonho, fazia o que lhe era possível com os queixos e com o resto.

Eufrásia Sistema, com o menino no colo, sentia-se alegre e feliz. D. Quininha Ciciosa, em um dos movimentos que fez,molhou a ponta das fitas no prato de sopa.

— Quem trincha o leitão? exclamou Anastácio Agulha enxu­gando a boca.

— Estava boa a sopa, não estava, Sinhá Pequena? perguntou a devota, baixinho.

— Assim, assim; muito salgada. A cozinheira não parece ser muito boa.

— Basta, Bembém, murmurou a viúva Arrozal à mocinha do arvoredo; todos já acabaram. Queres ficar senhora lnácia?

— É que eu como muito devagar!

— Pois nestas ocasiões deves comer depressa, minha filha. Quanto mais se demora mais feio é!

— Ah! ninguém trincha o leitão? prosseguiu Anastácio Agulha, enfastiando-se. Ninguém trincha? Trincho eu!

E meteu o garfo com tanta força no inofensivo animal, que o leitão, resvalando na gordura, foi de um salto cair no colo da devota dos Barbadinhos!

— Credo! Cruz! Santa Maria Madalena! Oh! senhor! está cego? Que maneira de trinchar essa!

— Ah! Ah! volveu Anastácio, sorrindo. É que eu espetei um bocadinho e...

— Um bocadinho! Se o senhor fizesse assim em alguma pessoa, era capaz de a matar!

A mocinha do piano dizia à viúva Arrozal:

— D. Clementina, me sirva!

— Espere, menina, isso não vai assim, oh!

— Me sirva, me sirva!

O vinho circulava por toda a mesa.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, enchendo-se de ânimo, levantou-se, hirto como um espectro, e depois de tossir afetadamente:

— Meus senhores e senhoras, começou ele.

— Queres leitão, Felisberto? atalhou Anastácio Agulha ime­diatamente.

— Meus senhores e senhoras, continuou o procurador, pescando uma frase que o salvasse eloqüentemente.

— Mas que diabo quer ele?! disse Anastácio Agulha aborrecido.

— É discurso! afirmou a Sra. Quitéria do Amor Divino, enchendo o terceiro copo.

— Oh! diga outro! diga outro! bradou a mocinha batendo palmas.

— Cala a boca, Bembém!

— Que é que tem, D. Clementina? Pois a gente não pode gostar de versos?

— Meus senhores e senhoras...

— Mas acaba isso com um milhão de diabos! uivou Anastácio Agulha, dando um murro na mesa.

— Já começa ele, D. Candinha!

— Isso estou eu vendo, Sinhá Pequena. Nossa Senhora olhe para nós! Antes estar em um navio no mar alto do que aqui!

O Passos, do Beco do Cotovelo, passou o tabuleiro do gamão do braço esquerdo ao direito, para espetar uma cebola re­cheada. O violonista Clementino que já havia dado cabo de três costeletas, galgou a quarta sem pestanejar.

— Meus senhores e senhoras! prosseguiu Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, olhando assustado para Anastácio Agulha, que empunhava marcialmente o trin­chante; meus senhores e senhoras! No dia venturoso em que um filho pequeno entra nos...

— Já entrou onde quiseres e já saiu! gritou Anastácio Agulha eletrizado. Continua o discurso que eu quero trinchar-te!

— Hein?

— É um modo de falar, Felisberto! Não te importes, Felisberto! Continua o discurso!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo fez uma pausa como os oradores quando querem proteger os taquígrafos.

— Quando um menino entra no mundo pela porta boa, tudo vai bem! A família do menino, a família do menino...

— Deve-te alguma cousa a família do menino?! vociferou Anastácio Agulha.

— A família do menino é como o passarinho que abre as asas...

— Oh! acudiu a mocinha do arvoredo. Que bonito! O passa­rinho que abre as asas. Diga outro! diga!

— Cala a boca, Bembém! É feio!

A Sra. Leonarda, cuidando que o procurador acabara o dis­curso, levantou-se e abriu uma grande folha de papel bordado.

— Que vai a senhora fazer? que vai a senhora fazer? pergun­tou Anastácio Agulha sempre de trinchante em punho!

Assim faço quando quero

Não dizer nada a ninguém

Não digo nada a ninguém

Pois não quero dizer nada. – 2 –

— Não diga! uivou Anastácio Agulha. Não diga nada agora! Guarde esse diabo para depois!

A devota do Castelo puxou o vestido da charadista.

— Sente-se que é melhor, Sinhá Pequena. O homem não está bom!

— Quer pé de leitão, Sr. Lopes?

— Obrigado, já tenho.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, engasgado com a frase, esperava sempre de pé continuar o discurso. D. Quininha fazia bolinhas de pão e a Sra. Quitéria do Amor

Divino estava com a boca cheia e redonda como um saco de viagem.

De repente ouviu-se um barulho na escada.

 

XVII
BERNARDO JOSÉ ENTRA EM CENA

Entrou o escrivão Lopes trazendo pelo braço Bernardo José que cambaleava de sono. Anastácio Agulha correu ao encontro do compadre, fulo de alegria:

— Oh! eu já não podia mais, compadre! Onde esteve até agora? morreu alguém de sua família? foi chumbar algum dente? foi cortar o cabelo? Foi...

— Estava na igreja, respondeu laconicamente o escrivão Lopes.

— Na igreja! Pois houve outro batizado?

— Pegou no sono; foi preciso falar ao sacristão para abrir as portas. Do contrário ainda lá ficava até amanhã, à hora da missa.

— Oh! exclamaram todos pasmos.

A Sra. Quitéria do Amor Divino foi a única que não exprimiu o seu pensamento, por estar com a boca povoada de arroz de forno.
Bernardo José, olhando para a companhia atentamente, desatou a rir com a velocidade do paquete inglês. Anastácio Agulha imitou-o e daí a pouco era uma gargalhada geral, como aquela de que nos dão notícia as tradições mitológicas do Olímpo.

— Sente-se, compadre, bradou Anastácio Agulha. Sente-se e coma para criar forças. Logo mais é que é o barulho todo!

— Que lhe dizia eu, Sinhá Pequena? O barulho todo! Santa Cândida nos proteja, minha senhora!

— Veja a Quitéria como está descansada, xente! Aquilo é que é comer, Nossa Senhora. Parece que não janta desde o ano passado.

— E não muda de prato, repare.

— É para não perder tempo.

A mocinha do arvoredo murmurava trêmula à viúva Arrozal: – Faz mal comer duas vezes a mesma cousa, D. Clementina?

— Decerto, Bembém. A gente não está em sua casa. É preciso saber viver no mundo, minha filha.

— Mas a senhora já repetiu três vezes pato ensopado. E então?

A viúva Arrozal corou e erguendo os olhos ao céu em dois suspiros:

— Pato! Era a comida de que ele gostava!... Não era, Francisco?

E continuou mergulhada no êxtase com o talher erguido sentimentalmente.

Anastácio Agulha, cada vez mais rubro e frenético, encheu um prato até as bordas e passou-o a Bernardo José.

— Coma tudo compadre. E beba-lhe um trago por cima que é favor!

A Sra. Leonarda, como se fora movida por um maquinismo, levantou-se às pressas e desenrolando o papel bordado, antes que Anastácio pudesse embargar-lhe a voz, recitou de um fôlego só o seguinte:

Assim faço quando quero,

Não dizer nada a ninguém.

Não digo nada a ninguém,

Pois não quero dizer nada. – 2

Assim faço quando quero,

Chamar alguém sem falar. – 2

O conceito da charada,

É o que se deve ao menino desejar.

— Já acabou, senhora? Já acabou? Irra! que isto só o diabo engole!

— Adivinhem! gritou a charadista, espalhando os olhos por todos os convivas.

— Há de ser armarinho, observou a beata dos Barbadinhos, a D. Quininha Ciciosa. Ela só quer que o menino bote um armarinho.

Estas palavras não foram ouvidas pela charadista, graças à sua surdez natural.

— Que será D. Clementina? Será touca? Estou quase dizendo!

— Oh Bembém! deixe estar que nunca mais você jantará em casas alheias. Tem cada lembrança. Se soubesse como é feio isso!

O Passos do Beco do Cotovelo, com o cotovelo descansado no tabuleiro do gamão, cismava profundamente sobre a charada.

O violonista, pensando talvez no filhinho doente, sentia-se incapaz de prestar ouvidos a qualquer cousa; motivo por que não cessava de devorar copiosamente.

— É negócio! bradou a charadista revirando os olhos com um sublime rancor. Os senhores não adivinham nada! Assim faço quando quero não dizer a ninguém, 2, é nego. Assim faço quando quero chamar alguém sem falar, 2, siu: negócio. É o que se deve ao menino desejar.

— Pois eu não desejo, suspirou Eufrásia Sistema. Quero antes que ele estude para doutor. É mais bonito. Não é, Anastácio?

— Tudo é bonito, tudo é bonito. Ele, eu, você, nós todos podemos ser o que o diabo quiser.

— Quê!

— O que o diabo quiser! Doutor, negociante, alfaiate, sapa­teiro, tocador de violão, boleeiro, negociante, alfaiate, doutor, tocador de violão, sapateiro, doutor, negocian...

— Está tonto já, D. Candinha, coitadinho! Veja que atrapa­lhação de língua!

— Estou com um medo, minha senhora!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo bateu palmas e tossiu como da primeira vez.

— Já começas, Felisberto!... sibilou Anastácio Agulha, rangen­do os dentes. Já começas com as tuas asneiras!

— Meus senhores e senhoras, principiou o procurador, masti­gando a frase. É hoje um dia, um dia, um dia daqueles mais...

Bernardo José fitou os olhos arregalados em Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo. O homen­zinho atrapalhou-se um pouco e afastou a cadeira.

D. Quininha Ciciosa, meneando o corpo aflautado e leve, dirigiu-se risonha a Eufrásia Sistema para dizer-lhe não sei que segredo. Anastácio Agulha prendeu-a na passagem e fê-la voltar à sua cadeira sem dar explicações.

— Não tem que dizer nada. Vá sentar-se, ande.

Bernardo José deixou de comer para não perder de vista Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Vamos ao peru! bradou Anastácio Agulha. Oh lá, Sr. Lopes, faça-me em tiras este bichinho.

A Sra. Leonarda sorriu expressivamente à devota dos Barbadinhos. A mocinha do arvoredo tu já viste disse à viúva Arrozal:

— Me dê um bocadinho de papo, ouviu D. Clementina? Não se esqueça!

— Aí está você outra vez, menina! Parece que nunca comeu peru, minha gente!

O Passos do Beco do Cotovelo mudou de um braço para outro o tabuleiro do gamão para ter livres os movimentos da mão direita.

O violonista pediu novo prato e talher limpo. A Sra. Quitéria do Amor Divino limpou a grandiosíssima boca e não arredou olhos do prato de peru. D. Quininha Ciciosa, enfadada com o que lhe acontecera há pouco, torcia as pontas do guardanapo silenciosamente. Bernardo José chegou a sua cadeira para mais perto de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que, embora assustado, tentava acabar o interminável discurso. Começaram as saúdes.

— Viva D. Eufrasinha que há de ser muito feliz! (Brinde proposto pela Sra. Quitéria do Amor Divino.)

Bernardo José saudando a comadre despedaçou de encontro à parede um vaso com flores. O brinde sucedeu ao brinde, e as nuvens do deus Baco envolveram toda a companhia.

Anastácio Agulha ia de um a outro lado da mesa batendo palmas, dando piparotes no menino, que acordou chorando, bei­jando Eufrásia, nos cabelos, debruçando-se sobre D. Quininha Ciciosa, cortejando a Sra. Quitéria do Amor Divino, e, em uma das vezes, enganando-se de lugar, estalou um sonoro beijo no ombro imenso da Sra. Leonarda.

— Credo, agora é que está tudo de pernas para o ar, observou a charadista assustada.

— Sim, meus senhores! exclamou Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, acometido sempre pelos olhos de Bernardo José. Quando uma criança entra na vida é preciso que seu pai não tenha coração, não tenha o sentimento preciso e requerido pelo...

— Cala a boca com um milhão de demônios! uivou Anastácio Agulha. Não quero mais discursos! nunca houve discursos! não é preciso discursos! Deixe o compadre falar! Fala, compadre! Dize o que quiseres, compadre! Estou doido por te ouvir, compadre!

Bernardo José sorriu, olhando ora para o procurador, ora para a Sra. Leonarda.

— E ele não tira a vista da senhora, Sinhá Pequena!

— Antes uma boa morte, D. Candinha. Aquele é mais malu­co que o outro!

Bernardo José, segurando no trinchante que arrancou das mãos do escrivão Lopes, riu para a charadista, experimentando a ponta da faca na palma da mão.

— Vou-me embora, oh! lá se vou! observou a gorda mulher, erguendo-se a custo. Todo o meu mal foi ter vindo a este lugar maldito!

— Pelo amor de Deus, fique, Sinhá Pequena, senão pode acontecer-nos alguma!

— Fique a senhora, se não tem vontade de viver. Eu cá por mim... Mas Anastácio Agulha trepando na cadeira:

— Não sei o que sinto! exclamou ele desabotoando o colete com ambas as mãos. Hoje é o dia mais desesperado da minha vida. Tudo está cor de rosa, amarelo, cor de fogo diante de meus olhos! Eufrásia! Dá cá o menino, que eu preciso do menino!

Eufrásia Sistema, com uma previdência santamente mater­nal, desaparecera da sala.

Anastácio Agulha prosseguiu:

— Ah! que calor! que vontade de... Passos! vamos jogar o gamão, Passos? Clementino, toca um lundu! Venham todos! Basta de comer! Felisberto, onde está o contrato?

— O contrato?

— O contrato da venda do padrinho: dois contos e tanto! Bernardo José levantou-se de um pulo. Todos separaram-se da mesa.

— Segurem-me! continuou Anastácio Agulha ensaiando a polca em cima da cadeira. Uma charada, senhora Felizarda! Onde estás, Felisberto? Eufrasinha, dá cá o menino.., o menino...

— Ah! que medo, D. Clementina. Vamo-nos embora!

— Põe primeiro umas nozes no lenço, menina, e uns pedaços de queijo, anda!

— Passe adiante, D. Candinha, dizia a charadista atrapalha da com a cadeira.

D. Quininha Ciciosa dirigiu-se sorrateiramente para a cozinha.

O violonista, um tanto afetado também do vinho, em vez de espetar uma laranja, espetou o braço do jogador de gamão. O tabuleiro caiu e o Passos esperneou gritando. Anastácio Agulha, querendo mostrar força e equilíbrio, levantou uma perna e sem poder sustentar-se caiu redondamente no chão.

Correram as mulheres para a porta. Na frente ia a Sra. Leonarda, verde de medo, e suando como o chafariz do Largo do Paço. Mas ao chegar à porta, a pobre mulher recuou mais espavorida, e sem poder suster-se fechou os olhos, caindo sobre as outras que vinham atrás.

Bernardo José tomara o caminho do corredor, olhando para a charadista lugubremente e amolando o trinchante na palma da mão.

 

XVIII
COMO ACABOU A FESTA

Eufrásia Sistema, atraída pelo barulho no corredor, rompeu a multidão e chegando-se a Bernardo José, com uma coragem digna de Mme. Roland, apoderou-se-lhe do trinchante fatal. O padrinho de Bernardino não fez a menor resistência: começou a cantarolar entredentes uma de suas excêntricas e inumeráveis modinhas, dançando em redor da comadre estupefacta.

Eufrásia Sistema correu aos que haviam ficado na sala de jantar. Despertou Anastácio Agulha que, estendido no chão, roncava como um barítono e convidou os demais convivas a irem para a sala de visitas. O violonista comia ainda desaforadamente; o Passos, do Beco do Cotovelo, contemplava-o com a mais alta e profunda admiração!

— Venham todos, disse Anastácio com a língua um pouco pesada. Já se comeu bastante! Agora o café. Eufrasinha, manda o café para a sala.

— Pouco açúcar, D. Eufrasinha, observou a Sra. Leonarda em voz baixa. Pouco açúcar e duas gotas de limão dentro.

— Onde é que esta gente meteria o meu mantelete, meu Deus? perguntava a viúva Arrozal, ansiosamente.

— Quer ir-se embora já, D. Clementina? volveu a mocinha do arvoredo, com um certo tremor choroso na voz.

— E então, menina? Dê graças a Deus, se chegarmos em casa vivas!

— Sem beber nem um copinho de licor! Fique mais um boca­do, sim, D. Clementina?

— Você é aborrecida, Bembém! Hei de contar a sua tia, deixe estar. Parece que não ficou satisfeita ainda com o barulho; oh!

— Nada de despedidas, ouviu, Sinhá Pequena? É chegar na sala, disfarçar um bocadinho e depois... rua para que te quero!

— Talvez que em ele tomando café fique bom.

Bendito seja o coração de Maria! Antes quero vê-lo dormin­do como um marinheiro no meio do chão do que acordado, minha senhora!

— Isso lá é verdade!

— Então? Fica-se aqui de plantão todo o dia? exclamou Anas­tácio Agulha, sustendo-se mal nas pernas oscilantes. Oh! lá, Sr. Passos, ande daí. Clementino, estou doido para puxar uma fieiras com você! D. Quininha, que cara é essa tão amarrotada? Que diabo, comadre! só você deu cabo de cinco compoteiras, safa!

A Sra. Quitéria do Amor Divino atemorizada escondeu-se atrás de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Graças a Deus, estou ao pé de um homem! Se houver algu­ma cousa...

Mas o procurador, vendo Bernardo José dar dois passos ao seu encontro, mudou de lugar em menos de meio segundo.

— Vamos! vamos! vamos! gritou Anastácio Agulha.

Na sala de visitas a charadista, chamando de parte Eufrásia Sistema, disse:

— Me desculpe, sim? Eu e D. Candinha temos gente em casa e...

— O quê, D. Leonarda? Não, senhora. Há de tomar chá conosco!

A Sra. Leonarda olhou angustiosamente para a devota dos Barbadinhos. Os náufragos da Medusa nunca se olharam daque­la maneira! Olhar de desespero e agonia suprema!

A beata do Castelo não deu ouvidos ao convite da dona da casa. Julgando-se a coberto das vistas aceradas de Anastácio Agulha ensaiou alguns passos para a porta da saída. Anastácio Agulha, apesar de pouco equilibrista naquele momento, estava mais alerta do que sempre.

— Hein? que é isso? que é isso? bradou ele, atirando-se à reli­giosa fugitiva.

— É que eu... balbuciou a pobre mulher! trêmula da cabeça aos pés!

— Não, senhora, minha cara! Há de ouvir a leitura do contrato.

— Do contrato? observaram os convivas em diferentes tons.

— Depois havemos de...

Todos os olhos seguiram o movimento dos lábios ríspidos do orador.

— Depois havemos de fazer o diabo! Jogar gamão, dançar, passear de ônibus, ir ao teatro, jogar no ônibus, dançar, passear de gamão, ir ao... ao... ao...

Os olhos de Anastácio Agulha injetavam-se de sangue; estremecia-lhe o corpo convulsivamente, e cerrando com deses­pero os dedos:

— Quem fala aqui sou eu! quem se batizou fui eu! quem paga tudo sou eu, com todos os demônios! Ninguém tem que se queixar. O Passos de filhinho doente veio! O Clementino do Beco do Cotovelo está aí! D. Felisberta também! O meu amigo Leonardo procurador...

— Quê! gente?!

— ...está ali! O Lopes não faltou, o padrinho é doido, é malu­co às direitas! Vai para a Misericórdia breve!

— Nossa Senhora olhe para nós, D. Candinha!

— Estou rezando a Magnífica para isso mesmo, Sinhá Pequena! Anastácio Agulha de arranco em arranco tocou a meta de sua natureza sobre-humana.

Puxando pelo braço Bernardo José, que ainda estava no corredor, resmungando não sei quê, fechou a porta estrondosa­mente, e pregando os olhos faiscantes em toda a companhia!

— Vai-se ler o contrato e depois fazer o que eu quiser!... Estou hoje bom, ouviram? estou muito bom hoje! Cheguei ao ponto da cousa. Ah! ah! ah!

Entrava uma crioulinha pela porta da alcova trazendo em uma bandeja chávenas de café.

D. Quininha Ciciosa foi a primeira a servir-se, mas Anas­tácio, arrancando-lhe a xícara das mãos, arrumou tudo sobre o violão do Sr. Clementino, que afinava as cordas.

— Oh!

— Outra! vociferou Anastácio Agulha, fazendo viravoltas com outra xícara e procurando alguém para alvo.

A crioulinha, sem mais demora, descansou no assoalho a bandeja e partiu em uma desfilada para o interior da alcova.

A Sra. Leonarda que não tivera tempo de encafuar-se na janela, estendia o xale adiante dos olhos com medo da pontaria de Anastácio Agulha. A mocinha do arvoredo abraçou-se ao escrivão Lopes chamando-lhe – minha tia. A devota dos Barba­dinhos, de cabeça baixa como os mártires que esperam a morte sem pestanejar, rezava consigo a Magnífica.

D. Quininha Ciciosa deu o braço ao Passos do Beco do Cotovelo como quem quer passear. O Sr. Clementino serviu-se do violão como de um escudo, o escrivão Lopes procurava debalde escapar aos abraços suplicantes da mocinha cantora; Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo levantou a gola da sobrecasaca e mergulhou o queixo escondendo a cabeça com as mãos; Eufrásia Sistema trancou a porta da alcova, e Bernardino Sistema Temporal Agulha rugia como cinqüenta locomotivas da estrada de ferro de D. Pedro II!!

Nesse ínterim pára à porta um ônibus. Anastácio Agulha, deixando cair no chão a xícara prestes a seguir destino, voou à janela exalando um suspiro de prazer.

— Foi você quem mandou vir o ônibus, Felisberto? pergun­tou o escrivão Lopes.

— Fui eu, sim, por minha desgraça!

— Decididamente perdeste o juízo, meu velho. Agora é que tudo está perdido! Anastácio Agulha voltou da janela triunfante.

— Aí está o ônibus!

— S. Benedito! N. S. da Conceição! Sete Chagas de Cristo, oh! Sinhá Pequena, vamo-nos embora que ainda é tempo!

— Sosseguem todos! prosseguiu Anastácio Agulha, tentando sorrir amavelmente. Felisberto, lê o contrato.

— Não! não trouxe! volveu Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, cada vez mais lívido.

— Vou arrancar-to do bolso! bramiu Anastácio, arregaçando as mangas.

— Está aqui! está aqui! acudiu o homenzinho, olhando para todos os lados como quem vai ser atacado por assassinos, lê você mesmo!

— Não! lê tu, Felisberto! Mas lê já. Compadre, dê atenção. Eh! lá, compadre! veja se fiz bom negócio!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, escoltado por mais de vinte olhos deslumbrados, começou assim:

“Nóz a Baxo acinadus, dêclaramos que é du Noço Agrado e pelas Garantias que a lei nus Fakultafazemus o contrato seguinte de que Seremos fiéis cumpridôres perant a honrra da Dignidadi peççoale a lêi iscripta e admittidda nu coDigo comercial e na constituição

du imperio du brasil.

“ARTIGO PREMERO. — A partti contratanti di nomi Felisberto Canudo de Oliveira Conceiçam Albuquerq e Mello, prokurador de cauzas crimes, civeis comerciaes, eclesiasticas, etc. etc. etc. nu foro judissiario da côurte compromete-se a dar por doas con­tos seiscentos mil reis um homim para servir de Padrinho para u filio de seu Amiggo o Sr. Anastacio Temporal Agulha.”

— Oh! oh! disse o Passos do Beco do Cotovelo. Um padri­nho por dois contos e seiscentos. Eu fazia por menos!

Bernardo José com os olhos fitos em Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo dirigiu-se a ele, fúnebre e silencioso. O pobre homenzinho atirando o contrato ao chão correu para o corredor. Bernardo José de um pulo alcançou-o e enlaçou-o nos braços crispados.

O escrivão Lopes por um sentimento de piedade, foi ao socorro do amigo. Mas que viu ele? Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo asfixiado, degolado, morto? Não; viu sobre o ombro do homenzinho amedrontado, Bernardo José dormindo a sono solto.

Apanhado o célebre papel, Anastácio Agulha rasgou-o em tirinhas. A fronte do escrivão anuviou-se. Quanto a Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, esse daria metade de sua vida para estar longe daquela casa, duzentas léguas pelo menos.

— Já veio o ônibus! bradou Anastácio Agulha. Vamos passear de ônibus! A Sra. Quitéria do Amor Divino irá na boléia, governando!

Mas àquelas horas já a esperta e volumosa mulher estava em sua casa, digerindo metodicamente o peru e as almôndegas favoritas.

— Eufrasinha, deixa o menino com o Passos, por exemplo.

— Eu!

— Sim, você! Hás de ser o professor de gamão desta casa, Passos!

— O menino vai, replicou Eufrásia.

— Ou isso, venha também o menino. Já disseste ao boleeiro para onde vamos, Felisberto?

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, sempre nos braços de Bernardo José, respondeu com a cabeça, melancolicamente.

A Sra. Leonarda encaminhou-se para a porta da saída.

— Espere um pouco, minha amiguinha, disse Anastácio Agulha, impedindo-lhe o trânsito. Iremos juntos todos!

— Eu não posso ir, Sr. Agulha!

— E por quê, senhora cousa? Ah! então pensa que é só comer o jantar, dançar um fado e trás! ir embora, falar mal dos vizinhos, hein? Quem tem o gosto, minha cara, deve ter também...

A Sra. Leonarda estremeceu.

— Negrinha, gritou Anastácio Agulha, leva um copo de vinho e uma laranja ao boleeiro. Está bom, não leves nada, não! Se o diabo fica bêbado estamos arranjados.

A mocinha do arvoredo tu já viste, com um grande embru­lho no lenço de pedacinhos de queijo, nozes, passas e avelãs, aper­tava a mão da viúva Arrozal, quase a chorar de medo. A viúva, fitando os olhos no teto, suspirava tristemente.

— Bem me dizia ele que eu não tratasse com pessoas do povo. Estás me ouvindo, Francisco?

Bernardo José acordado por Anastácio Agulha abandonara o ombro de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que respirou como um náufrago pondo o pé em terra firme. A comitiva, sob as ordens de Anastácio Agulha, desceu as escadas; há muitos condenados que sobem com mais resignaçãoos degraus do patíbulo. Eufrásia na porta da rua disse algumas palavras ao escrivão Lopes. As mulheres conversavam todas em voz baixa. As últimas frases da Sra. Leonarda à devota dos Barba­dinhos foram:

— Não se importe comigo. Vá a toda a brida, que eu vou atrás.

O escrivão falou com o boleeiro, e entregou-lhe uma gorje­ta. No momento em que Anastácio Agulha, arrastando Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo por um braço e Bernardo José por outro, aproximou-se ao ônibus, o boleeiro fustigou os animais, que dobraram a rua a todo o galope. Foi o sinal do alarma! As mulheres deitaram a correr; a devota dos Barbadinhos arremessou à rua mantilha para não atrapalhar-se na carreira; a Sra. Leonarda, resfolgando desabridamente, ondulava como uma falua na entrada da barra. Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo seguiu-as perdendo a cabeça; D. Quininha tomou por outro lado; a viúva Arrozal e a mocinha do arvoredo, que abandonou o lenço chorando, enfiaram por novo caminho com a mesma velocidade. Quando Anastácio Agulha se viu só, deu um arranco para acompanhar os desertores; as pernas faltaram-lhe, e o desesperado homem caiu nos braços de Eufrásia Sistema, gritando por despedida:

— Canalha! hei de esmurrar as ventas de vocês todos!

Os fugitivos corriam cada vez mais. Que fim de batizado!

 

XIX
PRIMEIRAS E SEGUNDAS LETRAS

Bernardino Agulha, sob as asas maternais, crescia e vigorava a olhos vistos. Estava com oito anos mas sem um dente. Eufrásia Sistema requeria a todo o momento um médico para examinar o estado excepcional do filho. Ao que respondia Anastácio Agulha, sentenciosamente:

— Deixa que a natureza se desenvolva por si mesma, minha filha. Há pessoas que nascem, crescem, ocupam os melhores car­gos sociais e morrem sem nunca ter tido dentes.

Eufrásia suspirava, passando o lenço pelos olhos, e tudo estava dito.

Depois do batizado do menino manifestou-se grande crise na bolsa de Anastácio Agulha. A magra colheita de Macaé foi desaparecendo pouco a pouco, e cumpria a todo o custo atender à existência da família. Anastácio Agulha sem mais cerimônia dirigiu-se à casa de um grande personagem político, alegou enormes serviços ao partido, prometeu outros, e como é "para a pior boca que se reservam os melhores bocados", pouco tempo depois uma excelente sinecura foi proporcionada a meu estu­pendo herói.

— Deus queira, observou-lhe Eufrásia Sistema! Deus queira, Anastácio, que tu não faças alguma, e ainda desta vez...

— Não tenhas medo, filhinha. Estou outro hoje, acredita! Até parece que senti partir-se uma mola dentro da cabeça! Quero deixar um nome honrado ao menino!

— Oh! mas aquela falta de dentes!

— Se eu pudesse dar-lhe dentes, também dava; mas um nome honrado isso juro-te!

— Vamos botá-lo em um colégio?

— Os colégios não prestam!

— E como é que ele há de...?

— Aprender? Deixa que a natureza se desenvolva, meu bem! Tudo está em que a natureza se desenvolva direito!

— Pois eu peço-te que indagues de um colégio bom.

— Ah!

— Que é?

— Vou mandá-lo para a Europa!

— Já estás tu com as tuas esquisitices, Anastácio. Podemos lá fazer isso! Quanto mais que eu não quero estar longe dele!

— Dá tempo ao tempo, ouviste? Tudo se há de arranjar. O caso é que a natureza se...

— Está bem. Mas não te esqueças de ir ver um colégio.

O menino ouvindo falar em colégio deixou de parte uma quantidade fabulosa de soldados de chumbo e carneirinhos de pau, para vir chorar entre os joelhos maternos.

— Não quero ir para o colégio, não quero e não quero!

— Meu filho!

— Não gosto, não gosto e não gosto! E voltando-se para o pai mostrou-lhe a língua furiosamente.

— Olha como a natureza se desenvolve, Eufrasinha! Eu bem te disse que a natureza se desenvolve por si mesma! exclamou Anastácio Agulha, com altivez e orgulho:

— Meu filhinho vai para o colégio, onde há muitos meninos bonitos, livros com figuras...

O interessante pequeno acomodou-se paulatinamente. Com os olhos acesos pela cobiça infantil, a respiração presa e os ouvi­dos atentos, seguia as palavras de Eufrásia, entrecortando-as de observações e perguntas a propósito.

— Livros de figuras, mamãe?

— Muitas figuras, acudiu Anastácio Agulha, uma porção imensa de figuras! O livro só tem figuras, meu filhinho!

— E tetéias? No colégio também tem tetéias?

— No colégio? No colégio não há outra cousa senão tetéias.

— Cavalinhos de pau com rodas?

— Oh! nisso nem se fala!

— E doces de confeitaria também?

— Em toda a parte!

— E passarinhos?

— Hás de ficar aborrecido até; há tantos passarinhos! Bernardino coroado de prazer movia a cabecinha sorrindo.

— E bolhas de sabão? também se fazem lá?

— Se os mestres mesmo ensinam.

— E... ?

— E... ?

— Oh, eu quero, eu quero! Me bote no colégio. Vou já para o colégio.

— Então, Anastácio? perguntou Eufrásia alegre e feliz.

— Pois que entre! volveu Anastácio Agulha, depois de dois minutos de meditação. Assim como assim a natureza há de se desenvolver em qualquer parte. Sim, comece pelo colégio. Se ele tiver jeito para o estudo, logo se vê.

— Que bom! exclamava o menino saltando no meio da sala. Passarinhos, bonecos, figuras, cavalos com rodas. Oh! me leve já, papai!

— Como hás de tu conhecer o melhor colégio, Anastácio? Bem sabes que o teu trapalhão de compadre entende tanto dessas cousas como eu.

— Aquilo só serve para ser doido!

— Até que afinal confessas, hein?

— Se eu fosse perguntar a Felisberto... Felisberto deve saber.

— Não vê que ele cai na asneira de se meter mais contigo.

— Oh! tenho um meio!

— Qual?

— Pela tabuleta. O colégio que tiver tabuleta mais nova é o melhor.

— Estás doido!

— É o melhor. Enfio-me por essas ruas, e assim que der com a vista em algum que me faça conta, cá estou em um pulo, enquanto o diabo esfrega o olhos!

— O melhor é eu perguntar a D. Januária.

— Deixemos de D. Januárias que o tempo não está para graças! Essas mulheres de manias são levadas da carepa! Ainda tenho a tal danada Leonarda e as outras todas na garganta!

— A Leonarda veio cá ontem.

— Pois ainda vive esse trambolho?

— Coitada, Anastácío! A pobre mulher nunca se esquece de me vir visitar.

— Ah! não foi a primeira vez ontem desde que nos mudamos?

— Não; ela, D. Quininha e a viúva Arrozal mais ou menos aparecem.

— E a que horas?

— Quando estás no arsenal.

— Medo de mim, hein?

— E com razão. Pobre gente! Sabes que a D. Januária me mandou hoje um presente muito bonito? É uma boa doceira aquela senhora!

— Tá tá tá... não quero saber de nada, não. Quem se mete com mulher... Também como nunca mais hei de dar pagodes...

— Está muito enganado. Eu quero festejar desta vez os anos de Bernardino.

— Pior! temos mouros na costa!

— Deixa estar que eu saberei levar as cousas direito, não tenhas cuidado.

— Adeus, até logo!

— Vais ver o colégio?

— Vou ver a tabuleta, sim! Desejo que ele entre para a me­lhor tabuleta; não! quero dizer para o melhor colégio da cidade!

Como a leitora não tem obrigação de adivinhar o pensa­mento do romancista, e para que esta história seja considerada em tudo um verdadeiro monumento para as letras pátrias, tenho a declarar que a família Agulha desde o princípio deste capítulo já não mora à Rua da Misericórdia n. 91 Y.

Anastácio Agulha no dia seguinte ao da festa do batizado tratou de vingar-se da vizinhança. Entrou pela casa da Sra. Leo­narda, sem pedir licença, empregando na rótula um estupendo pontapé, que fez chegar à janela próxima o nariz da beata dos Barbadinhos.

— Credo! Nossa Senhora da Conceição. Vou trancar a porta por dentro enquanto este endemoniado não me vem dar cabo da pele.

A Sra. Leonarda, que fazia crivo sentada em um pequeno banco, deu um grito sufocado, quis levantar-se, caíram-lhe os ócu­los, atrapalhou-se toda, e rolou embrulhada nos bilros, na renda e no tamborete como se fosse atacada por uma comoção nervosa.

Anastácio Agulha, de chapéu na cabeça e fazendo tiroteios com a bengala:

— Não lhe meto aqui o pau, uivou ele desesperadamente, porque tenho pena de ti, pedaço de elefante! Mas eu vou mudar­-me, ouviste, anta? Não me ponhas as patas em casa, do contrário desanco-te as costelonas com um pau de vassoura!

A Sra. Leonarda pedia perdão a Deus de seus pecados e encomendava a alma em uma última oração.

Anastácio Agulha saiu tão ruidosamente como havia entra­do. Dois passos adiante era a casa da devota dos Barbadinhos. Anastácio deu quatro ou cinco socos na porta, uma dúzia de bengaladas, e como não lhe respondessem, pôs a boca no buraco da fechadura:

— Hei de te encontrar em alguma parte, diabo! No Castelo mesmo arrebento-te os queixos no meio do sermão!

Subiu as escadas da casa de D. Quininha Ciciosa que veio recebê-lo, sempre envolta em fitas e sorrisos.

— Tenha a bondade de entrar, Sr. Agulha!

— Não tenho que entrar nem sair, minha sirigaita!

— Como, senhor?

— Sirigaita! Venho dizer-lhe que me mudo e que pego na sua amizade e atiro-a pelas escadas abaixo.

— Mas...

— Viva! Quem me avisa, etc!...

A viúva Arrozal suspirou olhando para o teto, quando o viu entrar.

— Fique-se com o seu defunto de uma figa...

— Hein?

— Com o seu defunto! fique-se com ele, suspire à vontade, mas não me vá mais à casa, ouviu?

— Mas quem foi que ... ?

— Irra! só sinto não poder mandá-las todas à forca!

A Sra. Quitéria do Amor Divino ouvindo dizer que Anastácio Agulha queria vê-la, escondeu-se no quintal da casa, suando em bicas.

Anastácio Agulha, para desafogo, partiu duas cadeiras e cinco enfeites de porcelana da mesinha da sala.

Não era fácil arranjar casa às pressas. Só seis meses depois é que a família Agulha fez a sua passagem para o Morro do Castelo. É inútil dizer que a vizinhança sempre visitava às escon­didas Eufrásia Sistema. No próximo capítulo serei explícito a res­peito de conhecimentos antigos e modernos.

Sou forçado a voltar a Anastácio Agulha e ao colégio para o menino.

— Achei, Eufrasinha!

— Onde é? muito longe?

— Logo aí abaixo, à Rua do Carmo. Veste o menino, anda!

— Que pressa!

— Eu quero ir já, mamãe, eu quero, arre!

— Olha a natureza, hein? como se desenvolve! observou Anastácio, acariciando o menino.

— Mas ele não vai ficar lá sempre?

— Meio pensionista. Volta de tarde. Já falei ao Brites.

— Brites?

— É o mestre. Chama-se Brito, mas eu gosto mais de Brites. Hei de chamar-lhe Brites sempre!

Bernardino Agulha, pulando e rindo, acompanhou o pai. Eufrásia Sistema abraçou o filho com os olhos rasos de lágrimas.

— Por que choras?

— Ora! sozinho no meio dos outros. Podem fazer-lhe algu­ma. Ele é novo no colégio e os mais velhos serão capazes...

— Cala a boca, mulher! Aí estás com lamúrias à-toa. Anda, Bernardino.

Quando chegaram ao colégio era hora de recreio. Os meni­nos cercaram o calouro, que mostrou a língua a eles todos em primeiro lugar e depois ao professor.

— Que idade tem o menino?

— Oito anos, respondeu Anastácio Agulha. Oito anos e tanto, pouco mais ou menos.

— Já lê alguma cousa?

— Por ora nada.

— Bem; meio pensionista, não?

— Sim, senhor; eu mesmo virei buscá-lo à tarde.

— Quer que eu lhe ministre os compêndios ou o senhor?

— Ministre, Sr. Brites...

— Brito, um seu criado.

— Brites, eu sei que é Brites, quero antes que seja Brites. Pois, meu caro Brites, ministre-lhe-os... Que vai ensinar ao pequeno?

— Necessariamente primeiras letras.

— Eis aí uma cousa que eu não quero!

— Como!

— Ensine-lhe logo segundas letras, Brites. Vai mais depressa.

— Quê, senhor!

— Mau! replicou Anastácio Agulha, metendo as mãos nos bolsos, quando eu digo que é melhor ensinar-lhe segundas letras, parece-me que estou no meu direito, Brites!

 

XX

A PRIMEIRA LIÇÃO DE SEGUNDAS LETRAS

Quando Anastácio Agulha voltou do colégio, Eufrásia Sistema recebeu-o ansiosa, acometendo-o de perguntas por todos os lados e a todo o momento:

— Ele ficou contente? fala!

— Ora! se ficou. Eu é que tive lá uma espécie de rusgazinha com o Brites.

— Nossa Senhora!

— Mas não foi nada, não foi nada.

— Por causa do menino?

— Qual! por causa do nome dele. Queria por força que eu lhe chamasse Brito, e seria mais fácil!... É Brites, sempre foi Brites, e há de ser sempre... Brites! Depois, foi a respeito do ensino...

— Também tu te metes com tudo, Anastácio!

— Temos outra! Sabes lá o que é colégio? Já foste professora ou pelo menos menina de colégio?

— Bom!

— Não foste, não, não é? Pois o Brites queria ensinar-lhe primeiras letras e eu forcei-o a começar pelas segundas.

— Oh!

— Pelas segundas letras, sim, senhora. Assim o pequeno aprende em uma semana o que os outros só fazem em dois meses! Aí tens no que deu a rusgazinha. Foi um brinquedo, acredita! O Brites, por fim de contas, convenceu-se e...

— A que horas vais buscar Bernardino?

— Às cinco. Quando ele souber ler pode vir só.

— E o que tem uma cousa com outra, meu Deus?

— Que pergunta! Sabes que mais? Não digo mais uma palavra a respeito de colégio. E se continuas a pedir-me expli­cações, tiro de lá o menino.

— Não te zangues, basta. Oh! vais sair?

— Vou ao arsenal. Tenho lá hoje que enfardar umas enco­mendas do ministério. Se o Loustalot vier cá, dize-lhe que eu estou enfardando umas encomendas do ministério.

— Loustalot?

— Já te disse que não respondo a mais nenhuma pergunta. Adeus; até logo.

— Não te esqueças de Bernardino.

— Fica ao meu cuidado. Adeus.

Eufrásia Sistema vendo desaparecer Anastácio Agulha tocou de leve na vidraça de uma janela contígua à sua. Momentos depois apareceu o semblante reluzente de uma crioulinha.

— A senhora está ocupada?

— Está arrumando os tabuleiros, sim senhora. Quer que eu chame ela?

— Dize-lhe que quando puder, apareça na janela, ouviste?

Às últimas frases, tomou o lugar da crioula uma senhora quase tão colossal como a Sra. Quitéria do Amor Divino, envolta em um espesso xale de lã cinzenta e em uma seriedade de minis­tro do Império.

— Boa tarde, D. Eufrásia. Então quer ir sempre?

— Aos Barbadinhos? Quero, D. Januária; mas estava com vontade de perguntar-lhe...

— A receita de ontem? Já se esqueceu, minha filha? Duas libras de farinha de trigo, seis ovos...

— Não, não é isso! Bernardino entrou para o colégio, sabe?

— Ah! entrou? É melhor pôr mais uma pitada de canela, talvez que...

— Que diz, D. Januária?

— É cá outra cousa, minha senhora. Ora imagine que meu mano me encomendou um bolo inglês para o chá de um compadre que ele tem. Estou com vontade de fazer o bolo assim: ouço bem...

— Conhece algum colégio na Rua do Carmo, D. Januária?

— Conheço, sim!

— Ah! havemos de ir lá juntas!

— Pois não sabe que eu briguei a ponto de jurar não pôr os pés naquela casa?

— Com o Brito, ou Brites? A senhora brigou com ele?

— Que Brites, senhora! O que lhe posso afirmar é que lá se fazem muito boas empadas...

— Como, D. Januária! Aí há engano!

— ...de palmito e camarão todos os dias, e nas quintas-feiras, de galinha. Basta que lhe diga, minha senhora! Fazem-se lá muito boas empadas!

— Em um colégio, D. Januária!

— Pior! A senhora chama confeitaria a um colégio! aquilo é uma confeitaria.

— E tem tabuleta?

— Tabuleta muito bonita, pintadinha de fresco. Eu vi quan­do a pregaram.

— Misericórdia! exclamou Eufrásia com uma inspiração súbita. Querem ver que Anastácio pôs o menino na confeitaria em vez do colégio!

— Mas, afinal de contas, que me pergunta a senhora?

— Perguntei se a senhora conhecia um colégio na Rua do Carmo?

— Colégio! Colégio! Temos outra!

— Sim, colégio!

— Ora vejam, senhores! Pensava que me estava falando da confeitaria do Bentinho José. Não conheço, não, D. Eufrásia.

— Estou com um susto!

— Por quê?

— A senhora sabe que meu marido é um pouco... sim... um pouco, nem sei como dizer...

— Doido, diga logo, D. Eufrásia.

— Vá lá. Levou o menino para o colégio da Rua do Carmo, diz que vai buscá-lo às 5 horas; mas eu estou vendo que tudo não passa de alguma nova maluquice de Anastácio.

D. Januária, com os olhos fitos em Eufrásia, começou a murmurar consigo, segundo um íntimo e mais que importante pensamento.

— Mais uma pitada de canela, duas gemas bem batidas com um pingo de limão galego... Pouco tostado há de ficar melhor... E despertando em sobressalto:– Falou-me, D. Eufrásia?

Eufrásia Sistema, desassossegada, espalhava a vista por todos os lados como se esperasse ver surgir Bernardino em alguma desfilada pela ladeira acima.

— Não falei, não, D. Januária. A senhora não se dá com aquele homem alto que mora defronte? O que se mudou há duas semanas...

— Muito: é um professor não sei de quê por aí!

— Oh! faça-me o favor de mandar saber se ele conhece o tal colégio da Rua do Carmo!

— A esta hora não está em casa decerto. Com licença, eu já volto; vou ver se as balas estão em ponto. Não acha que botando mais uma pitada de canela e corando tudo com duas gemas de ovo deve ficar bom?

Mas Eufrásia Sistema não respondeu. Tinha o espírito preso ao colégio Brito ou Brites, temendo alguma desgraça para Bernar­dino Agulha. A respeitável D. Januária saiu da janela resmungando metodicamente, com a impassibilidade dos ventríloquos, a nova receita do bolo inglês.

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Tive a honra de deixar Bernardino Agulha, rodeado de meninos, no capítulo antecedente. Anastácio Agulha depois de quatro ou cinco exclamações retumbantes acerca de primeiras e segundas letras, retirou-se do colégio, entre os gritos e psius de Bernardino que queria voltar para casa.

O calouro sofreu desse momento em diante o que todos sofrem, mais ou menos. Em primeiro lugar as perguntas:

— Como te chamas?

— Não sei, não é de sua conta!

— Ah! não queres dizer? exclamou um, dando-lhe um belis­cão formidável.

— Eu me chamo Bernardino, respondeu o menino, chorando.

— Oh! oh! é o nome do dispenseiro. Bernardino de quê? diz já, anda, senão...

— Bernardino Sistema Temporal Agulha.

Acompanhou o nome uma gargalhada geral.

— Sistema!

— Temporal!

— Agulha! Vem coser minha calça, anda!

— Dá um ponto no meu paletó, anda!

— Me deixem! gritava o menino atacado pelos flancos direito e esquerdo.

O professor Brito aproximou-se à roda:

— Que é isso, meninos?

— Oh! Sr. professor! ele chama-se... Ah! Ah! Ah!

— Ah! Ah! Ah!

— Chama-se Agulha, Sr. professor.

A assuada continuava e Bernardino, que tinha nas veias san­gue de Agulha, levantou a mão e pregou um murro na cabeça do mais próximo. Caíram todos em cima dele; foi uma orquestra de gritos, bofetadas e pontapés em todas as claves. O professor Brito mal pôde conter os assaltantes. Com menos ruído e destroço entraram os aliados em Humaitá!

Eufrásia Sistema esperou, morrendo de ânsia, Anastácio até as 8 horas da noite. D. Januária tentava debalde consolá-la despe­jando-lhe ao ouvido uma catarata de receitas.

— Oh! Anastácio fez alguma!

— Deus é grande, minha filha. Quer ver como tudo ficava mesmo em ordem?

— Como? perguntou Eufrásia Sistema sem perder uma sílaba.

— Com mais uma libra de farinha de trigo e dois pingos de água de flor. A doceira brasileira ensina de outro feitio, mas não é tão gostoso.

Eufrásia Sistema, enchendo-se de resolução:

— Vou eu mesma ao colégio! exclamou pondo-se em pé. Nesse momento bateram vivamente à porta.

Era Anastácio Agulha trazendo Bernardino pela mão.

— Meu filho! gritou Eufrásia Sistema, agarrando o menino e enchendo-o de beijos. Oh!

— Que é?

O rosto de Bernardino estava cheio de contusões.

— Não quero que ele vá mais ao colégio, bradou Eufrásia! Veja, Anastácio!

— Isso vi eu logo quando cheguei. Agora vai tu ver a cara do Brites como ficou. Foi a paga da primeira lição que ele deu ao pequeno: esmurrei-lhe as ventas a tapa inglês.

Bernardino Agulha chorava nos braços maternos, esmagando entre os dedos crispados o seu compendiozinho de ABC.

Anastácio Agulha passeou pela sala e parando subitamente defronte de D. Januária:

— Hei de esmurrar as ventas de muita gente ainda!

D. Januária perdeu o fio de uma receita de trouxas de ovos.

 

XXI

UM ANÚNCIO EXPRESSIVO

Era uma hora da tarde. Na sala de jantar da casa de Eufrásia Sistema achavam-se reunidas as seguintes pessoas: a Sra. Leonarda por antonomásia, Sinhá Pequena, D. Quininha Ciciosa, a Sra. Quitéria do Amor Divino, D. Januária, Bernardino Agulha e Eufrásia Sistema.

Bernardino Agulha, com a testa envolta em um lenço molhado em vinagre, brincava com os seus soldados de chumbo e com um novo cavalo de pau, ganho nesse dia em virtude dos ferimentos do combate colegial.

Eufrásia Sistema de vez em quando suspirava, olhando melancolicamente para o filho.

— E que fez o Sr. Agulha? perguntou D. Quininha Ciciosa, continuando um diálogo já encetado a tempo.

— Ora, o que fez! volveu Eufrásia Sistema. O que ele faz sem­pre: brigou, deu no mestre, pôs tudo de pernas para o ar e não sei o que mais! Não há quem possa com o gênio de meu marido! Mas foi pouco ainda: pobre menino! deviam pôr na cadeia o tal professor de meia-cara! Deixar que façam isso em uma criança!

— No meu tempo, acudiu a Sra. Leonarda, o negócio fiava mais fino. Hoje!

Uma suculenta pitada foi o complemento direto da oração começada.

— Não mande ele mais para o colégio, não, minha filha, disse a Sra. Quitéria do Amor Divino. Ou então...

— Então?

— Bote em um colégio de meninas.

— Oh!

— Sim, mamãe, sim! gritou Bernardino, esquecendo os soldados de chumbo e dando um salto de prazer; eu quero entrar para um colégio de meninas!

Chegou a vez de D. Januária:

— Colégios de meninas sei eu que os há bons. Tenho uma prima que tem uma filha no colégio de Saraiva. Ainda outro dia fiz para lá uma bandeja de queijadinhas, que era só comer e pedir mais. Sabe da receita, D. Leonarda? É muito fácil: quebram-se quatro ovos frescos, duas...

Não é amargo — 2 — bradou a charadista tempestuosa­mente. Faz a criatura mudar em tudo: — 2. — Conceito: — É o que é D. Januária! Adivinhem!

— Já sei, exclamou D. Quininha Ciciosa; é queijadinha!

— Como, senhora? Pois eu sou uma ... ?

— Adivinhem! continuou a Sra. Leonarda, fechando o sobrolho. Bernardino Agulha aproximou-se ao grupo, vibrando de curiosidade infantil.

— Que é? Que é, mamãe? me diga no ouvido para mim só.

— Eu sei, meu filho!

— É doceira, vociferou a charadista com um grande ar de soberania e orgulho. Não é amargo 2 — doce. — Faz a criatura mudar em tudo 2 — ira — Conceito: — É o que é D. Januária. Que é que ela é? Doceira.

— Bravo! gritou Bernardino Agulha. Que bonita cousa!

A Sra. Leonarda recolheu-se de novo para fulminar mais uma vez os ouvidos do próximo, quando Eufrásia Sistema, dirigindo‑se a D. Januária:

— Mas não me dirá o que devo fazer para arranjar um bom colégio para Bernardino?

— Só com mestre em casa. Eu conheço um, por sinal que no dia dos anos da filha dele o doce que lá apareceu foi todo feito por estas mãozinhas! Gostaram muito do pudim de laranja. Sabe a receita, D. Quininha?

— Não, senhora, respondeu a outra, rindo no meio de suas fitas.

— Olhe, continuou a gorda mulher, alegre por achar ouvinte, parta seis ovos, bata-os bem batidos, meia libra de farinha boa, deixe pingar dentro seis ou sete...

— Na Marmota é que vem uma bonita receita de suspiro em forma de charada, atalhou a Sra. Leonarda. Muito bonita, veja:

— Se a senhora me fizesse o favor de falar com o tal mestre que disse há pouco, atalhou Eufrásia Sistema.

— Ah! o tal do pudim de laranja! Pois não, falo.

— Tem visto D. Candinha? continuou Eufrásia, dirigindo-se à Sra. Leonarda.

— Anda adoentada.

— É por isso que eu pergunto. Não a vi antes de ontem nos Barbadinhos.

— Frei Romão esteve lá ontem. Por sinal que eu lhe mostrei uma charada nova de que ele gostou muito! É um santo homem!

— Por que é que ele é santo, mamãe? Porque gosta de charadas? perguntou Bernardino Agulha.

A charadista deitou ao menino um olhar severo e inquisitorial.

— Bom, D. Eufrasinha, vou-me embora que são horas. Até...

— Já, D. Leonarda?

— Já sim. Pode aparecer por aí o...

E a charadista fez um gesto de medo.

— Ainda não é tempo, volveu Eufrásia, compreendendo que se tratava de Anastácio Agulha. Só lá para as três horas.

— Nada, nada; cautela e caldo de galinha...

A gorda charadista levantou-se a custo, apertou a mão das pessoas presentes, afagou a cabeça do menino e dirigiu-se à porta. Foi o sinal da partida geral. Todos, menos as pessoas de casa e D. Januária, acompanharam a Sra. Leonarda, por alcunha Sinhá Pequena.

— Ah! é verdade, disse Eufrásia Sistema na porta; sabem que muito breve estão convidadas para um jantarzinho?

— Aonde? perguntou a Sra. Quitéria do Amor Divino, amo­lando os beiços.

— Aqui.

— Credo, Maria Santíssima! observou a Sra. Leonarda. Com o homem?

— Ora, ele está tão mudado!

Assim faz quem é bom — 1— exclamou a charadista, envol­vendo-se na mantilha: Assim faço para não morrer— 2 — Conceito.  — É o que ele é!

— Ele quem, mamãe? disse Bernardino Agulha, que não per­dia uma só palavra de tudo o que se falava.

— Estude para adivinhar depois, acrescentou a Sra. Leonarda, movendo o corpo na cadeira.

— Diga sempre! rogou Eufrásia Sistema.

— Pois é — danado, minha senhora. Quem é bom — — eu que não quero morrer — nado. — E o tal homem não passa de um danado! Adeus, até mais ver. Nossa Senhora fique nesta casa!

— Também pensa assim, D. Quininha? Não vem?

— Eu? respondeu D. Quininha Ciciosa, sorrindo e derrean­do o corpo. Oh! eu venho. Que é que tem?

A Sra. Quitéria do Amor Divino decidiu-se afinal e aproxi­mando-se ao ouvido de Eufrásia Sistema:

— Eu cá por mim, só com uma condição.

— Qual é?

— De poder fugir como da outra vez, sem ninguém dar fé!

Depois da retirada das três amigas, Eufrásia Sistema tornou às suas tristezas acerca de Bernardino Agulha.

— Oh! D. Januária, só a senhora poderá fazer o que eu quero!

— Menos pastéis de carne, minha filha! Com pastel de carne já me aconteceu uma no Carcelera que...

— Já sei, já sei! acudiu Eufrásia, impaciente.

— Todo o Rio de Janeiro sabe, pode estar certa. A carne não era muito fresca, é verdade; mas a massa estava muito folhada, o açúcar e...

— Não é isso, D. Januária! Falo do professor!

— Já lhe disse que não me esqueço; que quer mais? Agora me deixe ir ver a calda do doce de marmelo que é encomenda de um doutor e eu não quero servir mal.

— Abre, Eufrasinha! gritou Anastácio Agulha batendo na porta amiudadas pancadas com a bengala.

— Um! rosnou D. Januária. Aí está o troca-tintas. Vou-me embora!

Anastácio Agulha entrou suado e vermelho como quem tivesse galgado aos pinotes o morro do Castelo.

— Bernardino? Onde está Bernardino? Vem cá, Bernardino? E estalando dois beijos na boca do menino:

— Vou fazer um anúncio já para o jornal do Commercio.

— Um anúncio? Queres te mudar?

— Não; é para arranjar um mestre de segundas ou terceiras letras.

— Para o menino?

— Decerto. Dá cá papel e tinta.

— Não sei se haverá pena.

— Escreve-se com a caneta, não faz mal. A cousa toda é escre­ver por bem ou...

Anastácio Agulha redigiu às pressas, de chapéu na cabeça e bengala debaixo do braço, o seguinte anúncio:

TODA A ATENÇÃO!!

Um professor que queira ensinar segundas ou terceiras letras a uma criança de menor idade, tendo tudo o que precisar: cama, casa, comida, talheres, roupa, água para o rosto e café ao jantar, apareça a qualquer hora na Ladeira do Castelo n. 4 H, e fale com o proprie­tário ou com a mãe do menino. O ordenado será feito depois da con­versa que houver; ordenado bom e de encher o olho. Até lá o pobre pai espera!! N. B. – Cama, casa, talheres e café!

Terminado o anúncio, Anastácio Agulha tirou do bolso uma nota de cinco mil réis e pondo tudo quase à força na mão de D. Januária:

— É a senhora quem há de levar isto à tipografia do jornal!

— Eu, senhor!

Anastácio enterrou o chapéu até as orelhas e, batendo com a bengala no chão:

— A senhora, sim, minha compoteira de goiaba! Vá! A gente não costuma mandar qualquer pessoa, um negro às vezes, tirar um bilhete para ver se sai a sorte grande! Pois é o mesmo! Se a senhora levar o anúncio, sai a sorte grande!

— A sorte grande!

— Quero dizer: vem um bom professor. Leve e pague, ande!

A pobre mulher olhou espantada para Eufrásia Sistema. Ber­nardino Agulha pulava batendo palmas, em redor de D. Januária.

— Escuta, Anastácio, aventurou Eufrásia Sistema.

— Não temos aqui nada que escutar. Ou por bem ou por mal leva ou não leva o anúncio?

D. Januária caiu sentada no sofá, revirando os olhos como em um ataque de idiotismo.

Anastácio Agulha com a bengala ao ombro esperava, assobiando uma das modinhas de Bernardo José.

 

XXII
DUAS SORTES GRANDES

No dia da publicação do anúncio, que D. Januária fez chegar ao competente destino, sem comprometer a sua gordura monu­mental, Anastácio Agulha despertou aos primeiros sinais do galo matutino, e puxando Eufrásia pelo braço:

— Vou sair! disse ele.

— Tão cedo, Anastácio?

— Sabes quais são as minhas tenções? Comprar um bilhete de loteria.

— Ora!

— E hei de tirar a sorte grande com um milhão de diabos. Verás!

Eufrásia Sistema voltou-se bocejando para a parede e Anas­tácio Agulha, depois de pronto, pôs-se ao fresco.

À hora do almoço estava reunida toda a família, quando bateram estrondosamente à porta.

— Há de ser algum mestre para Bernardino! exclamou Anas­tácio, rubro de prazer.

O menino deixou de parte o mingau e começou a chorar.

— Não quero aprender mais! Já disse! resmungou ele entre lágrimas.

— É para teu bem, meu filho! observou Eufrásia Sistema acariciando-o.

Novas pancadas na porta.

— Irra! Já vai! Se começa assim, meu caro, brigamos na pri­meira lição, logo!

Anastácio Agulha foi em pessoa abrir a porta da rua.

— Oh!

— Quem é? perguntou Eufrásia, correndo à sala com a excla­mação do marido.

Por sua vez também a mãe de Bernardino despachou uma interjeição a tempo. Era Bernardo José, Bernardo José, vestido com certo aprumo diplomático e, caso admirável! aler­ta como nunca.

— Estará bom da cabeça? perguntou consigo Eufrásia Siste­ma, olhando pasma para o compadre.

Bernardino Agulha, de guardanapo ao pescoço, veio tam­bém reunir-se à família.

Bernardo José aproximou-se ao menino, meio assustado, e descansando-lhe a mão na cabeça:

— Deus te abençoe na hora da morte, disse ele profundamente.

— Como! na hora da morte, compadre? objetou Anastácio Agulha trocando com a mulher um olhar significativo.

Bernardo José sorriu, mas não se dignou responder uma só palavra.

— Venho buscar o meu afilhado, hoje.

— Hein? para quê?! acudiu Eufrásia Sistema, correndo ao filho como que indo protegê-lo.

— Preciso dele, continuou Bernardo José, com os olhos febrilmente iluminados.

— Ah! se precisa, isso é outra cousa, exclamou Anastácio Agulha. Vai vestir o menino, Eufrasinha.

— Não vou! E chamando à parte o marido, enquanto Bernardo José dizia em surdina algumas palavras ao afilhado:

— Pelo amor de Deus, Anastácio, não queiras matar teu filho!

— Oh! oh! oh! Então toda a vez que um padrinho vai passear com afilhado é para matá-lo, mulher?

— Não sei; não sei; mas admira que você conhecendo o homem...

— O homem não é o mesmo, repara! Até nem dorme! Quem pode adivinhar lá o que ele quer fazer ao menino?

Eufrásia Sistema teve uma súbita inspiração:

— E o anúncio? E os mestres que hão de vir cá daqui a pouco? Anastácio Agulha, acabrunhado pelo raciocínio da mulher, meditou seriamente no caso.

— E não é que tu tens razão, menina? Se ele for, vem o mestre, se vem o mestre ele vai... Tá tá tá! já não sei por quantas ando! E dirigindo-se a Bernardo José:

— Desculpe-me, compadre, o menino não pode ir. É o dia do mestre e...

Bernardino Agulha atirou-se ao chão, esperneando com um desespero acima de toda a paciência evangélica:

— Eu não quero mestre, não quero! quero ir com meu padrinho tomar chocolate.

— Chocolate! repetiu Anastácio Agulha sem saber o que fazia.

— Depois, ir ao Passeio Público, ir passear de bote.

— Nossa Senhora me ajude! gritou Eufrásia. E no mesmo tom:

— Anastácio! eu não deixo Bernardino sair!

Os olhos de Bernardo José brilhavam como brasas.

— Eu quero! eu quero ir com meu padrinho!

— Vai! ordenou Anastácio Agulha, com um gesto digno de Gil Brás de Santilhana.

Eufrásia Sistema levando quase à força Anastácio Agulha ao interior da casa:

— Se você me estima... começou ela.

Anastácio Agulha meteu as mãos nos bolsos.

— Ora, que hás de estar sempre com coisinhas para me inco­modar, senhora! Que mal pode acontecer ao pequeno? Tomar chocolate? Comer biscoitos não pode, que não tem dentes! Passear de bote? Há botes que não vão ao fundo... Eu conheço alguns botes que... Sabes de uma cousa, senhora não sei que diga? O menino vai. Só eu sinto que o padrinho não esteja mais malu­co do que sempre!

— Cruz!

— Está bom e é pena! Está bom, basta olhar-se para a cara dele hoje. E até tem falado à grande. Vou associar-me com ele no bilhete! 4734: 4 e 7, 11, noves fora 2 e 3, 5 e 4, 9; são nove contos certos, é meio bilhete!

E correndo à sala:

— Vamos associar-nos neste bilhete compa...

A frase foi terminada por um grito, um grito de verdadeiro espanto desprendido pelo casal: a sala estava deserta, a porta escancarada; Bernardo José e o afilhado haviam desaparecido.

Eufrásia Sistema, como uma louca, desceu até a ladeira. Anastácio Agulha acompanhou-a nervosamente.

— Ah! a culpa foi tua! foi tua! foi tua!

— Vai buscar meu chapéu que eu desço por aqui abaixo como um coelho. Hei de agarrar o patife!

Eufrásia Sistema não se moveu do lugar em que estava: as lágrimas corriam-lhe em borbotões dos olhos fitos na distância. Anastácio Agulha entrou em casa, enfiou o paletó, tomou o chapéu e a bengala e apertando as mãos frias da mulher:

— Eu vou, não tenhas medo! Podes acreditar que o homem não é mais doido.

— Oh! meu Deus! meu Deus!

— Se vierem os mestres, dize-lhes...

— Mas vai, por tudo quanto há!

— Nada de primeiras letras, hein? exclamou Anastácio no fim da ladeira. Segundas, segundas ou terceiras letras, pelo menos; cama, roupa lavada e café! Não te esqueças!

D. Januária, que espreitava tudo através da cortina, esperou que Anastácio Agulha desaparecesse para entrar em cena.

— Que é, D. Eufrásia?

— Oh! nem sei como contar, D. Januária! É uma história tão comprida!

— Entre ao menos para a casa, minha filha. Esta vizinhança bate com a língua que é um Deus nos acuda!

— E que me importa a mim com a vizinhança, D. Januária!

— Não chore, menina!

Apesar de todo o interesse que lhe inspirava a ocasião, a gorda senhora voltou-se para dentro e gritou vivamente:

— Olha a calda, crioula. Quando estiver pronta a massa, vem dizer. Não deixe queimar o pudim! – Se eu lhe contasse a história deste pudim, vizinha, havia de rir todo o dia! Imagine a Sra. que o...

— Cale a boca, D. Januária; pelas chagas de Cristo não me diga nada!

Eufrásia Sistema estalava os dedos e engolia as lágrimas e os soluços...

— Entre ao menos para a minha casa, menina. Ande; olhe os vizinhos que não são para graças!

Eufrásia Sistema não respondeu nem se moveu sequer: com a vista sempre ao longe esperava a todo o momento ver aparecer uma luz que a salvasse.

A volumosa doceira, compadecida, desceu a ladeira, e dando a mão a Eufrásia fê-la entrar para casa. A pobre mãe seguiu-a automaticamente.

— Mas o que foi, não me dirá?

— Foi que o padrinho de meu filho é um doido!

— Seu compadre, menina!

— Qual compadre! É um doido, um maluco, um desesperado que já está no inferno em vida.

— Credo! Deus lhe perdoe, minha filha. Bata no rosto!

— Esse doido veio hoje cá em casa...

— Ah! eu vi: estava até provando uma geléia que acabei de fazer para a confeitaria do...

— Entra em casa e pediu para a gente deixar ele levar consigo Bernardino.

— Valha-nos Deus!

— Eu não queria por nada, e quando estou na sala de jantar falando com Anastácio, ele agarra o menino e...

Eufrásia Sistema acabou o período sufocada em soluços e gritos lacrimosos.

— Minha filha!

— Vai matar meu filho, D. Januária! É um doido que já esteve não sei quantas vezes na Misericórdia. Ah! minha Virgem Santíssima! meu filhinho de minh'alma.

Uma crioulinha aproximou-se a D. Januária nesse momento.

— Vai-te embora, negra! Não sei já onde tenho a cabeça! Pobre menina! Psiu, oh! negrinha! manda botar os bons-bocados na forma, anda! Nem sei onde tenho já a cabeça, Senhor.

Durante uma longa hora, equivalente à eternidade, Eufrásia Sistema chegava à janela, voltava para dentro chorando, mandou a escrava correr ruas atrás dos fugitivos, e quando o relógio mar­cou duas horas menos um quarto, ela bradou arrogantemente:

— Reze por mim, D. Januária!

— Quê!

— Reze por mim. Vou eu mesma procurar Bernardino, e se não o encontrar...

— Pois mata-se gente assim de dia, menina?

— Se não o encontrar, atiro-me do cais embaixo!

— Oh! filha! Venha cá, que é isso! Que cheiro de cousa queimada! não sente, vizinha? Negrinha, olha o forno!

Eufrásia Sistema conseguiu ir à sua casa e embrulhando-se em uma manteleta, veio à porta.

— Adeus, D. Januária!

— Que olhos! menina! Deus é grande! espere um pouco!

— Não! vou já!

Quando Eufrásia punha o pé fora de casa, ouviu uns psius e umas exclamações no princípio da ladeira.

— É ele, D. Januária! exclamou, querendo dar dois passos e caindo sentada no degrau de pedra.

— Ele quem? O menino? O doido? Mau! Se é o doido fecho já tudo!

Poucos momentos mais, Anastácio Agulha trazendo Bernardino pela mão alcançou Eufrásia Sistema com um brado vertiginosamente esplêndido!

Eufrásia Sistema, rindo e chorando, pálida como um cadáver, ajoelhou-se adiante do filho cobrindo-o de lágrimas e beijos.

— Meu filho! meu filho! meu filho da minha alma!

— Sabes de uma cousa, Eufrasinha? exclamou Anastácio Agulha, suando da cabeça aos pés.

Eufrásia Sistema não lhe dava ouvidos; beijava e abraçava freneticamente Bernardino Agulha.

— Tirei a sorte grande e meti o compadre no hospital dos doidos! Graças a Deus! Era minha vontade trancafiá-lo eu mesmo um dia nos alienados! 4734! 4 e 7 11, noves fora 2, e 3, 4, e 5 9!... Meio bilhete! O que ele teve foi um momento lúcido ou lícido, ou não sei o quê! Duas sortes grandes! Meti o bilhete na casa dos doidos e...

D. Januária espiava por trás da cortina, tremendo como varas verdes:

— Ele é que está doido deveras! Pobre menina, onde caíste!

Anastácio Agulha voltando-se para alguns vizinhos, que assistiam àquela cena admirados:

— 4734! bradou ele. Podem ir ver! Sorte grande e compadre no hospital! Viva tudo quanto a antiga musa canta!

Eufrásia Sistema murmurava entre as últimas lágrimas:

— Meu filho! Nossa Senhora seja tua madrinha sempre!

D. Januária rezava o Padre-Nosso misturando-o com recei­tas de baba de moça e pastéis de nata.

 

XXIII

EUFRASINHA MORRE NESTE CAPÍTULO

Educar a qualquer menino é trabalho realmente espinhoso; mas educar a um Agulha é cousa que nunca passou pela cabeça dos mais audaciosos preceptores do globo!

Quando Anastácio Agulha, dando tréguas aos seus biliosos entusiasmos, conseguiu fazer entrar em casa Eufrásia Sistema, que não cessava de derramar lágrimas e bênçãos sobre o quase perdido herdeiro da família, bateram de mansinho à porta e uma voz fanhosa formulou o — dá licença — habitual entre a primeira e a segunda pancada.

Anastácio Agulha correu à porta e abriu-a sem mais preâm­bulos. Entrou um sujeito baixo, de óculos verdes, paletó conde­corado pela velhice e pela poeira dos tempos, que, no limiar, se debruçou com a mais profunda cortesia.

— Foi aqui que anunciaram...

— Graças a Deus! exclamou Anastácio, sem deixar o homem terminar a frase. Espero-o desde ontem à tarde!

— Mas se foi hoje que saiu o...

— Isto é um modo de falar, caro Sr. Oliveira!

— Magalhães, se faz favor.

— Oliveira, Magalhães, Antônio, Ñunes, Saraiva, Garcia, tudo dá no mesmo! Vamos ver agora se lhe serve a fatia!

— A fatia?

— Sim! se está pelo que diz o anúncio. Ensina ou não ensina segundas letras?

— Que idade tem o menino?

— A idade não vem ao caso! Ensina ou não ensina segundas, quero dizer terceiras, ou por outra...

O candidato à educação intelectual de Bernardino Agulha, sempre em pé na porta, olhou para Anastácio sem saber se trata­va com um louco ou com um desfrutador da humanidade.

— Eu li o anúncio que V. Sa...

— Que você, que você, é melhor. Não gosto de senhorias, não uso senhoria, para que falar em senhoria, Saraiva?

— Magalhães, Magalhães.

— Mau, já lhe disse que eu nada tenho com o seu nome! Fale, caro Sr. Garcia!

O homem resignou-se à sorte, e depois de cortejar Anastácio Agulha, Eufrásia Sistema e Bernardino, a quem não escapava uma palavra de todo aquele singular diálogo, murmurou:

— O anúncio diz que se deseja um professor para lecionar primeiras letras.

— O anúncio diz segundas ou terceiras letras, Sr. Pinto!

— O que entende V. Sa por...

— Estou vendo que não chegamos ao fim do negócio, meu caro! acudiu Anastácio Agulha abotoando o paletó de cima abaixo. Quer ou não quer ser mestre do menino?

— Decerto, eu ...

— Casa, comida, roupa lavada, café...

— Sim, senhor, não ponho dúvida, mas...

— Entendamo-nos, Silva! É bom que nos entendamos! O menino é aquele, olhe!

A esse tempo já Eufrásia Sistema cercava com os braços o filho, receando novos infortúnios.

— Então quer V. Sa que eu...

— Que você ensine logo segundas letras para ver se na sema­na que vem entramos em terceiras para acabar.

— Mas, senhor... ponderou o homem atrapalhando-se.

— Não serve, meu caro, não serve absolutamente. Você é decerto um parlapatão como há muitos hoje.

— Quê, senhor?

— Um parlapatão, já disse! Pensa então que ser professor é para qualquer maricas, qualquer pintalegrete, qualquer Magalhães!

— É inútil insultar, senhor!

— Eu não insulto! Vá embora, ande, vá ensinar em outra parte! Pela primeira lição vê-se logo que você não presta!

Anastácio Agulha proferindo esta última frase desabotoou o paletó furiosamente e fechou o sobrolho.

O infeliz professor procurando o melhor ensejo desceu às pressas o degrau e assenhoreou-se da rua.

Anastácio Agulha fechou com cólera a porta e voltando-se a Eufrásia:

— Daqui por diante não os recebo mais na sala. Canalha! Hei de perguntar da porta mesmo para que eles servem, e assim poupo o trabalho de os desancar a todos! Muito custa a criar um filho, Eufrasinha! Estou suando!

— Mas Anastácio, tu não me disseste ainda o que se passou com Bernardino, hoje!

— Ah! é verdade. O Brites...

— Temos barulho ainda?

— Pelo contrário; ninguém deve dizer: deste pão não comerei ou desta água não beberei, filhinha! Sabes onde encontrei Bernardino e o danado do compadre? No colégio!

— Como?

— Eu te digo. Ele não te prometeu uma arca de Noé e um aparelho de cozinha, meu filho?

— Todo de chumbo, e um tambor e um oratório, mamãe.

— Vês como ele diz oratório direitinho! Pois bem, no meio do caminho, ao pé do colégio Brites, o desesperado pôs-se a pular, a gritar, a dar no menino, a...

— Meu Deus do céu!

— É mesmo, mamãe.

— E tu que fizeste, meu filho?

— Eu fugi para o colégio.

— Ele fugiu para o colégio e o compadre atrás, cada vez mais doido. Ajuntou-se povo, vieram pedestres, o Brites falou, gritou, fez o que quis e estava para pôr tudo pela porta fora quando eu cheguei.

— Depois, depois!

— Depois tratei de meter o compadre em um carro, e zás! casa da Misericórdia!

— Antes fosse na cadeia!

— Qual! Lá ele está mais seguro! Sabes o que fez, durante o caminho? Dormiu a sono solto. Foi quando conheci que o homem estava maluco outra vez. Que felicidade!

— Anastácio!

— Oh, que felicidade! Eu bem te disse que havia de trancafiá-lo nos doidos. Hoje estou satisfeito, posso dormir mais descansado.

— Meu filhinho! exclamou Eufrásia Sistema beijando de novo o menino. Pede a Deus que tua mãe não falte!

— Bode expiatório! volveu Anastácio Agulha, entregando-se a uma séria meditação. Bem dizia o sonho que ele havia de ser o bode expiatório da família. Eu cá por mim tenho feito tudo para o salvar.

— Pois não!

— Está bom, está bom, deixemo-nos dessas cousas agora. Quando eu voltava com Bernardino do hospital...

— Pois ele também foi?

— Decerto, para conhecer o lugar e a rua. Talvez que um dia precise lá ir e...

— Pelo amor de Deus, não digas isso, Anastácio!

— Nós estamos no mundo, minha cara! ninguém sabe o que lhe acontecerá de hoje até amanhã; mas vamos ao caso. Quando vinha com Bernardino, a pé, o Chico dos bilhetes abraçou-me gritando e dando-me socos de prazer.

— Qual é o número do bilhete? perguntou-me ele engasgado.

— 4734! respondi eu.

— Sorte grande! continuou o trapalhão, fazendo reunir povo ao pé de nós.

— Lembrei-me então de ti, e deitei a correr com Bernardino até cá. Duas sortes grandes, e a melhor foi ter posto o compadre na Misericórdia.

— Deus te perdoe!

— Sinto-me hoje alegre e leve que é um gosto. Agora sim, estamos com a burra recheada. Dá-se ou não se dá o jantar nos anos do pequeno?

— Fazes-me um favor? Não me fales mais em pagode. Acabas ainda por incendiar a casa.

— Ora!

— Esse dinheiro servirá para nosso filho um dia. Com o teu ordenado no arsenal...

— Não trabalho mais!

— Pois não! hás de trabalhar e ser muito bom paizinho para que Bernardino nos agradeça um dia.

Anastácio Agulha comovido meteu as mãos no bolso.

— Se te portares muito bem, continuou Eufrásia, ameigando a voz e acariciando o marido, hei de fazer-te uma surpresa.

— Uma surpresa!

— Verás.

— Bom; vou ser mais pacato que um carneirinho de sela.

Recebido o prêmio do bilhete, que não foi dessa vez uma fantasmagoria, filha da imaginação escaldada de Anastácio Agulha, a família entrou nos seus hábitos vulgares. Bernardino Agulha começou a soletrar sob os auspícios de D. Januária, que entre o b, a, ba e o c, e, ce, recordava uma receita em que entra­va coco, ovos e canela em profusão.

— Verá, minha amiga, dizia a doceira a Eufrásia, verá como o menino em pouco tempo está lendo geografia! Isso de mestres, não valem meia libra de farinha peneirada!

Faltavam doze dias apenas para o aniversário de Bernardino Agulha.

No fim de uma das lições do costume, Eufrásia, um pouco constrangida, dirigiu-se a D. Januária:

— Olhe, D. Januária, disse ela, eu fazia gosto em dar um divertimentozinho aqui no dia dos anos de Bernardino.

— A respeito de doces, vizinha...

— Há de ser a senhora, sim; não quero outra pessoa!

— E não hei de esfolá-la, não; pode acreditar. Só no bolo inglês gasta-se mais de quatro patacas; pois eu faço-o para a senhora por cinco e meia. Podemos arranjar queijadinhas, trouxas de ovos, fios... Não gosta de fios-de-ovos?

— Mas não quero que Anastácio saiba!

— O segredo em mim é como pedra em um poço, minha filha!

— Agora, diga-me: não conhece um professor de dança?

— Para quem, gente?

— Para mim. Há de ser a primeira vez que eu dance diante de Anastácio.

— Pois uma moça como a senhora não sabe dançar?

— Fui sempre proibida pelos médicos, não sei por quê...

— Então, não abuse, menina!

— Qual! eu estou forte, D. Januária! Me arranje, sim?

— Eu conheço o Veríssimo dos Anjos, um pardo que foi mestre de dança de minha prima, que está em Iguaçu. É dos melhores que há!

— Pois mande chamá-lo.

— Está dito.

O Sr. Veríssimo dos Anjos, notável por suas calças apertadís­simas e pelos sapatos de entrada baixa com fivela de prata doura­da, tratou com Eufrásia Sistema, por intermédio de D. Januária, uma lição todos os dias, à hora do emprego de Anastácio Agulha.

— Não contes nada a teu papai, ouviste, meu filho? dizia Eufrásia a Bernardino sempre. Vê lá! Então não ganhas uma tetéia muito bonita!

As antigas conhecidas da Rua da Misericórdia assistiam quase sempre às lições.

Eufrásia Sistema emagrecia a olhos vistos desde que ensaiara o primeiro passo da valsa. Em certas ocasiões mesmo, estacava no meio da sala logo em princípio da dança, executada ao piano por um ajudante do dançarino, e sentava-se coberta de suores frios.

— Hei de acostumar-me, dizia ela, resignadamente. Isto é susto só! com mais algumas lições estou pronta!

Nunca o professor Veríssimo dos Anjos conseguira fazer a discípula dar mais de duas voltas pela sala. Nas antevésperas do grande dia, Eufrásia Sistema não dormiu a noite inteira. Pensou em seu pai, no filho, em sua infância toda e determinou tentar o último esforço, no dia seguinte, quando viesse o professor.

Às onze horas estavam reunidas na sala a Sra. Leonarda, a devota dos Barbadinhos, D. Clementina Arrozal, D. Quininha Ciciosa e a doceira sempre planejando novos bolos e doces em calda.

O professor Veríssimo dos Anjos chegou à hora determina­da. Quando o piano deu sinal da valsa e Eufrásia tomou o braço do mestre, estava lívida como os defuntos.

— Que desespero é esse de dança, Senhor? perguntou a Sra. Leonarda à beata dos Barbadinhos.

— É verdade, parece promessa aquilo! Ave Maria!

— Faz-me lembrar uma charada que eu li no Ramalhete das Damas.

Eufrásia começou a valsar, mas parou imediatamente. Tremia toda e o suor caía-lhe em gotas enregeladas. A oficiosa D. Quini­nha correu-lhe ao encontro, e enxugando-lhe a testa:

— Não dance, D. Eufrasinha, disse ela maviosamente. Eufrásia Sistema sorriu com melancolia, e atirou-se de novo ao tiroteio da valsa.

A viúva Arrozal suspirou e erguendo os olhos: — Ele não gostava de danças de roda, coitado! murmurou surdamente.

O pianista acelerou os movimentos da música e o Sr. Verís­simo dos Anjos conduziu com mais velocidade o seu lamentável par. Os sons sucediam-se rapidamente: a viúva suspirava, Bernardino Agulha, com um boneco na mão, olhava admirado para tudo, a Sra. Leonarda ruminava uma charada, D. Januária pensava na Doceira brasileira, a devota dos Barbadinhos, D. Quininha Ciciosa, sempre de lenço em punho, esperava tréguas na música para enxugar o rosto da valsista, e Eufrásia Sis­tema cada vez mais animada, contorcia-se como uma cobra nos braços de Veríssimo dos Anjos.

— Acerte o passo! exclamou o professor, ofegante de cansaço e quase arrastado pelos braços nervosos da discípula.

Eufrásia Sistema, despedindo um grande suspiro, continuou com mais rapidez sem dar importância ao compasso da música, respirando, suando, com os olhos fechados, os lábios contraídos e palpitante da cabeça aos pés.

— Credo, repare, Sinhá Pequena! Aquilo já não se parece com dança nenhuma.

— Ih! como levanta o vestido! Olhe, eu cá para mim não há nada como o solo inglês!

— Veja o pé, veja o pé! Parece que está mais crescido. Jesus!

— Ela já pisou o outro umas quatro vezes. Se o homem tem calos, está bem arranjado!

— Não era eu que dançava aquela trapalhada.

Veríssimo dos Anjos, ao passar junto ao piano em uma das voltas da dança, ordenou ao ajudante que parasse. Eufrásia Sistema, dando um salto prodigioso e sem deixar o ombro do mestre, gritou — não! e prosseguiu mais arrebatada ainda na valsa maravilhosa.

D. Quininha Ciciosa, evitando com louvável cautela o encontro dos valsistas, seguia-os aos passinhos, sempre de lenço pronto, e rogando, quase entre lágrimas, a Eufrásia Sistema, que pusesse ponto final na valsa.

— Descanse um bocadinho, D. Eufrasinha, um bocadinho só. Não tem jeito isso! A senhora está que nem pode. Meu Deus! Sr. professor, pare um momento! D. Eufrasinha, por quem é!

A viúva Arrozal deixou os seus misteriosos pensamentos ao lado, para rogar também por sua vez. Daí a pouco era um coro geral:

— D. Eufrasinha! Então o que é isto, gente?

— Quer-se matar!

— Sr. professor!

D. Januária dominou o tumulto com a sua grandíloqua voz de trovão:

— Sr. Veríssimo! não dance mais! não dance mais!

O infeliz professor, esticando o pescoço, olhou arregalada-mente para todos, abriu com desespero a boca incomensurável e gritou: — "Não posso!" Eufrásia Sistema prendia-o e arrastava-o sem conceder-lhe um momento de respiração e descanso. A valsa tocou ao delírio! O pianista às vezes assustado retinha a fúria das notas; mas Eufrásia Sistema vociferava e era forçoso dar ao turbi­lhão o competente acompanhamento.

As mulheres, vendo que não eram atendidas pelos dançari­nos, recorreram à filantropia e à humanidade do pianista.

— Não toque mais! Pare!

— Isso não são modos, senhor!

— Mas!

— Pare! Pare!

Agarraram-lhe nos braços, cabendo a D. Januária a glória de achatar quase os dedos do pianista sobre as teclas que gemeram dolorosamente.

Veríssimo dos Anjos respirou, cuidando terminado o suplí­cio; mas Eufrásia Sistema, sem atender às exigências da dança, continuou na mesma carreira sempre, puxando, subjugando, esmagando o infeliz professor!

— Oh! ainda!?

— Nossa Senhora da Conceição!

— Estará maluca também ela? Que família esquisita!

— Sr. Veríssimo!

— D. Eufrasinha!

— É demais, senhor!

— Mas que gana de dançar é essa?

— Vejam! Quase que não pode respirar já!

Eufrásia Sistema parecia pertencer ao número das assom­brosas visões de alguma legenda antiga! Lívida, de uma magreza sepulcral, com os olhos abertos e nublados, a boca cerrada convulsivamente, e desprendendo uns gritos continuados e sur­dos, como as últimas exalações vitais de um agonizante, já não marcava o passo metódico da dança; eram pulos, saltos, zigue­zagues sem classificação possível, contrações, movimentos, arrancos, raiva, cólera, desespero! Veríssimo dos Anjos dava ao diabo todos os seus diplomas de lente catedrático!

Quando mais alto subiam as vozes, os rogos, as súplicas de toda a companhia, e Eufrásia empregava em uma volta mais desregrada os seus derradeiros esforços, um furioso pontapé apli­cado à porta fê-la abrir de par em par. Anastácio Agulha entrou como uma trovoada pela sala adentro.

— Oh!

A Sra. Leonarda escondeu-se atrás do pianista pedindo-lhe que a defendesse, D. Quininha Ciciosa estacou em meio da sala, D. Januária caiu sentada a um canto, trêmula e descorada, a viúva Arrozal dirigiu-se sorrateiramente para o corredor, a devota persignava-se, mas Eufrásia dançava sempre, centuplicando os gemidos surdos e os movimentos do corpo inteiriçado.

Anastácio Agulha estendeu os braços, recortou com a bengala o ar, quis dizer alguma cousa, não pôde e atirando-se adiante dos valsistas alongou o pé no caminho por onde eles passavam nesse momento. Perdendo o equilíbrio Veríssimo dos Anjos caiu ao com­prido no chão e Eufrásia Sistema foi recebida entre os braços de D. Quininha Ciciosa. Anastácio Agulha cavalgou o professor de dança, esmurrando-o com uma incrível rapidez. Veríssimo dos Anjos, esbaforido, esforçava-se por erguer-se e Anastácio enchen­do-o de nova profusão de socos, dizia espumando.

— Ah! tu não sabias que eu viria cá, hein, negralhão? Não pensaste no desmancho, no pai dela, na polca e nestes murros, nestes murros, nestes murros, feiticeiro do inferno?

— D. Leonarda! D. Clementina! D. Januária! Sr. Agulha! gritava D. Quininha Ciciosa. Ela está com um ataque, venham! Vá ver vinagre lá dentro, D. Candinha!

Bernardino Agulha, agarrado ao vestido de Eufrásia Sistema, chorava estrondosamente. Anastácio deixou Veríssimo dos Anjos e correu à mulher. Todos os conhecidos fizeram roda.

— Ai! Ai! Ai! Ai! gemia Eufrásia em vários tons de falsete.

— Eufrasinha!

— D. Eufrasinha.

— Alargue o colete!

— Façam alguma cousa, as senhoras! rosnou Anastácio Agulha. Para que servem as senhoras? Para que servem vocês, não me dirão?

A devota do Castelo trouxe vinagre e água-de-Colônia com que inundaram o seio e as faces da doente. Veríssimo dos Anjos aproveitou a confusão para fugir em companhia do pianista.

— Já, Sr. Maneco: vamos já embora, enquanto este diabo não nos faça alguma!

Eufrásia Sistema apertava a cintura com ambas as mãos, gemendo.

— Querem ver que é o desmancho? exclamou Anastácio Agulha, seriamente impressionado.

— Que desmancho? aventurou D. Januária.

— É preciso ver um médico! vão ver um médico. Mas não há uma de vocês que preste para nada? continuou Anastácio Agulha olhando com raiva para todas.

A beata dos Barbadinhos embrulhou-se na mantilha e saiu correndo à cata do médico.

Eufrásia Sistema ergueu-se em um paroxismo nervoso e cra­vando os olhos no marido:

— Anastácio, eu vou morrer! disse ela esforçando-se para for­mular a frase.

— Onde está este demônio? acudiu Anastácio Agulha, referindo-se a Veríssimo dos Anjos. Quero acabar-lhe com a casta!

— Escuta, Anastácio, prosseguiu Eufrásia com a voz mais sumida e terna. Eu pensei que. .. Oh! meu Deus!

— Fala! tu pensaste, tu pensaste! em que é que tu pensaste?

— Essa proibição de eu não dançar polcas e valsas...

— O desmancho; era por causa do desmancho, filha de Deus!

— Quis fazer uma surpresa a você. Amanhã é o dia... Ah! meu filho! meu filhinho do coração!

D. Quininha Ciciosa começou a chorar e a viúva Arrozal tapou o rosto com as mãos juntas.

Anastácio Agulha, sentindo-se possuído de uma emoção nova, apertou o braço de D. Januária, dizendo-lhe: – obrigado! A doceira admirada recuou um passo.

Entre os suspiros e gemidos consternados, prosseguiu Eufrásia Sistema:

— Minha vontade era amanhã, quando menos o esperasses, dançar uma valsa. Deus não quis!

— Há de querer, há de querer! Ficas boa daqui a pouco e danças seis valsas ao mesmo tempo. Eu também dançarei algumas aqui com esta senhora!

D. Januária recuou mais dois passos e pôs a mira na porta da rua.

Eufrásia desprendeu um grito, levantou-se, e caiu de novo na cadeira para. onde a haviam conduzido. O suor gelado escorria-lhe pela face cadavérica, e os dedos crispavam-se progressivamente.

— Mas quem foi que trouxe o tal mestre de dança de todos os diabos? vociferou Anastácio Agulha, espalhando coriscos dos olhos acesos.

— Eu não fui! disse D. Januária conscienciosamente.

— Foi, sim, resmungou Bernardino, vou dizer a papai que foi você!

D. Januária pregou um beliscão no menino, que se desfez em lágrimas e gritos.

Eufrásia Sistema despertou do letargo:

— Levem-me para o quarto, suspirou ela.

— Sim! vamos! Venham todos para o quarto. Este médico que não aparece!

— Talvez que fosse bom a homeopatia! observou D.Quininha Ciciosa, esquecendo-se de separar as fitas que lhe cobriam o rosto!

— Qual, minha senhora! volveu a charadista. Homeopatia é água pura da Carioca. Fale-me em óleo de rícino, isso é que é!

— Vamos! vamos!

Eufrásia foi conduzida em braços, gemendo dolorosamente sempre; acondicionaram-na no leito conjugal.

— Anastácio, começou ela, peço-te que olhes sempre para Bernardino.

— Olharemos ambos, meu bem. Tu ficas boa já!

Um triste sorriso espalhou-se nos lábios frios da doente.

— Eu vou morrer! Sinto que... Ah!

— Que é?

— Uma dor pelo corpo todo!

Anastácio Agulha levantou os braços de Eufrásia, que caíram pesadamente como os de um morto.

— Oh! vejam! disse ele, não podendo conter as lágrimas. Vai-se desmanchando pouco a pouco!

— Como, senhor?

— Este braço, este pé... e o pescoço! Maldita dança dos infernos!

— Credo!

Bernardino Agulha escondeu-se soluçando entre os braços maternos.

— Adeus, meu filho! Eu vou pedir a Deus por ti no céu.

— Mas então é verdade que tu morres!? bradou Anastácio Agulha assombrado. Eufrasinha, isso não é nada, minha filha!

— Adeus, Anastácio, cria juízo, não brigues mais... Minhas amigas, adeus!

— D. Quininha! acudiu a doceira, chame minhas negrinhas aí. É preciso botar nos pés dela umas botijas quentes!

— Botijas quentes! Eufrasinha, tu não hás de morrer! Olha para mim, olha pra mim, pelo que há de mais sagrado!

A morte imprime um selo majestoso e imponente em todos os rostos já cobertos pela fúnebre palidez. Eufrásia Sistema trans­formara-se na agonia e estava quase formosa. Entreabrindo a custo os lábios, ela pediu que lhe dessem um crucifixo.

— Eu vou chamar um padre! disse a Sra. Leonarda.

Anastácio Agulha deteve a charadista. Dessa vez o endia­brado homem tinha súplicas na voz e nos olhos:

— Não vá não, que ela não morre! É impossível que ela morra assim! Eufrasinha! O médico vem aí, dá-te um remédio qualquer e tu ficas boa, verás!

— Meu filhinho, pronunciou Eufrásia Sistema, beijando o menino! Deus tenha compaixão de ti, Anastácio!

A Sra. Leonarda, D. Quininha Ciciosa, a viúva Arrozal e D. Januária, que acompanhavam todos os movimentos do corpo de Eufrásia, disseram ao mesmo tempo a Anastácio Agulha:

— Chegue-se, senhor, chegue-se!

Anastácio Agulha tomou as mãos da mulher, sentiu-as mar­móreas, pôs-lhe a mão na boca gelada, examinou-lhe a fronte, achou-a coberta de suor frio. Desprendendo um grito partido do coração, angustiado, correu à porta, voltou de novo, lançou ao chão o chapéu bradando como em desvario:

— E este médico? onde está este médico? Ah! aquela mulher! Vou eu mesmo.

— Não saia, Sr. Agulha!

— Não nos deixe sós!

Chegou a crioula de D. Januária trazendo botijas com água quente. A escrava da família Agulha tomara o partido de chorai aos pés da cama, sem dar um passo para nada.

— Ponha esta do lado de lá, D. Quininha. Assim. Talvez seja um desmalho só, Sr. Agulha, ponderou a charadista.

Anastácio Agulha examinou novamente a cabeça, os pulsos os lábios de Eufrásia. Em um arranco supremo ela deixou passa: um gemido entre os dentes fechados e:

— Um crucifixo! foram as suas últimas palavras.

Quando Anastácio Agulha reconheceu que a mulher estava morta, saiu do quarto, cambaleando como um ébrio.

Entravam na sala a devota do Castelo e o médico.

— Onde está a doente?

Anastácio Agulha fitou os recém-chegados, sem pronunciar uma palavra. A beata entrou no quarto mortuário onde choravam as mulheres em redor da cama, e Bernardino nos braços imóveis da defunta. Quiseram arrancá-lo daí a princípio, mas não o con­seguiram.

O médico acompanhou a devota dos Barbadinhos, e vendo que nada mais tinha a fazer, retirou-se do quarto.

Na sala, de bruços junto ao sofá, Anastácio Agulha murmu­rava frases sem nexo, arrancando os cabelos aos punhados e soluçando desvairadamente.

 

XXIV

O EPITÁFIO

Não era crível que o organismo diabolicamente original de Anastácio Agulha se sujeitasse a uma longa manifestação de sentimentos íntimos. Um quarto de hora foi tempo suficiente para esgotar as últimas lágrimas da viuvez. Anastácio enxugou o rosto, firmou-se nas pernas trêmulas, e dirigiu-se à câmara mor­tuária. As mulheres, na mesma posição, sempre choravam surda­mente em redor da cama. Os olhos vidrados da defunta pareciam contemplar ainda com ternura maternal o menino, estendido ao seu lado.

— Tirem essa criança daí! exclamou Anastácio Agulha en­trando.

A Sra. Leonarda tentou executar a ordem, mas Bernardino repeliu com energia varonil as mãos da charadista. Anastácio Agulha tomou o filho nos braços nervosos e entregou-o à escra­va, que resmungava sempre entre lágrimas aos pés da cama.

— Leve ele para casa de D. Januária, anda.

— Eu quero ficar aqui! volveu Bernardino Agulha, esforçando-se para abrir os braços, que o cingiam.

— Vai!

— Sim, leva-o! acudiu D. Januária reprimindo um soluço a tempo. As negrinhas que brinquem com ele para o distrair, pobrezinho!

— Agora qual das senhoras me quer fazer um favor? conti­nuou Anastácio Agulha.

As mulheres olharam-se através dos dedos corridos sobre o rosto.

— É preciso que uma vá chamar Felisberto. Eu não posso sair, estou de nojo; mas se Felisberto não vier, quem é que vai arranjar tudo isto? As senhoras não hão de querer que ela seja enterrada aqui no quarto, hein?

— Onde mora o Sr. Felisberto? É o procurador, não é? perguntou timidamente a beata dos Barbadinhos.

— É. Olhe: vá pela Rua da Providência, no Saco do Alferes, pergunte que logo lhe dirão.

— E se ele não quiser vir?

— Pior! Basta a senhora dar-lhe parte da desgraça, para ele correr logo para cá.

— Bom, eu vou.

— Escute: diga-lhe sempre que há uns cobres a ganhar. É mais certo ele vir assim!

A beata embrulhou-se na mantilha e saiu à caça de Felis­berto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Façam-me o favor de deixar só com ela, prosseguiu Anas­tácio Agulha dirigindo-se às demais pessoas que acompanhavam a defunta.

D. Januária, a Sra. Leonarda, D. Quininha Ciciosa, cujos gemidos não haviam cessado um só minuto, retiraram-se para a sala. Anastácio Agulha fechou a porta do quarto. Duas velas estavam acesas ao pé do oratório; e, como a alcova era sombria por natureza, a luz das velas, amarelada e baça, iluminava vaga­mente a cabeça da morta.

Anastácio Agulha aproximou-se ao cadáver e pôs-se a con­templá-lo com uma curiosidade extraordinária. Ergueu-lhe a mão direita já de todo gelada e inerte; a mão caiu como da primeira vez, ao longo do corpo imóvel.

— Não é possível, balbuciou ele, seguindo um pensamento íntimo, não é possível que a gente morra por dançar um boca­dinho, Senhor!

Debruçou-se ao ouvido da defunta e chamou baixinho:

— Eufrasinha! Eufrasinha!

O ruído da cera que crepitava junto ao oratório fê-lo estremecer da cabeça aos pés. Anastácio Agulha passou as mãos frias nos cabelos de Eufrásia, tentou cerrar com um certo receio os lábios entreabertos e levemente úmidos ainda, e exami­nando-lhe os olhos nublados, mas fixos pela imobilidade da morte, colocou-se do outro lado da cama, para onde estavam dirigidas as pupilas, e recebeu em cheio aquele triste olhar sem irradiações.

— Ela está me olhando, está me olhando, Senhor! Eufrasinha! psiu! olha! vamos minha vida, meu bem, minha mulherzinha do coração! Quem está aqui sou eu, minha santa! Verás como mudo de hoje em diante! Mas se não estás morta, fala, fala, que eu não sei o que sinto já por dentro do peito!

As velas crepitavam sempre, e os olhos da morta não per­diam aquela pavorosa fixidez.

Anastácio Agulha chamou-a de novo, bateu-lhe na palma das mãos, começou a rezar uma oração atrapalhando-se todo e, finalmente, sentando-se à beira da cama, fitou tristemente a mu­lher inteiriçada e muda.

— A culpa foi tua, Eufrasinha! Para que quiseste dançar? Aí está a surpresa que me preparaste! Boa surpresa na verdade! O pobre do Bernardino é que eu não sei o que será! Uma mãe sempre é uma mãe, e você faltando assim...

Escondeu a cabeça no travesseiro, despedindo um soluço rouco e seco.

Bernardino Agulha chorava estrondosamente em casa de D. Januária.

Na sala de visitas, D. Januária, a Sra. Leonarda, D. Quininha Ciciosa e a viúva Arrozal conferenciavam em voz baixa, como acontece nessas ocasiões solenizadas pela morte.

— Eu nunca vi disto, observava a charadista. Que a gente morra de febres, de bexigas, de ataques apolpéticos, vá; mas mor­rer em dança! Maiores são os poderes de Deus!

D. Quininha Ciciosa, limpando os olhos escarlates:

— Coitadinha! Era tão boa! murmurou ela.

A viúva Arrozal ergueu os olhos, suspirou três vezes e:

— Isto de mortes é cousa de pôr a gente maluca. Quando o defunto morreu... Ah!

A Sra. Leonarda, por complacência, não recitou uma charada da palavra — defunto — dedicada à viúva do major e feita já havia bastante tempo.

— Onde será o enterro? perguntou D. Quininha. Eles terão carneira em S. Francisco de Paula?

— Eu sei, minha senhora?! Nós, que somos pobres, vamos dar todos com os ossos na ponta do Caju.

— Oh! D. Quininha, tem reparado na mudança do homem? Admira!

— A mim não admira não. É brinquedo perder a mulher, mãe de seu filho!

— Um troca-tintas daqueles faz lá caso dessas cousas!

— Não fale assim, Sinhá Pequena. Pobre homem!

— Onde está ele mesmo, xente?

— No quarto. O que foi fazer não sei.

— Vamos ver?

— Deus me livre!

— Sempre é bom. Não vá ele se matar!

— Nossa Senhora! não diga isso!

— Quando ele morreu, suspirou a viúva Arrozal, eu estive um dia inteiro ao pé do corpo. Só o larguei quando o meteram no caixão para o cemitério.

Bernardino Agulha entrou nesse momento gritando e perseguido por uma das crioulinhas de D. Januária.

— Me deixem ver mamãe! bradava ele, mamãe! mamãe! mamãe!

— Porque deixaste vir cá o menino, negrinha?

— Ele não quis ficar lá, não senhora. Estava chorando e gritando desde que chegou!

Acariciaram o melhor que puderam Bernardino Agulha e D. Januária prometeu-lhe um brinquedo para o dia seguinte.

Chegou da rua a devota dos Barbadinhos acompanhada por Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Agora podemos ir chamá-lo no quarto, Sinhá Pequena.

— Deus me defenda, minha senhora. Vá quem quiser, eu cá estou livre de meter-me em funduras!

D. Quininha Ciciosa bateu de mansinho à porta da alcova.

— Sr. Agulha, o seu amigo está aí!

Anastácio Agulha abriu a porta, e vendo Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, foi-lhe ao encontro, de braços abertos.

O homenzinho recuou assustado.

— Oh! senhor, observou-lhe a devota; tem medo de abraçar seu amigo no dia de hoje?

— Felisberto! exclamou Anastácio abraçando repetidas vezes o outro, ela morreu, estou viúvo, estou desgraçado, estou que não valho um vintém, Felisberto!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Meio entrou no quarto fúnebre, donde saiu poucos momentos depois. Veio triste e com uma lágrima no canto do olho esquerdo.

— Não haverá um portador? perguntou ele.

— Para quê? Um portador para quê, Felisberto?

— Para mandar um recado ao Lopes. É um homem acostu­mado a essas cousas! A devota dos Barbadinhos ofereceu-se; mas como passava pela rua um negro do ganho, escolheram-no para portador do bilhete.

— E os convites, Felisberto? É preciso cuidar-se dos convites.

— Deixa vir o Lopes.

— Quantos mais convidados melhor, Felisberto!

— Deixa vir o Lopes!

— Manda encomendar um ramo de perpétuas com fita larga, Felisberto!

— Deixa vir o Lopes, homem!

— Mau, murmurou a Sra. Leonarda, ao ouvido de D. Quini­nha Ciciosa, teremos barulho ainda?

Anastácio Agulha, em um ímpeto difícil de se prever, agar­rou no pescoço de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, deu-lhe uma dentada e começou a chorar desenfreadamente.

Depois de vestida e adornada convenientemente, Eufrásia Sistema foi exposta na sala de visitas. O escrivão Lopes deu todas as providências necessárias e quando tratava de mandar imprimir as cartas de enterro, disse-lhe Anastácio Agulha:

— Mande fazer logo três mil!

— Para que tanto, senhor?!

— Fica em casa para os outros que forem morrendo.

— Então como é que se há de imprimir os nomes neste?

— Manda imprimir em branco, Lopes! Em branco tudo. Assim fica servindo para depois.

A Sra. Leonarda, a devota dos Barbadinhos, D. Quininha Ciciosa, a viúva Arrozal e D. Januária olharam-se um pouco atemorizadas.

Toda a noite Bernardino Agulha esteve retido em casa de D. Januária. Anastácio sentado à porta da casa ouvia silenciosa­mente as palavras consoladoras dos seus dois amigos. As senhoras que acompanharam Eufrásia durante a agonia, só abandonaram Anastácio Agulha depois do enterro. Às 8 horas, pouco mais ou menos, o escrivão Lopes saíra para dar certas ordens. Anastácio entregou-lhe um convite para ser impresso nos jornais diários:

— Põe isto no jornal, e fale-me com um marmorista que venha cá amanhã, sem falta.

No dia seguinte lia-se o seguinte nas folhas:

"Anastácio Temporal Agulha, seu filho menor e os seus amigos, convidam a todos os vizinhos das Ruas de S. Clemente, Misericórdia e Ladeira do Castelo, onde moraram, a acompa­nharem o enterro de sua prezada mulher, mãe e amiga, hoje, da Ladeira do Castelo, ao Cemitério de S. Francisco Xavier (Ponta do Caju.)"

É inútil dizer que ninguém compareceu ao chamado por essa forma.

Na hora do enterro, que foi pouco concorrido, Anastácio estava melancólico, mas calmo. Beijou pela última vez a mulher, chamando ainda ao ouvido da morta:

— Eufrasinha! Eufrasinha!

A Sra. Leonarda, D. Quininha Ciciosa, D. Januária, a viúva Arrozal, e a beata dos Barbadinhos choramingavam rezando. Graças a Deus! houve um momento na vida dessas senhoras em que a charada, o bolo inglês, a carolice, as fitinhas e o defunto major não fizeram erupção em cena.

O corpo de Eufrásia Sistema saiu de casa para a cova triste e Bernardino Agulha estava trancado em um quarto da casa de D. Januária, ao pé de duas negrinhas travessas e umas oito caixas de soldadinhos quebrados.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo abraçou espontaneamente Anastácio Agulha. Caso raro! O escrivão Lopes, força é confessar, tratava de fazer uma soma das despesas, multiplicando-as, a seu favor, o mais que lhe era possível.

O marmorista foi incumbido do seguinte emblema e epitá­fio: um pé enorme de mármore abaixo do qual se lesse em letras de ouro:

Ela calçava 47, Suzer!

Requiescat in pace.

 

XXV
MUITOS ANOS DEPOIS

Eis-nos em pleno século de eletricidade, de máquinas ame­ricanas, de Alcazar e de notas falsas! A mantilha, a beatice, a inge­nuidade e o chapéu alto desapareceram completamente nas ondas tempestuosas da moda parisiense. O homem artificial tomou o lugar do homem da natureza; o figurino sucedeu à criatura, e há hoje quem duvide até da existência de Adão e do episódio do pecado original.

Entre o leitor (desta vez dirijo-me só ao leitor!) entre comigo no aluminado e festivo edifício da Rua da Vala, curso da língua francesa dos elegantes da Corte. O Alcazar! ALCAZAR! Esta palavra foi a princípio o grito da desordem, a senha dos revolu­cionários, o sinônimo da ruína, da desolação, da extravagância e da orgia! Em certo tempo, ir ao Alcazar era o mesmo que ser condenado à forca! As famílias tremiam pela sorte dos filhos que saíam a passeio durante a noite; a sociedade ansiosa recomendava à polícia todo o cuidado com a invasão das estrelas parisienses, cujo sistema planetário se revelava sempre por um cataclismo inevitá­vel, e os pais da família cortavam previamente dos jornais o anúncio que o Sr. Arnaud imprimia e imprime quotidianamente, lançando os fragmentos condenados às chamas de um fogo purificador!

Bom tempo! bom tempo! bom tempo aquele, Jesus meu! Hoje o caso muda de figura. Antigamente depois de uma apre­sentação qualquer em casa de família:

— O Sr. Fulano de tal, filho de um dos mais distintos capi­talistas do Rio de Janeiro, sobrinho de Sicrano, neto de Beltrano, de uma honestidade a toda a prova, etc., etc., o apresentante murmurava ao ouvido do honrado homem a quem se dirigia:

E não pisa no Alcazar!

Era bastante a última e poderosa cláusula para que o neó­fito fosse recebido de braços abertos por toda a comunidade. Agora, diz-se assim:

— Tenho a honra de apresentar-lhe o Sr. Beltrano de tal, filho de Fulano, moço de espírito, um dos elegantes da Corte; e depois de uma gargalhada metódica:

— Fizemos o diabo ontem no Alcazar, sabe?

— Ah! esteve no Alcazar ontem? pergunta o pai de família sorrindo amavelmente.

— Estive. A Pont des Soupirs é magnífica. Que música expres­siva! Não tem ido?

— Não; o reumatismo não me tem deixado. A Lovato representou, hein?

— Que dúvida! sempre chic et irréprochables!

— Viu lá o meu menino?

— Não... Ah! sim, lá estava. É um Aimée terrível! Gritava como um russo, aquele patife.

— Ah! Ah! Ah! Aquilo é um patife de mão cheia!

E minutos depois o candidato é apresentado às meninas da casa, a quem conta todos os enredos alcazaristas, repetindo por extenso várias pilhérias do Barbe Bleu e do Orphée aux enfer.

É o grande século este! O progresso palpita em tudo e a humanidade despiu no limiar dos tempos evaporados a alva túnica da monótona honestidade!

E depois o que vem a ser a elegância, o aprumo social, o jogo da mocidade e da vida? A roda do século move-se para trás agora, e a festa das orgias e das bacanais mitológicas reproduzem-se com mais furor ainda do que no tempo das tropelias de Júpiter! Entremos. É noite de festa no templo alcazarino.

As estrelas filantes, (digo filantes no sentido de viajantes), as estrelas batem-se em uma atmosfera de luz, de flores, de perfumes vertiginosos. Os espirituosos nas cadeiras afiam a língua em pi­lhérias apimentadas lançadas à cena, e as condescendentes divas sorriem a todos com os seus trinta e dois dentes de lobos famintos.

Os habitués, nos lugares marcados com chapas especiais, conversam com o mundo equívoco, distribuindo olhares e aper­tos de mão aos colegas; a seda e o brilhante dão-se entrevistas sobre corpos mais ou menos alvos e mais ou menos mercenários; a música de Offenbach recorta o ar ruidosamente, e através de tantas seduções da mocidade e da loucura, alveja uma calva de homem de Estado ou a barba branca de um fazendeiro boçal, que vem depositar nos cofres do Alcazar a importância de duas copiosas safras.

São nove horas da noite; terminou o primeiro ato; o cham­pagne fumega e estoura no botequim; o mundo equívoco passeia, as Ninons analisam-se reciprocamente; os dandys dirigem-lhes cortesias e ditos acetinados; os novos velhos são apresentados às primeiras da moda:

— "Um dos fazendeiros mais ricos de Minas Gerais."

É a chave fabulosa! Abrem-se os lábios rubros da bela, o leque move-se como a rede do pescador antes de cair na água, e uns dedos enluvados dirigem-se meigamente ao recém-chegado à Citera, acompanhando-os as seguintes palavras:

— "Será o maior prazer para mim se o senhor me considerar como uma de suas últimas criadas."

As sereias cantam assim pouco mais ou menos, e como o rico fazendeiro de Minas Gerais não se lembrou de tapar os ouvi­dos a exemplo do espertalhão Ulisses, segue-se que daí a três semanas dão-lhe cabo da frota inteira, papéis, bagagens e tudo.

São 9 1/2 horas. Começa o 2° ato. O mundo da elegância toma assento. A alva e gorda * envolta sempre no albornoz escarlate de listras negras, e em cujos olhos se estampa a todo o momento uma página de Diderot; a morena **, flexível como uma palmeira, e cujos cabelos estendidos ao longo das costas recordam as tranças lacrimosas dos circunspectos chorões; a saltitante ***, poetisa como Safo, e que está mais dia menos dia a tentar o salto de Leucade; a juvenil S., risonha e harmoniosa como um trecho do segundo ato da Bela Helena; a T., a R., a F., todas prontas e de leque em punho, apontam os olhos para a cena e os ouvidos para a vizinhança. Os rapazes cantarolam acompanhando a orquestra, e os bilheteiros, como sempre, dormem.

Há um movimento nas cadeiras e uma exclamação em quase todas as bocas. Entra uma mulher luxuosamente trajada, de maneiras elegantes, cheia de perfumes, e nessa idade crepuscular em que o espírito se aquenta sôfrego às últimas labaredas da mocidade desmaiada.

Um grosso colar de pérolas falsas cinge-lhe o pescoço ainda formoso, e as sobrancelhas pintadas por mão de mestre dão-lhe um certo ar imperativo.

À chegada dela trocam-se frases surdas, rápidas, constantes como o ruído de um esquadrão de cavalaria que avança a galope.

— Oh! lé! Ainda é viva!

— Onde estava ela? sabes?

— Em Petrópolis, ouvi dizer!

— Não é capaz. Vim de lá ontem e foi nome em que não tocaram sequer.

— Estaria em Macaé? (Risadas)

— Ela já deixou o J.?

— O J. foi que a deixou!

— Quem deixou a ambos, meus caros, foi a mudança de câmbio!

— Como sempre obscuro em tuas pilhérias, Batistinha!

— É uma mulher aproveitável! Parece a Vênus de Milo!

— Antes fosse! Estávamos livres daquelas garras!

A elegante sentou-se em uma cadeira marcada de habitué e espalhou os olhos em redor de si com um sorriso de orgulho e de correta fatuidade.

— Quem se dará com ela? perguntou um ancião a outro.

— Teu filho, decerto! Ah! Ah!

— Meu filho? A esse não dou a confiança de apresentar-me!

Novo rumor e novas frases: entrava um moço ruivo, de pince-nez escuro, cabelos encaracolados, pele bexigosa e uma boca pouco talhada para a eloqüência, decerto.

Fez vários sinais de amizade e confiança aos dandys presentes e a algumas divas, tomando assento logo depois em uma cadeira pouco afastada daquela em que se sentara a recém-chegada.

No intervalo seguinte o habitué de pince-nez escuro, apertando as mãos de um dos maiores leões do Rio de Janeiro:

— Hás de apresentar-me àquela pequena, ouviste?

— Pequena! Perto de quarenta anos, meu caro!

— Quarenta que valem por vinte! Apresentas-me?...

— Pois sim. Mas deixa-me falar-lhe primeiro em particular.

— Recomenda-me bem, compreendes? E se ela aceitar-me a corte, estás desde já convidado para uma ceia no Provenceaux!

— Com aspargos e trufas?

— Uvas molhadas em vinho de Corinto, também! Vai.

O leão sacudindo as crinas aproximou-se à bela quarentona:

— Em primeiro lugar, lindinha, hás de dizer-me onde te encafuaste este tempo todo?

— Pourquoi ça? Tu es curieux, toi, mon cher!

— Mau! Falo-te em português e respondes-me em patois!

— Pois bem; que tens tu com a minha vida? Estive no Paraíso. Estás contente?

— Enfim, queira Deus que trouxesses de lá boas maçãs... de ouro! Chama-se a isso viagem de instrução e recreio!

— E tu como vais? Deixaste os teus amores verdes?

— Já mudaram de cor, minha santa. Pergunta à Comaitá. Ainda ontem escolhi-lhe uma toilette pérola a que se pode cha­mar verdadeiramente pur sang!

— Bom. E depois?

— Participo-te que tens uma gaivota a depenar.

— Sim? Quem é?

— Olha para ali, ao pé da J.; aquele sujeito de pince-nez escu...

Fichtre je m'en moque bien!

— É feio?

— Horriblement!

— Não gostas?

— Deus me livre!

— Não queres que eu to apresente?

— Nunca!

— E se eu te dissesse...

— O quê?

— Estende o teu leque para meu lado que eu não quero que ninguém me ouça: assim. Pois sabe que aquele esquisitão pretende queimar a teus pés o incenso de alguns contos de réis. Chama-se...

— Oh, traz, traz! Que me importa o nome? Assim como assim, ele vale tanto como os outros.

O moço bexigoso, de cabelos encaracolados e ruivos, foi apresentado à preciosa elegante com todos os ff e rr.

Empenhou-se entre eles no terceiro ato da opereta o seguinte diálogo:

Ela: (abanando-se faceiramente com o leque.) É. filho mesmo do Rio?

Ele: – Sim, minha senhora!

Ela: – Tem família?

Ele: – Pai apenas; minha mãe morreu quando eu era criança!

Ela: – (sustentando o movimento do leque e suspirando duas vezes): Oh! eu também perdi minha mãe aos doze anos! Amor de mãe! sentimento que nunca se encontra mais na terra! Paraíso perdido! Felicidade desterrada para sempre! (limpando uma lágri­ma). Desculpe! há dores que não se podem ocultar!

Ele (consigo): – Que coração de mulher!

Ela (consigo): – Toma, meu pedaço de asno! (alto) Má idéia teve em querer conhecer-me, meu amigo!

Ele (erguendo o diapasão veementemente). – Oh! eu amo-a!

UMA COCOTTE: – Sapristi! il ne veut pas se taire, ce monsieur!

ALGUMAS VOZES: – Psiu!

Ela. – Conte com uma criada e uma amiga que lhe poderá dar bons conselhos; tenho idade para isso. Olhe, eu moro na rua da...

Ele (logo). – Se me dá a honra de aceitar o meu braço depois do Alcazar...

Ela. – Enfim! como recusar-lhe nada? (Olhar IN CRES­CENDO)

ELE (IN ALEGRO). – Oh! a senhora é um anjo!

B. a C. – Que dois pombinhos!

C. a B. – Aquilo é que vai ser uma mina! O sujeitinho sai seco como um caju espremido!

Termina o espetáculo. Erguem-se todos; as capas cobrem osombros, e mais de cem braços estendem-se humildemente às deusas da noite.

O LEÃO (ao moço de pince-nez escuro): — Então? vamos? Dá o braço a ela. Olha: posso levar dois amigos completos? isto é, com as suas competentes metades?

O MOÇO DE PINCE-NEZ ESCURO: – Pois não; quem quiseres! Nunca fui tão feliz como hoje!

O LEÃO – Ao Provenceaux, meus senhores! (à elegante com um olhar significativo): Ao Provenceaux!

A diva de quarenta anos era nada mais e nada menos do que Joaninha Sacramento, por alcunha – a Caxuxa. O rapaz de cabelo encaracolado e pince-nez escuro Bernardino Sistema Temporal Agulha.

Bem dizia Anastácio Agulha que a natureza se desenvolvia por si própria!

 

XXVI
RECONHECIMENTO TARDIO

Durante a quadra decorrida desde o enterro da nunca assaz chorada Eufrásia Sistema, até os episódios narrados fielmente no capítulo passado, houve entre os personagens desta monumental história mosquitos por corda e moscas por arame.

A Sra. Leonarda mudou-se para Jacarepaguá, onde vive hoje criando pintos e leitões. Os trabalhos da nova vida não puderam ainda arrancar-lhe a mania das charadas. De vez em quando ela envia à sua amiga, devota dos Barbadinhos, dentro de um bilhete hermeticamente fechado, umas três ou quatro composições origi­nais, que apesar da péssima ortografia, só deviam orgulhosamente figurar na estante de algum curioso do gênero.

A devota dos Barbadinhos continuava e continua na mesma; vai à igreja do Castelo e fala mal da vida alheia. Quem não conse­gue dar-lhe uma palavra é Anastácio Agulha, a cuja vista a beata dobra esquinas e desaparece como um coelho assustado.

D. Januária, a doceira, perdeu uma crioulinha atacada pelos sarampos e para contrabalançar o deficit que a morte da pequena lhe abriu em casa, elevou o preço do bolo inglês, e começou a fazer balas menores do que as do costume. Negócio de cento por centon.

D. Quininha Ciciosa morreu de gastroenterite; pelo menos é o que se depreende do obituário.

A viúva Arrozal foi vítima de um terrível acidente. Indo visitar uma amiga, moradora em S. Domingos, a falua que a con­duzia virou de boca para baixo e a inconsolável senhora entregou o corpo aos tubarões e a alma à eternidade.

É de crer que o major a recebesse com o maior carinho e meiguice.

A mocinha do Arvoredo tu já viste casou-se com um padeiro apaixonado por modinhas, e tem hoje cinco filhos, dois machos e três fêmeas. A mais moça chama-se Inacinha, e é feia como uma Inácia.

A Sra. Quitéria do Amor Divino ainda é parteira, velha e gorda.

O jogador de gamão Passos incendiou o seu estabeleci­mento de calçado por conveniência; mas o poder competente meteu-o na casa de detenção e foi considerada a sua desgraça: — quebra fraudulenta, por todos os tribunais.

Clementino, o violonista do filho doente, morreu em uma eleição na freguesia de S. José. Pleiteava a favor do governo e já tinha dado algumas dúzias de cacetadas em vários votantes livres, quando um deles lembrou-se de o matar e o fez com sucesso.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo sempre foi sujeitinho que teve fôlego de gato. Freqüenta mais do que sempre a casa dos Agulhas e havemos de encontrá-lo constantemente no decurso desta história.

O escrivão Lopes também está nas mesmas condições lisonjeiras.

Resta-nos agora o tipo mais importante de todos! O grande, o excêntrico, o burlesco, o extraordinário, o incomensurável Anastácio Temporal Agulha!

Com a morte de Eufrásia Sistema os freqüentadores da casa retiraram-se pouco a pouco. Quando Anastácio Agulha apareceu no arsenal alguns dias depois, coberto de luto e meio triste, um dos empregados, a quem mais se afeiçoara aquele gênio admi­rável, compadeceu-se da figura lacrimosa do pobre homem.

— Tenha confiança em Deus, Sr. Agulha. Tudo o que a Provi­dência faz é pelo melhor. Pense agora em seu filho.

— Estou bem arranjado, volveu Anastácio, fazendo uma careta. Meu filho! Se quando ela era viva não me foi possível dar educação ao pequeno, quanto mais agora!

— Ora essa!

— O senhor tem filhos? Já teve filhos o senhor?

— Treze.

— Salta!

— Treze, Sr. Agulha. Morreram oito, ficaram-me seis.

— Oito e seis treze, disse Anastácio Agulha meditando. Há de ser isso; ficaram-lhe seis pouco mais ou menos.

— Como, pouco mais ou menos?

— Isto é um modo de falar! não se importe.

— Destes seis, quatro são rapazes, e tenho-os educado como pobre, mas enfim vão indo, vão indo.

— Em que colégio andaram?

— Aprenderam no Mafra, no Nunes, e dois estão hoje no Pedro II.

— No hospício?!

— Quê! No colégio de Pedro W. Um tem tirado primeiro prêmio sempre. Olhe: meu filho Laurindo, o mais velho, sabe muito, e se o senhor quiser...

— Fale!

— O seu menino poderá ser lecionado por ele!

— Terceiras letras!

— Ah! disso não entendo, meu amigo. Ouço falar em primeiras letras e não sei mais o quê. Agora se há terceiras ou quartas...

— Posso-lhe afiançar que há!

— Nesse caso!

— Oh! obrigado, obrigado, exclamou Anastácio Agulha expan­sivamente. Onde poderei falar com o seu filho?

— Em nossa casa sempre. Ele abriu lá uma espécie de escola e vai fazendo seus ganhos menos mal, graças ao céu!

— Pois hoje mesmo ficará tratado tudo, Pereira!

— Perdão: Sousa.

Anastácio Agulha mordeu os lábios um pouco zangado e nada disse. Era a maior prova de reconhecimento que ele podia dar na ocasião, não recalcitrando sobre o nome do outro.

Bernardino Agulha entrou, pois, para a escola familiar, e lá bebeu os primeiros rudimentos.

Anastácio Agulha mudou de casa e comprou um moleque para ser pajem do menino. Era quem acompanhava Bernardino à escola todos os dias.

No dia da partida do morro do Castelo para a nova habi­tação à Rua de S. José, D. Januária veio despedir-se, fazendo-se preceder por uma imponente compoteira de doce de pêssego.

Anastácio Agulha estava jantado. À chegada da vizinha ergueu-se de ímpeto, indo-lhe ao encontro, de talher empunhado. A doceira deu dois passos para a retaguarda, um pouco atemori­zada. Anastácio Agulha admirado parou, olhando para ela.

— Veja o que está nas suas mãos, vizinho.

— Ah! disse Anastácio, reparando no talher. E, sorrindo, acrescentou:

— Teve medo que eu ...?

— Não, mas é que há gente não entre muitas vezes que o faz, e...

— Sente-se, vizinha, sente-se!

— Então, vai deixar-nos, hein? começou D. Januária, apoi­ando o volumoso corpo em uma cadeira, que nunca mais cessou de ranger.

— É verdade. Mudamo-nos hoje.

— Tem razão: esta casa havia de fazer-lhe muitas saudades.

Que tal está o doce? São damascos de Minas. Comprei-os a três vinténs cada um.

— Já sabe onde é a nova casa?

— Ouvi dizer, Rua do Parto.

— Logo ao sair da Rua de S. José, lado direito, ou esquerdo. Apareça por lá, vizinha.

— Não me hei de esquecer, não Sr. Agulha. O menino vai bem na escola, não?

— Sofrivelmente. Tem cabeça o pequeno! Quem diria!

— É verdade, às vezes donde não se espera nada, é que sai tudo. Não vá engolir o caroço do pêssego, vizinho. Tenha cautela!

— Já lhe contaram o caso do pé?

— Caso do pé?

— Sim, aquele pé de mármore que eu mandei fazer no marmorista para a sepultura de Eufrásia.

— Ah! sim. Que aconteceu?

— Aconteceu que até foram bulir com um amigo meu do arsenal, para eu não fazer semelhante cousa.

— E que tinha isso, minha gente! Ora não viram já que esquisitice, senhor! Pois uns não mandam botar cruzes, outros anjinhos chorando, outros uma coruja, outros um... Que mal fazia um pé! Credo! este mundo é língua só!

— De forma, prosseguiu Anastácio Agulha, que eu comprei uma redoma com peanha de jacarandá e pus o pé dentro. A se­nhora se for à Rua do Parto, há de vê-la em cima da mesa. Pobre Eufrasinha!

— Ora, está melhor do que nós, Sr. Agulha. Tomara a mim morrer e ir para o céu também!

Anastácio Agulha comovido escapou de engasgar-se com um caroço de pêssego.

Realizou-se a mudança e a família continuou a revirar-se nos seus eixos quotidianos. Bernardino Agulha ia sempre à escola e o pai ao arsenal.

Permita-me a leitora que eu não acompanhe passo a passo a vida dessa gente até o completo desenvolvimento físico e moral de Bernardino Sistema Temporal Agulha. Além de um ou outro fato de pouca importância em que se manifestava como sempre o caráter tempestuoso de Anastácio, só um acontecimento impor­tante é digno de ser lembrado pela minha imparcialíssima pena. No dia em que nasceram os primeiros dentes de Bernardino Agulha, isto é, quando o mancebo completou dezoito anos de idade, houve grande bródio em casa da família.

Compareceram algumas das conhecidas antigas, o escrivão Lopes e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

Nesse tempo já Bernardino mostrava o que era e o que havia de ser. Além da escola familiar, cursou vários colégios, donde saía três dias depois da entrada, e o de Pedro II, donde foi expulso por indomesticável.

Anastácio Agulha, a cada nova façanha do filho, repetia pro­fundamente:

— Como a natureza vai se desenvolvendo depressa e por si mesma!

O juízo de Bernardino Agulha desaparecia com a veloci­dade de uma locomotiva a todo o vapor; em compensação cres­ciam-lhe os dentes e um cacho especial na nuca, base de seus maiores juramentos.

Perguntar-me-á o leitor lógico de que maneira se arranjava o moço para gastar com Alcazar, ceias, falar em contos de réis, etc. Sou obrigado a confessar que Anastácio Agulha recebeu novo prêmio de loteria, e que os verdadeiros desperdícios de Bernar­dino datam apenas do seu encontro com Joaninha Sacramento, por antonomásia a Caxuxa.

É inverossímil a história? Não é inverossímil? O que posso garantir à literatura pátria é que tudo o que eu vou contando aconteceu tintim por tintim.

Deixando para mais tarde melhores explicações, acompa­nhemos Bernardino Agulha, Joaninha Sacramento, e os leões fluminenses ao hotel dos Frères Provenceaux.

Bernardino Agulha não cabia em si de contente pela famosa conquista. Joaninha Sacramento, por sua parte, fazia o que podia, entre gestos e momos expressivos, ateando a nascente chama no coração do pobre rapaz.

O programa da ceia foi escolhido por ela. Enquanto subiam ao ar as rolhas do Champagne, Bernardino Agulha suspirando contemplava a quarentona diva.

— Um brinde, meus senhores! bradou Joaninha Sacramento, empunhando o copo.

— Venha ele! gritaram todos.

— À saúde do moço elegante e chic, verdadeiro fashionable cujo braço aceitei meramente por um sentimento amoroso, e que de hoje em diante será considerado por todas as minhas amigas como o fruto proibido. É meu só! Só! terminou ela cravando em Bernardino um olhar cheio de faíscas.

— À saúde de Bernardino! exclamou o leão — batendo na mesa. Bebe, Augusta! Então Didino! que fazes, meu beija-flor?

Bernardino Agulha quis corresponder ao brinde, e não achou uma frase que servisse. Todo trêmulo e palpitante, passou a mão por baixo da toalha e apertou de mansinho dois dedos da Caxuxa.

— Eu te adoro! balbuciou ele, curvando-se para ela. E esvaziou seguidamente seis copos de Champagne.

Quando terminou a ceia e os convivas se retiraram, Bernardino Agulha ia provando a todo o mundo a verdade do sis­tema de Newton: o processo da gravitação!

Se Joaninha não o agarra a tempo, lá se iam dois dentes cria­dos com tanto trabalho e em tantos anos de gloriosa expectativa.

No dia seguinte, Bernardino Agulha compunha-se para reti­rar-se da casa da diva.

Ela bocejando ainda sorriu-lhe, e:

— É verdade, disse, ainda não sei o teu nome. Como é?


— Bernardino.

— Ora! O nome todo é o que eu quero saber.

— Bernardino Sistema Temporal Agulha.

— Hein? exclamou ela, erguendo meio corpo e arregalando os olhos. Dize outra vez.

— Bernardino Sistema Temporal Agulha.

— Desgraçado!! exclamou Joaninha Sacramento, escondendo a cabeça. Eu escapei de ser tua madrinha!

Bernardino Agulha deu um pinote e meteu os braços pelas alças pensando que vestia o paletó.

 

XXVII

O NEGÓCIO COMPLICA-SE

Entremos em casa de Anastácio Agulha, se o leitor está como eu sem ter que fazer. São três horas da tarde e como não há ninguém na sala de visitas, é justo que procuremos quem nos receba ao menos na sala de jantar.

Justamente! Eis-nos com eles! A mesa preparada e já com as competentes iguarias, convenientemente cobertas, prova a olhos vistos que a família janta habitualmente às 3 horas da tarde, hora dos empregados públicos e da burguesia fluminense.

Sentados um defronte do outro, Anastácio Agulha e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo contemplam-se, suspiram e manifestam violentos sintomas de profunda comoção.

— A culpa é tua! disse Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, tomando de novo parte em um diálogo, já começado há tempo.

— A culpa é minha, a culpa é minha! E por que é que a culpa é minha, Felisberto?

— Pois então! Deixaste sempre o rapaz às soltas; não lhe aper­taste o freio nem lhe fizeste a menor censura. Agora agüenta!

— Agüenta o quê, Felisberto?

— Pior! A gente se entende ou não se entende. Vamo-nos entender, queres?

— Está dito!

— Onde estão os títulos do teu dinheiro depositado no tesouro?

— Aqui há engano! O dinheiro não era meu; estava no nome de Didino. Jurei a Eufrasinha antes de morrer que havia de pôr tudo no nome do filho!

— Mas então?

— Espera, Felisberto! Estás hoje desesperado deveras, oh! Se eu pegasse em dois contos de réis, por exemplo, e depositasse em um banco qualquer em teu nome...

Os olhos do homenzinho faiscaram.

— Em teu nome, concluiu Anastácio Agulha, de quem era o dinheiro?

— Era meu, oh! era meu!

— Eis aí; desembrulhada a meada do negócio. Os recibos trazem o nome de Bernardino Sistema Temporal Agulha. Logo, o dinheiro é de Didino.

— Vá que seja. Por que é então que te queixas?

— De que é que eu me queixo? Dele estar dando cabo dos cobres todos!

Anastácio Agulha abotoou sentimentalmente o colete e depois de curta meditação:

— Que pensa você de Didino, Felisberto?

— Nem bem, nem mal!

— Já não estou gostando nada dos teus despropósitos.

— Como hei de falar então, homem?

— Que pensa você de Didino, Felisberto?

— E você, Anastácio?

— Eu penso que a natureza dele tem-se desenvolvido muito depressa.

— Deste-lhe dinheiro hoje?

— Uma letrinha para descontar no Banco Inglês.

— E gastar depois, hein?

— Eu sei, Felisberto. Um pai não se deve meter nessas tra­vessuras de meninos!

— Sabes onde tem estado o teu filho há três noites seguidas?

— Travessuras, travessuras!

— Dize! exclamou Anastácio Agulha piscando eletricamente os olhos.

— Naquele mundéu da Rua da Vala.

— E que há nesse mundéu?

— Que há, desgraçado? Há mulheres pintadas, de ombros nus e pernas à mostra! concluiu Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, corando até a raiz dos cabelos.

— O Alcazar, hein?

— O Alcazar, sim! lugar em que muito velho tem quebrado a cachola, quanto mais um maluco como teu filho!

— Maluco! bradou Anastácio Agulha, erguendo-se imediata­mente. Dobra a língua, Felisberto!

— Posso lá suportar tanta extravagância, homem! E tu que me havias prometido entrar de sociedade comigo naquele negócio.

— O menino não há de gastar tudo, Felisberto!

— Há de gastar, empenhar-se e hipotecar a tua cabeça se for preciso! Que bonita educação! E já o deixas fumar à tua vista, hein?

— Isso lá é da natureza de cada um. Desde que a natureza dele está se desenvolvendo...

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo agarrou nervosamente no braço de Anastácio Agulha:

— E as firmas falsificadas, desgraçado? exclamou ele.

— Que dizes?! uivou Anastácio Agulha, trêmulo e cravando os olhos na boca do homúnculo.

O outro, vendo ferido o alvo, prosseguiu erguendo e abai­xando a voz à medida que falava:

— Vou te contar uma história. O filho do Silva, aquele ricaço de que deves ter ouvido falar, como teu filho, esbanjou a fortuna do pai, tostão a tostão, meteu-se em Alcazar, passeou de carro com a Aiméez, ceou 69 vezes no hotel Capelle em Botafogo!

— O filho do Cunha? Noventa e nove vezes?!

— Que Cunha e que noventa e nove vezes, homem de Deus! O filho do Silva, do Silva, do Silva!

— É mais fácil eu dizer Cunha, e hei de dizê-lo, com trinta lagartos! Dize você Silva; que me importa com que o que você diz, é boa!

— Escuta. Ceou, passeou, gastou, pintou o padreo, e no fim de contas...

— Acaba!

— No fim de contas foi parar à correção como falsificador de firmas!

— Então achas que Didino?...

— Ainda é tempo, olha, meu Anastaciozinho, acudiu Felis­berto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, adoçando a voz, ainda é tempo. Separa uns cinco contos e dá-mos para a sociedade.

— É preciso primeiro falar com Didino!

— E se ele for parar à...

— Se me começas com agouro, estás mal! Empenha-te com o menino e tudo se arranjará.

O homenzinho cismou dois minutos; um relâmpago de cobiçosa vitória iluminou-lhe os olhinhos travessos.

— Bom. Se ele disser que sim...

— Se ele disser que sim, podes levar de casa até o último chinelo. Verás.

— Quando pretendes jantar?

— Quando Didino vier.

— E se ele ficar para jantar no ...?

Bateram à porta. Era Bernardino Agulha. O rapaz vinha pálido, triste e com os cabelos desalinhados. O célebre cacho da nuca estava hirto e áspero como uma vassoura.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo estendeu-lhe as mãos graciosamente. Anastácio abraçou-o com uma furiosa expansão paternal.

— Vamos jantar!

— Não quero; não tenho vontade de jantar! volveu Bernar­dino Agulha, lançando o chapéu a seis passos de distância.

— Que tens tu? perguntou-lhe Anastácio Agulha afetuosa­mente.

— Eu quero falar-lhe, papai, disse Bernardino, sem responder à pergunta. Vamos para dentro.

— Não. Fala aqui mesmo adiante de Felisberto. Felisberto é bom. Felisberto escapou de ser tua madrinha!

A face de Bernardino Agulha tornou-se mais pálida à palavra — madrinha.

— Quem escapou de ser minha madrinha é que eu amo! gritou Bernardino Agulha, escondendo o rosto nas mãos.

— Hein? Amas? Tu amas Felisberto!?

— Quê?! uivou o homenzinho, dando um salto para trás. Bernardino Agulha compôs-se o melhor que pôde e dirigin­do-se a Anastácio com um aprumo admirável.

— Papai, o Sr. conhece D. Joaninha Sacramento?

— A Caxuxa! gritou Felisberto Canudo de Oliveira Concei­ção Albuquerque e Melo.

Caxuxa! ecoou Anastácio Agulha.

— Deixemo-nos de insultar uma pobre e virtuosa mulher, que caiu no abismo porque foi empurrada! disse Bernardino Agulha, com uma fúnebre filosofia.

— Mas que há então?

— Há que eu estou apaixonado por...

— Basta! basta! basta! bramiu Anastácio Agulha rangendo os dentes. Onde é que mora esse diabo? Vou lá já. Ah! não se con­tentou com o empurrão que lhe dei pelas escadas abaixo, na Rua da Misericórdia? Cachorra! Hei de mostrar-lhe que, apesar de velho, ainda posso esbandalhar cinco Caxuxas com quatro pontapés!

Bernardino Agulha, sem dizer uma palavra, apanhou o chapéu e dirigiu-se para a porta.

— Didino! Onde é que vais?

— Vou atirar-me do último andar do Pharoux embaixo!

— Pharoux! Último andar? Embaixo? Atirar-te? bradou Anastácio Agulha, perdendo a cabeça.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo interveio no desastrado diálogo.

— Sr. Bernardino, começou ele.

Bernardino Agulha com os olhos injetados de lágrimas ten­tou novos passos para a porta.

— Já que meu pai, volveu ele, é o primeiro a machucar meu coração, vou dar cabo de mim!

— Mas não dês cabo de ti! que queres que eu faça com a tua Caxuxa?

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo apoderou-se de um dos braços de Bernardino, e Anastácio Agulha de outro. Ambos falaram-lhe ao ouvido quase ao mesmo tempo:

— A Caxuxa é um abismo, Sr. Bernardino!

— Didino, a Caxuxa é uma sirigaita!

— É um monstro!

— É uma mulher do outro mundo!

— É uma desesperada!

— É o diabo!

— É uma fúria!

— É!...

— É!...

Ambos estacaram, porque Bernardino Agulha com os ouvi­dos fulminados exclamara:

— Deixem-me! empurrando-os com um vigor furibundo. E olhando para Anastácio:

— Se o senhor não me salvar, amanhã eu não serei mais que um defunto.

— Um defunto, Felisberto! Defunto, meu filho! Oh! que família infeliz, Deus do céu! A mãe morre por causa da valsa e o filho quer morrer por causa da Caxuxa!

— Vê o que ele deseja, Anastácio. Talvez se arranje, murmu­rou Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, que não queria perder no juízo de Didino.

— Desejo, meu pai, acudiu Bernardino Agulha, ouvindo as palavras proferidas em surdina, desejo que o senhor vá ter com ela.

— Hein?!

— Vá ter com ela e faça que eu não seja um desgraçado!

Anastácio Agulha, chamejante e trêmulo, puxou o filho pela mão até a mesa, onde sob uma redoma estava depositado o pé de mármore, n. 47, Suzer, e:

— Por este pé de tua mãe, não! quero dizer por esta memória sagrada, Didino, peço-te que não faças mal à honra de tua família! Queres dinheiro? queres viajar? queres pintar o diabo? pinta... Mas a honra! a honra da família!

— O Sr. gosta dessa mulher? perguntou Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— Horrorosamente!

— Mas é uma mulher de dinheiro, e...

— Gasta tudo, meu filho, gasta tudo o que é teu!

— Mas ela me despreza! vociferou Bernardino Agulha, pu­xando o cacho com um movimento pavoroso.

— Despreza-te!

— Despreza-o!

— Por um fazendeiro velho, gordo e carregado de filhos!

— Oh!

— Esse fazendeiro é seu amante hoje, tem duzentas cabeças de gado, duas fazendas e cento e vinte contos de fortuna!

— Duzentas cabeças de gado! gritou Anastácio Agulha cain­do nos braços de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albu­querque e Melo!

— Cento e vinte contos de réis! murmurou o homenzinho, estalando com a língua e chupando os beiços saborosamente.

Bernardino Agulha olhava para os dois de boca aberta.

Que eloqüente quadro para o museu nacional!

 

XXVIII

DE QUE É CAPAZ UM CORAÇÃO DE PAI

Joaninha Sacramento, por antonomásia "a Caxuxa", foi e ainda é hoje uma das mais perigosas mulheres do Rio de Janeiro. Como eu estou pouco disposto a fazer largas e patéticas obser­vações acerca de um mundo onde é raro aquele que não deixa perdida uma ilusão e derramada uma lágrima, convido apenas ao leitor curioso a introduzir-se na luxuosa câmara dessa fulgurante filha de Eva, que, à semelhança da célebre cortesã parisiense, parece possuir o segredo da eterna mocidade. Qual o pintor que traça com mais capricho umas sobrancelhas a nanquim ou ruboriza uns lábios com mais encanto e natureza?

Joaninha Sacramento, quatro dias depois do encontro com Bernardino Agulha, recebia pela segunda vez, nos seus perfuma­dos domínios, um homem de porte severo e estatura respeitável, velho fazendeiro, pai de muitos filhos e dono de muitos cafezais. O nome desse homem? Que sei eu? Antônio, Pedro, Manuel ou Ambrósio de tal. O nome não vem ao caso; há um qualificativo inventado pelos freqüentadores do Alcazar, mas ante cujo termo minha pena recua espavorida.

O quarto de dormir ou o boudoir (frase alcazarina!) da ele­gante Sra. Sacramento foi inspirado por um capítulo de Arsène Houssaye. A luz penetra pálida e macia através da musselina cor de rosa arregaçada entre flores de filigrana, enchendo o ambiente de misteriosas ondulações. O tapete ensurdece os passos; o aroma de voluptuosas essências está empregado em todos os móveis; algumas estatuetas pelos consolos de pau-cetim, sobre o papel de veludo rubro de parede, um quadro representando Frinéia adiante dos juízes deslumbrados. Mil nadas, mil enfeites, mil futilidades galantes ornam as paredes e desafiam a atenção dos que ousam penetrar na câmara fatal.

Joaninha Sacramento está sentada no divã de veludo carme­sim, vestida de branco, fronte reclinada sobre a mão direita, nessa postura que é um encanto na simplicidade, e que com a afetação se torna sessenta e duas vezes ridícula. Os cabelos caem-lhe sobre os ombros velados pela cambraia, e os seus olhos, languidamente cerrados, deixam fugir um raio úmido e voluptuoso.

O relógio marca duas horas da tarde. Em uma cadeira defronte dela nota-se a figura respeitabilíssima do velho fazen­deiro, que aspira com todas as forças de um pulmão mineiro os perfumes venenosos daquelas paragens.

— Então, diz o senhor que eu...

— Que a senhora é ingrata demais para mim!

Joaninha Sacramento ergueu desdenhosamente os ombros.

— Ingrata!

— Sim, ingrata! continuou o respeitável homem, com duas ou três olhadelas expressivas. Eu que a amo tanto!

— Mas não aceitei o seu braço para o Alcazar, ontem?

— Ora!

— Não estou pronta a ir ao Andaraí hoje para a ceia do seu amigo?

— Oh! mais! eu queria mais ainda!

— E então?

— Por que não deixa todo o mundo por mim?

— Deixo.

— Deixa?

— Com a condição do senhor deixar por mim toda a sua família também.

O velho engoliu uma resposta fora de tempo, e dando quatro ou cinco movimentos ao corpo suculento:

— Quer sair do Rio de Janeiro? perguntou ele, cravando-lhe os olhos fumegantes.

A Caxuxa bocejou e disse:

— Quero.

Oh! pudor! O circunspecto homem caiu de joelhos aos pés da elegante, e beijando-lhe as mãos e as orlas do vestido:

— Pois está dito, Joaninha! Joaninha, vamos fugir do meio desses pelintras todos que não te sabem tratar como mereces! Eu te amo! Eu te!...

— Dá-me carro?

— Dois, três; boleeiro, lacaio... o que quiseres!

A Caxuxa passou os dedos entre os grisalhos cabelos de papai Romeu, e:

— Tu me compras aquela parelha de cavalos árabes da Dama de Ouros?

Os olhos do fazendeiro acariciado por tão aveludada mão, revolveram-se nas órbitas, rubros e secos como os de quem vai ter um ataque. Aquilo era decerto a apoplexia do amor!

— Compro sim! balbuciou ele, estrangulado pela comoção irresistível!

Joaninha Sacramento pendeu a cabeça, de forma que o per­fume de seus cabelos soltos e do ondulante vestido atacava de mais perto o olfato do nosso amigo.

— Pagas a continha da Notre-Dame?

Ele fez um sinal com a cabeça apenas.

— Compras-me aquela pulseira de brilhantes pretos no Farani?

— Tudo!

Nunca Júpiter tremeu com tanta paixão no colo de Leda! Nunca Romeu galgou tão palpitante a escada misteriosa do jar­dim de Capuleto! Nunca o termômetro do amor subiu tão alto e com tanta velocidade! O honrado homem tinha os lábios frios, os olhos ardentes como uma fornalha, a face pálida, os cabelos quase eriçados de entusiasmo, o corpo trêmulo, as narinas in­chadas como as velas de um patacho ao vento fresco!

Joaninha Sacramento susteve um momento a tormenta de exigências a que expusera a vítima, e descansando-lhe no ombro a mão alva e contornada:

— É certo que tu me amas?

— Oh!

— Farias por mim tudo o que eu te pedisse? E se eu amasse alguém?

O sujeito, de um salto, pôs-se em pé como movido por uma mola elétrica.

— Tolinho! prosseguiu ela, fazendo um gesto provocador.

— Quem é ele? Diga pelo amor de Deus!

— Ninguém, minha vida! Estou caçoando. Quis conhecer se realmente me querias!

— Ah!

— Escuta uma cousa, benzinho.

Ele aproximou-se com a meiguice de um King-Charles.

— Onde está teu moleque?

— No hotel Ravot.

— Era para...

— Para que?

Ela hesitando, fingiu-se corada (!) e:

— Para mandar à modista.

— Vou eu mesmo, sim? Deixa-me ir eu mesmo.

— Mas ficar longe de ti!

O sujeito exalou uma baforada de orgulho.

— Volto em um instante, meu anjo!

— Eu sou teu anjo, sou?

— Meu anjo, minha deusa, minha senhora!

— Mau! murmurou ela, puxando-lhe ternamente a barba do lado esquerdo. Queres me enlouquecer, hein?

— Deixa. Eu vou à modista e volto já. É alguma encomenda tua para trazer?

— Não vás, não. Gente pobre não carece luxo e eu já tenho sido tão pedinchona para ti!

— Isso é que é crueldade, Joaninha! Pede-me a vida que eu...

— É para pagares a minha conta do mês passado.

— Bom!

— Olha, dirás à francesa que comece o vestido de cetim verde.

— Bom!

— E que mande buscar a conta dos corais para tu pagares juntamente com a dela.

— Até logo.

— Ouve cá, meu santo! Passa logo pela Rua do Ouvidor e manda o cabeleireiro, sim?

— Hei de trazê-lo comigo.

— Pois traze.

— Para ver esses cabelos desenrolados todos à minha vista! A Caxuxa abaixou os olhos e murmurou confusa:

— Cala-te!

O nosso amigo tomou o chapéu, um honesto chapéu de homem sério, e dirigiu-se à porta.

— Vem cá, tornou ela. Então assim é que se sai sem me dar um aperto de mão ao menos?

Pobre-diabo! Era o que querias! Era o que querias, pobre-diabo!

O respeitável lavrador correu para ela de boca engatilhada.

— Espera! acudiu Joaninha Sacramento, detendo-lhe o gesto. Se tu me visses um chapéu na Notre-Dame...

— Pois sim, meu anjo!

— E paga logo a conta de que falei ainda agora, ouviste?

— É a minha felicidade, vida!

— Vai muito direitinho e.. .Ah! deixa cá ver o teu relógio.

— Aqui está. Duas e vinte minutos.

— E vinte e um, mau! O senhor só tem meia hora para fazer tudo. Veja lá! Se demorar-se mais em vir matar-me as saudades, fico mal deveras!

Que sorriso de satisfação e ventura derramou-se pelo rosto do nosso bom amigo!

— Meia hora; menos, menos, eu vou em um pulo e volto em outro!

Nesse momento uma criada veio à porta da alcova e bateu secretamente.

— És tu, Felismina?

— Aqui está uma carta para esse senhor. Foi aquele homem de ontem que trouxe!

— Ah! deve ser o André. Toma a carta, Joaninha.

A Caxuxa recebeu a carta, uma volumosa carta, das mãos da criada e entregou-a ao fazendeiro.

O pobre homem abriu-a, tentou lê-la, e... (oh! namorados de vista cansada, ouvi!) tirou um par de óculos enormes acondi­cionando-os sobre o rubicundo nariz.

Joaninha Sacramento contemplava-o com esse cintilante olhar da serpente, que espreita a vítima indefesa.

A uns sinais de tristeza manifestados pelo velho homem, ela perguntou, fechando os sobrolhos:

— De quem é esta carta?

— Uma é de minha mulher, e outra de minhas filhas!

— Dá-me a de tua mulher, anda. Vamos apreciar a fazendeira!

— Oh! Joaninha!

— Ah! Faz-se de bom comigo, meu caro? Perde o seu tempo! Não precisa voltar cá, ouviu? Eu só amo quem me ama! Et voilà!

— Toma a carta, Joaninha.

A Caxuxa leu as primeiras linhas em voz alta:

"A nossa Josefina tem estado bem doente, coitadinha! Ontem ardeu toda a noite com febre!" Quem é Josefina?

— Minha menina mais moça.

— Clara ou morena?

— Clara.

— Há de ser bonita! Se saiu a ti!

"Não te demores muito lá, pelo amor de Deus! Estou com medo que ela morra antes de tu vires" Ah! Ah! Ah!

— Joaninha! estás rindo de uma cousa tão triste!

A Caxuxa continuou:

"Anda uma saudade por cá, que tu não fazes idéia. Só se fala em ti dia e noite." Que constância! Xi!...

— Meu bem!

— Tira os óculos, sim? Tira esses óculos de juiz de paz! Pareces o macaco do realejo!

O circunspecto homem guardou confuso os óculos no bolso.

— Toma a carta de tua cara metade. Passa-me a outra!

— Oh!

— Então? então?

O fazendeiro entregou a carta das meninas.

"Papai do meu coração". Magnífico! soberbo! Trá lá, lá, lá lá lá lá!

— Meu anjo!

"... do meu coração. Estou que nem posso lhe escrever. A febre não me deixa, e mamãe leva a chorar todo o dia com as outras, que é de partir o coração!" Bonito! Voici le sabrre! le sa brrr...

— Não faças assim, Joaninha.

— Quem é esta? Ah! Josefina! Aqui tem mais uma porção de garatujas. Pegue as suas cartas.

— Obrigado! Bem mostras que tens coração!

— E o senhor faça o favor de ir já, já para Minas!

— Quê!...

— Não o quero mais!

— Joaninha!

— Pois então! Um homem que fica tão sentido lendo menti­ras destas!

— Mentiras!

— Mentiras, sim! A tal Josefina está tão doente como a minha criada! Quantos vestidos lhe encomendou ela?

— Oh! meu bem!

— Não sou seu bem, nem me importa a sua vida, sabe?! Adeus; passe muito bem, e até o dia do juízo!

O nosso amigo, trêmulo, estendeu-lhe as mãos suplicantes.

— Mas eu morro se te deixar, Joaninha!

— Qual! fingidão que o senhor é!

— O senhor! Trata-me por tu, anda! eu te peço de joelhos.

— Vai-te embora e estimo que sejas muito feliz no seio de tua amável família! Olha, dá lembranças à Josefina, e aconselha-lhe que use do pronto alívio. É um remédio soberbo!

— Minha vida! Escuta-me!

Um raio de indignação rompeu dos olhos da diva:

— Queres que eu acredite no teu amor?

— Que devo fazer?

— Rasgar já e já essas cartas choronas e pisá-las aos pés à minha vista!

— Oh!

— Ah! não queres?! Boa noite! Tenho que fazer! Vou a Botafogo!

O honesto pai de família lutava com um turbilhão de senti­mentos diversos. Pálido e boquiaberto, seguia o gesto da Caxuxa, em pé, diante dele. O suor banhava-lhe a testa, e um tremor convulsivo agitava-lhe o corpo.

A Caxuxa, pronta sempre a triturar a vítima, mudou de táti­ca. Fitando amorosamente o fazendeiro, abriu-lhe de longe os braços alvos e:

— Rasga! prove-me o teu amor! É o ciúme que me faz pedir isso! Vem! querido de minha alma! Eu te adoro.

O fazendeiro, alucinado, subjugado, eletrizado, rasgou ner­vosamente as cartas, uma por uma machucou-as nas mãos e pisou-as sobre o tapete.

A Caxuxa triunfava.

— Minha senhora! gritou a criada, abrindo de súbito a porta da alcova.

— Que é lá?

Um braço ríspido afastou a criada e Anastácio Agulha entrou como o pampeiro pela porta adentro.

A Caxuxa conheceu-o logo e recuou assustada.

O fazendeiro não sabia o que pensar daquela inconcebível aparição.

Atrás de Anastácio Agulha apareceu um grupo composto por Bernardino, o escrivão Lopes e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

— É aquele o homem das novecentas cabeças? uivou Anastácio Agulha, apontando para o fazendeiro com o cabo da bengala.

O honrado lavrador deixou-se cair sobre a cadeira. Bernardino Agulha fazia sinais a Joaninha Sacramento, o escrivão Lopes acastelou-se por trás da criada e Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo olhava de prevenção para o corredor.

 

XXIX

DOIS CHEFES DA FAMÍLIA

Joaninha Sacramento deu prova de enorme coragem, diri­gindo-se desembaraçadamente a Anastácio Agulha:

— Que quer o senhor?

— Ah! a senhora me conhece ainda? perguntou Anastácio, dando dois passos para a frente.

Bernardino Agulha acompanhou-o para prevenir alguma tormenta.

— É o Sr. Anastácio Agulha, volveu a Caxuxa com um movi­mento de ombros desdenhoso.

— É o Anastácio Agulha mesmo! replicou ele, mostrando os dentes. Faça-me o favor de pôr para fora aquele velho, que eu lhe quero dizer duas palavrinhas.

O fazendeiro olhou pasmo para a diva. Joaninha Sacra­mento desprendeu uma gargalhada cristalina e emperolada.

— Ria, ria, antes rir que chorar, minha cara!

— Previno ao Sr. Agulha de que estou em minha casa! acudiu Joaninha Sacramento, ferindo a frase.

— Isso sei eu! Casa comprada pelo Campos. Conheço muito.

— Que diz?

— Deixemo-nos de palavrórios, senhora dona aquela! Venho falar-lhe de negócios sérios e estou com pressa!

A Caxuxa desprendeu nova gargalhada, arqueando o corpo em ondulações de cobra.

Bernardino Agulha aproximou-se a Joaninha Sacramento. Ela afas­tou-se do pequeno Didino com um soberbo ar de rainha ofendida.

O escrivão Lopes disse a Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo:

— O melhor é darmos às de vila-diogo.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo disse ao escrivão Lopes:

— Nada; ele é capaz de esmurrar-nos as ventas amanhã.

O honesto fazendeiro via o negócio malparado, e com razão. Anastácio Agulha, sempre de chapéu na cabeça e fazendo dançar a bengala entre os dedos, fitava a Caxuxa com uma insolência monumental!

A criada Felismina não tirava os olhos da patroa. Havia um policial do seu conhecimento que ao menor aceno seria capaz de trancafiar Anastácio Agulha no xadrez.

— Ainda não tive o prazer de saber o que deseja de mim o Sr. Agulha, começou Joaninha Sacramento, sentando-se no divan com um desplante digno da classe.

— Já lhe disse, com todos os diabos!

Trop aimable! volveu ela, mordendo o lábio.

— Não sei o que a senhora está resmungando aí. Eu só enten­do a minha língua!

— Papai! murmurou Bernardino apertando o braço paterno. E dirigindo-se a Joaninha Sacramento:

— Papai quer falar-lhe, continuou ele, com uma profunda humildade.

— Falar-me?

— Não sabe o que é falar, não? prosseguiu Anastácio Agulha, impaciente. Pois para bom entendedor, meia palavra basta. Bote para fora aquele velho patusco e...

— Velho patusco! exclamou o fazendeiro erguendo-se sobres­saltado. O senhor insulta-me!

— Deixe-se disso, compadre! atalhou Anastácio Agulha, arregalando os olhos. Quem é que pode insultar uma pessoa como você?

— Você, senhor!

— Só o que sinto é ser pai neste momento!

Joaninha Sacramento prestou atenção.

— Enfim, um pai é um pai, e por Didino eu vou ao inferno sem olhar para trás!

— Escuta uma cousa, Anastácio, disse Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, caminhando vagarosa­mente para Anastácio Agulha.

— Não escuto nada, nem quero saber de nada. Sais ou não sais daqui, velho malandro?

— Senhor!

— Sais ou não sais daqui, pedaço de ladrão?

— Quê!

— Sais ou não sais, grandessíssimo patife?!

— A senhora vê que me ofendem e nada faz! articulou o fazendeiro quase a chorar.

A Caxuxa levantou-se do divan com suprema majestade e:

— Sr. Agulha, começou ela pausadamente; ouvi-o até agora sem dizer uma palavra.

— Pois diga duas que é tempo!

— Estou em minha casa e não posso por forma alguma ver insultar uma visita minha!

— Ora, ora.

— Ainda não me esqueci daquela bela recepção da Rua da Misericórdia...

— Etc., etc.

— Hoje porém não me sinto com iguais disposições. Rogo-lhe, portanto, que não me force a fazê-lo sair de uma maneira pouco agradável.

— Pela janela? Ah! Ah! Ah!

— Entre dois soldados. Dá quase na mesma.

— Entre dois...? A frase ficou atravessada nas faces de Anastácio Agulha.

Rubro, inquieto, nervoso, palpitante, ele voltou-se em cheio para o honesto lavrador e exalando algumas interjeições decisivas:

— Agradece a Deus estares em casa de uma mulher, desgraçado!

— Meu pai! articulou Bernardino Agulha trêmulo.

Mas Anastácio prosseguiu desabotoando o colete, em sinal de irresistível emoção:

— Se não fosse isso, eu já te mostrava, velhusco, para que serve o braço de um homem de bem!

O fazendeiro aventurou um passo em retirada.

— Não tenha receio, disse Joaninha Sacramento; o senhor está em minha casa!

Anastácio Agulha continuou perseguindo o honrado mineiro com olhares faiscantes:

— Triste cousa! Um velho deixar compadres, filhos, netos, sobrinhos, sobrinhas, mulher e sogro, para atirar-se nos braços de uma...!

— Sr. Agulha! bradou a Caxuxa seriamente ofendida, veja que eu nem sempre poderei suportá-lo!

— Pois não suporte, que o trabalho é seu! Acha a senhora bonito que um patifão desta natureza...

O fazendeiro fez um movimento de desespero na cadeira em que estava sentado.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo disse ao escrivão Lopes:

— O melhor é darmos às de Vila Diogo.

O escrivão Lopes disse a Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo:

— Nada; ele é capaz de esmurrar-nos as ventas amanhã.

Joaninha Sacramento era uma mulher vaidosa na extensão da palavra. Que escândalo, meu Deus! que escândalo para ela se à noite no Alcazar contassem o fato de ter entrado a polícia em sua casa para expulsar um maluco, que viera ofender-lhe o amante!

Seria duplamente vergonhoso nos anais da alta sociedade equívoca. A Caxuxa tomou o partido de rir do episódio:

— Afinal de contas, que quer o senhor? insistiu ela olhando fixamente para Anastácio Agulha.

— Falar-lhe em particular, no ouvido um do outro!

Ela, sorrindo amavelmente ao velho fazendeiro, acrescentou:

— Tenha paciência. Vá um pouco até a sala de visitas em companhia daqueles senhores. Peço-lho eu.

O homem, meio trôpego, abandonou a cadeira onde aco­modava os membros aterrorizados e encaminhou-se para a porta. Anastácio Agulha abrindo os braços diante dele:

— Ainda uma vez! exclamou retumbantemente. Se tu não estivesses em casa de uma mulher!

— Deixe-me passar, senhor!

— Eu te mostraria no lombo a figura que estás fazendo, fazendeiro de meia-tigela! Que um rapaz se desgrace, morra, pinte o padre por uma sujeita qualquer, vá! é rapaz! a natureza está se desenvolvendo! mas um velhacão como este!

— Deixe-me passar! bradou o outro irritado, e abrindo pas­sagem com um empurrão expressivo.

A criada conduziu os três para a sala de visitas, rica e esplên­dida como a alcova. Bernardino Agulha fingiu que os acompa­nhava, mas ficou atrás da porta com o ouvido à escuta.

A Caxuxa mostrou o divan a Anastácio, convidando-o a sentar-se.

— Obrigado! o que tenho a dizer, digo mesmo de pé!

— Fale, senhor!

Joaninha Sacramento reclinou o corpo majestoso em uma poltrona à la renaissance, e entre a seriedade e o sorriso irônico esperou as palavras de Anastácio Agulha.

Na sala de visitas Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, apertando familiarmente a mão do velho honrado:

— Não se importe; aquele sujeito é doido varrido!

O fazendeiro espumava de raiva.

— Então é mandá-lo para a polícia!

O escrivão Lopes interveio no diálogo:

— Ele não é propriamente doido, é exagerado apenas. Daqui a pouco dá-lhe um abraço e um beijo, verá!

— Engana-se, senhor! Cuidam que eu sou de brincadeiras, enganam-se! Hei de participar tudo ao chefe de polícia! Bernardino Agulha escutava o seguinte:

— Diga outra vez, Sr. Agulha! Parece-me que eu não ouvi bem!

— Peço que a senhora queira bem, mas muito bem a Didino!

— A seu filho? Por que não?

— Ah! mas um bem... um bem... Está me entendendo?

Joaninha Sacramento entregava-se com a maior curiosidade à cena mais original que presenciara em sua vida.

Anastácio Agulha mudou completamente de aspecto e de linguagem; com o chapéu na mão e a cabeça baixa, ele unia à pos­tura humilde, uma frase delicada e escolhida.

— Se a senhora, em vez de aceitar as visitas desse velho macaco, recebesse somente...

— Seu filho?!

A Caxuxa abriu desmesuradamente os olhos; custava-lhe a crer em tudo aquilo!

— Sim... olhe, Didino não é muito rico, mas enfim, ainda há uns cobres e... Se a senhora soubesse como ele anda! Quer atirar-se do Pharoux! quer afogar-se! degolar-se! Oh! não o deixe mor­rer, por tudo quanto há de santo no mundo!

Uma lágrima borbulhou entre as pálpebras de Anastácio Agulha. A Caxuxa continha forçadamente o riso. Parecia-lhe incrível o que ouvia; a mim e ao leitor também!

Finalmente, ou por piedade, ou por desfazer-se do impor­tuno, Joaninha Sacramento estendeu a mão a Anastácio e disse em um sorriso generoso:

— Vá descansado. Didino será feliz!

— Oh!

Anastácio Agulha apertou à inglesa a mão da elegante protetora da família, e correndo pelo corredor até a sala foi gritando:

— Vamos a ver se ficas ainda aqui, canalha de uma figa!

Bernardino Agulha penetrou na alcova e abriu os braços à sua ex-madrinha.

A Caxuxa olhou-o, estorcendo-se em gargalhadas ruidosas.

— Pois é o pai mesmo quem me vem pedir para ... ? Ah! Ah! Ah! Ah!

— Joaninha! exclamou Bernardino Agulha, palpitante e confuso:

— Ah! Ah! Ah! Ah!

A Caxuxa debruçou-se sobre a espalda da cadeira, estrangu­lada pelo frenesi das gargalhadas crescentes:

— Joaninha! meu bem! olha!

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

 

XXX

O PRIMEIRO DEGRAU DO CRIME

Cinco dias depois, as amigas de Joaninha Sacramento rece­beram um cartão de visitas com o seguinte nome litografado a capricho: Joana Y. Sacramento, e uma linha manuscrita por baixo do nome: CEIA NO HOTEL DE BOTAFOGO; AINDA QUE CHOVA!

O hotel Rocambole apresentava nessa noite um aspecto digno das épocas da regência francesa. No fim da ladeira ou no princípio (ad libitum), junto à porta principal, estavam já às 9 horas da noite enfileirados cinco carros descobertos. À entrada do hotel estacionava um estafermo estrangeiro que não dava ingresso a ninguém sem o toque competente e a senha. O toque era a mão aberta sobre o ombro esquerdo do estafermo; a senha era: “Perus e almanacks!...”, sem o que nenhum profano podia introduzir-se no misterioso edifício. O anfitrião alugara toda a casa, comprara todas as iguarias, proibindo a presença de quem não fosse antecedentemente convidado em regra. Convém notar que a pessoa a quem a Caxuxa entregara a direção do programa era o célebre leão daquela noite do Alcazar, um dos primeiros petits-crevés do Rio de Janeiro.

E já que falamos no mau, duas palavras ligeiras acerca dele. Era um rapaz de vinte e oito anos, magro, delgado, elegante, e que sempre usou espartilho. Os seus melhores títulos resu­miam-se nisto: — ganhava em uma casa inglesa cento e vinte mil réis por mês, gastava quatrocentos e... não tocava no ordenado. Espante-se o leitor à vontade: há cousas mais admiráveis no nosso mundozinho crepuscular.

Novos títulos do leão:

Vestia-se no Raunier; possuía dois cavalos de raça: PIRILAMPO E CINCO MINUTOS; usava bigode frisado, botins Melliès, fumava Londres e freqüentava os teatros todos, em camarote aristocrático.

Chamava-se... Zezé. Era esse o seu nomezinho, o seu apeli­do, a sua alcunha familiar. É pena não ser dos mais poéticos para figurar em um dos baixos-relevos do templo de Vênus!

Joaninha Sacramento encarregara ao leão do programa da festa e ao fazendeiro... do pagamento. Duas subidas honras, a que poucos tinham jus nesse tempo.

O fazendeiro! pois o fazendeiro não foi despedido? É possível?

Não, meus senhores, não foi despedido o nosso amigo, não! Quando Anastácio Agulha a muito custo retirou-se da casa de Joaninha Sacramento, depois de fulminar o honrado lavrador com três dúzias de epítetos salgados, Bernardino Agulha cuidou que ia ficar senhor do campo e ver o inimigo derrotado fugir de cabeça baixa.

A Caxuxa desfazia-se em gargalhadas, exclamando entre os gorjeios:

— Ah! não há nada mais engraçado!... O pai vir para... Ah! Ah! Ah!

— Joaninha! repetiu Bernardino Agulha, estendendo-lhe os bra­ços, suplicante e apaixonado.

— Não posso mais... Ah! Ah! Ah!

Apontou à porta o severo nariz do circunspecto fazendeiro. Bernardino Agulha começou a tremer como se uma arroba de gelo lhe houvesse caído sobre as costas.

Devem-se lembrar os leitores de que o tremor era uma das condições vitais do filho de Eufrásia Sistema.

Desta vez, porém, foi a cólera, o despeito, o rancor, que se lhe apoderaram do corpo oscilante. A Caxuxa, com os olhos lacrimejantes de tanto rir, à vista do velho amante, revestiu-se de uma gravidade cômica e dirigindo-se a Bernardino Agulha:

— Vai fazer-me o favor de pôr-se ao fresco, meu filhinho, sim?

Bernardino torceu o cacho entre os dedos frios.

— Sim, Didino? continuou Joaninha Sacramento, batendo-lhe no ombro com uma familiaridade maternal.

— Mas.., que disse a papai? aventurou o pobre do rapaz, empalidecendo.

— Seu paizinho é um maluco de primeira qualidade, meu caro! Com malucos não se discute! Preferi dar-lhe esperanças... Ah! Ah! Ah! Ah!

O honesto fazendeiro entrou de todo na alcova e repoltreou-se no divan.

Bernardino Agulha dardejou-lhe um olhar sinistro e ficou vermelho como a bandeira americana!

A Caxuxa, voltando-se de novo para ele:

— Olhe, eu tenho bom coração, meu afilhado! Não quero que se atire do Pharoux por minha causa!

— Oh!? A esperança bafejou festivamente a alma do povero innamorato. O rapaz virou-se com certa proa para o seu velho rival.

— Sabe o que tem a fazer?

— Diga!

— Em primeiro lugar, ir embora até eu dizer-lhe no Alcazar que apareça.

Bernardino Agulha abaixou a cabeça humildemente.

— A menos... continuou ela, contemplando sorrateiramente o velho amoroso.

— A menos?

— Que o meu Didino queira pagar as minhas contas todas hoje e dar-nos uma ceia em Botafogo!

— Sim! oh! sim! sim! bradou Bernardino Agulha, entusiasmado.

O fazendeiro pediu a palavra.

— Não admito, disse ele, a senhora tratou outra cousa comigo.

— Alors vous êtes bien riche! volveu Joaninha Sacramento, recordando uma frase do Alcazar.

Bernardino Agulha teve a leviandade de perguntar a quanto montariam as despesas:

— Pouco! uns pobres contos de réis.

— Dois?... indagou o rapaz, trêmulo e ansioso.

— Eu dou seis já! vociferou o velho erguendo-se majestosamente.

— Hein? Isto é leilão? perguntou a Caxuxa, com um sorriso asqueroso.

— Não sei se é leilão ou o que é! Você prometeu-me acom­panhar-me e há de acompanhar-me! replicou o fazendeiro, pos­suindo-se de uma energia rara.

— Bem vês, meu filhinho, disse Joaninha Sacramento ao desiludido Bernardino. Contra a força não há resistência. Venha cá, não se zangue. Em primeiro lugar, não deixe seu pai pôr mais os pés aqui... Ah! Ah! Ah! quando me lembro!

— Nem eu mesmo porei mais os pés aqui! Juro pelo meu...!

— Vais te tratar! acudiu ela, sorrindo abertamente.

— Não sei; Deus é quem sabe!

Joaninha Sacramento lembrou-se de ter ouvido falar em dois contos de réis, e chamando de parte Bernardino Agulha:

— Deixe-me com este velho tonto, que eu daqui a alguns dias...

— Alguns!

— Dois, pois bem, dois dias só, não me esquecerei de ti! Mas até lá juízo, hein? muito juizinho. Veja se o doido de seu pai ainda vem aborrecer-me... Ah! Ah! Ah! Ah! não me sai da lembrança!

Bernardino Agulha, com essa louvável meiguice do namorado crédulo, saiu depois de ouvir em repetição a promessa da tentadora.

Quando os passos se sumiram no último degrau da escada, a Caxuxa entregou-se novamente a uma clamorosa hilaridade.

— E dizem que nós é que somos as más! Se eles mesmos vêm trazer... Ah! Ah! Ah! Ah!

— Tu eras capaz de aceitar a corte desse peralvilho? pergun­tou o velho, fazendo um trejeito de reumático.

— Por que não?

— Ora viva!

— Pensa você que a sua bolsa chega para mim dois meses?

— Oh! oh!

— Está bem. Quem me avisa meu amigo é. Vá tratar agora do que lhe pedi e breve convidarei meus amigos para uma ceia em Botafogo.

— Dás uma ceia em... ?

— Eu dou a ceia, mas tu... pagas.

— Ah! decerto! decerto! volveu ele, tentando sorrir.

— Saia para ver as cousas, ande. Pague tudo e mande-me o cabeleireiro. Vou passear à tarde, hoje.

— Oh! não me dás nem um aperto de mão, má?

— Logo, logo. Adeus. Felismina!

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Hábil diplomata, a Caxuxa soube afastar, sem acordar sus­peitas, o seu velhusco amante de casa no dia marcado para a entrevista de Bernardino Agulha. Anastácio entregara sem pes­tanejar ao filho os últimos recursos da casa; além disso, um bom usurário mediante o pequeno juro de oitenta por cento adiantou mais algumas centenas de mil réis a Bernardino Agulha. Lá foi ele, portanto, lépido e orgulhoso, entregar-se em holocausto no altar da Sacramento. Dizer-lhes que foram bastante duas contas pagas às francesas para exaurir a bolsa do pobre-diabo, é afiançar o que há de mais crível no globo! Bernardino Agulha tornou-se sorum­bático, e debalde o pai indagava dos motivos daquela tristeza:

— Se é ainda por causa da tal sujeita, eu lá vou outra vez e então...

— Sossegue, papai, já nem me lembro disso!

O honradíssimo lavrador soube de duas visitas de Bernar­dino e quis queimar-se com a Caxuxa.

Ela, porém, receosa de perder tão ilustre banqueiro, preve­niu à criada para toda a vez que Bernardino Agulha lá fosse, negar-lhe ingresso.

No dia da célebre ceia em Botafogo, Bernardino Agulha, mais saudoso que sempre, travou-se de diálogo com Felismina nos primeiros degraus da escada, em casa de Joaninha Sacramento:

— A senhora não pode falar com ninguém.

— O velho está aí?

— Não sei, não senhor.

— Felismina.

— Se eu não sei, oh! Com licença, vou lá em cima!

— Pega para ti, anda, compra um vestido.

— Deus lhe pague, e eu que precisava tanto!

— Dize-me, ainda o sujeito está?

— Oh! esse parece que não sai mais daqui!

— Todas as noites?

— E todos os dias. Ontem o amigo dele veio cá para buscá-lo, e quase que foram às ventas um do outro!

— Patife! E hoje?

A criadinha ia deixando escapar a novidade da ceia; mas contendo-se:

— Hoje há de ser o mesmo.

— Tua ama gosta daquele mono?

— Se gosta! Minh'ama diz que o dinheiro não tem cara feia, nem é velho nem moço!

A loureira Felismina riu-se garridamente pronunciando essas palavras.

— Eles ainda não passearam à noite?

— Hoje é que...

— Hoje... dize...

A criada com todo o aprumo desviou a frase.

— Hoje seria o primeiro dia se fossem! Mas qual! Aquele homem é ciumento como uma cascavel. Não sai nem deixa minh'ama sair um minuto. Mas também gasta, gasta, gasta que é um nunca acabar!

A voz de Joaninha Sacramento chamou:

— Felismina!

— Com licença, minh'ama está me chamando. Veja lá agora o senhor se vai contar o que eu lhe disse.

— Mais uma coisinha só!

— Que é? volveu a criada já nos últimos degraus.

— A que horas se deita essa gente

— Conforme. Dez, onze, meia-noite. Não tem hora certa.

— Bom. Adeus.

Um lúgubre lampejo passou pelos olhos de Bernardino Agulha.

Quando entrou em casa, levava cuidadosamente um embrulho no bolso. Anastácio quis dar-lhe prosa, mas Bernardino, fechando por dentro a porta do quarto:

— Estou muito incomodado, papai. Vou descansar um pouco.

Anastácio Agulha sentou-se tristemente em uma velha cadeira dos tempos felizes, e limpando uma lágrima com a manga da camisa:

— Pobre bode expiatório! murmurou surdamente.

 

XXXI

O PUNCH VIOLETA

— Viva Joaninha! Joaninha, tu és a pérola cies cocottes fluminenses!

— Hip! hip! hurrah!

— Parte o gargalo dessa garrafa!

— Nada! Deixem saltar a rolha!

— Garçon! Cognac, kirch e kummel! Mexe-te daí, ruivo mancebo!

— Um brinde a Zezé!

— Não correspondes, Leontina?

— Leontina há de corresponder!

— Façam as pazes! Isso é feio, minha gente.

— A Cândida prometeu-nos imitar os quadros simbólicos da Lucíola!

— Já, não! Às três horas e três quartos da madrugada!

— Apoiado! Com a fresca!

— Não queremos tristezas, minhas senhoras. Olhem a Dama de Ouros! Parece que vai chorar!

— Quem é que se suicida por aqui? Encarrego-me do necrológio!

— Champagne frappé, frappé, frappé! Garçon! Entorna-te nestes copos até o pescoço!

— Hip! hip! hurrah!

A ceia no hotel de Botafogo tocava ao auge do delírio. Eram doze os convivas, homens e mulheres.

Garanto, a quem me ler, a veracidade do episódio que ocupa este capítulo. Dentre as raparigas da festa havia uma, hoje morta, e arrebatada às opulentas misérias do mundo equívoco por um fatal suicídio. Era uma fisionomia triste, insinuante e doentia.

Davam-lhe o apelido de Dama de Ouros por ter ela ganho ao lansquenet sobre essa carta perto de dois contos de réis, em quatro doublés consecutivos. O episódio correu mundo e por unânime acordo o título de Dama de Ouros acompanhou a pobre rapariga.

As outras eram Joaninha Sacramento, uma tal Leontina, mu­lher de pouco espírito e de nenhuma educação, a brincalhona Cân­dida, que tem bebido mais líquido alcoólico em sua vida do que o que seria preciso para um novo dilúvio universal, a aristocrática J., elegante e pretensiosa, uma V., uma T. e finalmente a signora Rosaura, italiana, que passava por filha da Circássia, apesar de protestar contra esta nacionalidade um constante prato de macar­roni e rabioli, que a esperava em todos os jantares e ceias possíveis.

Às dez horas da noite sentaram-se à mesa, depois de fechadas a porta e as janelas da frente. Esqueci-me de fazer a resenha ou o elenco dos rapazes. Aí vai ainda em tempo:

1° O velho fazendeiro, amante de Joaninha Sacramento, notável por um par de luvas verde-claro, uma gravata de foulard encarnada, bengalinha de junco, calças de casimira alva e aperta­díssimas, cabelo frisado, uma enorme rosa na casa do paletó azul, e perfume de todas as qualidades em um só lenço!

2° 0 arisco e faceiro Zezé, sempre vivo, espirituoso, fútil, opulento! Caso extraordinário! não trouxe espartilho para a ceia.

3° Pontes, negociante falido e desdentado, companheiro da pouco interessante Leontina.

4° Narciso R, empregado público, um tanto inteligente, um tanto circunspecto e um tanto arruinado.

5° Horácio ou Horacinho, como lhe chamavam, criatura simpática e louca.

6° Um ourives francês, Desiré, célebre por sua surpreen­dente memória para a música: sabia de cor da primeira nota à última a Belle Helène, Mariage aux lanternes, Barbe Bleu e trin­ta e sete canções par dessus le marché!

— Meus senhores! exclamou Joaninha Sacramento, quando lhes apresentei o Sr.** não lhes disse que é ele um dos mais ricos fazendeiros de Minas!

— Oh?

As mulheres viraram-se armadas de pince-nez para o nosso velho amigo. O homem, confuso, cortejava por todos os lados, como um boneco de gonzo.

— Proponho, portanto, continuou a Caxuxa, que come­cemos à americana esta ceia, bebendo champagne frappé à saúde do nosso...

— Bravo! Ao nosso anfitrião. Eh! lá, garçon! Atira esta rolha à eternidade!

— Zezé fica incumbido do discurso. Fala, Zezé!

— Boa idéia! boa idéia!

— Fogo, garçon! Outra! Abre mais três por junto. A maior prova de estima que podemos dar ao nosso amigo é ficarmos já um pouco... embaraçados!

Zezé começou, em pé, e com o copo empunhado sobera­namente.

— "Meus senhores! Em todas as nações civilizadas, a fran­queza e a generosidade mereceram cultos e altares, desde a antiga Roma até... Botafogo. Petronius Caius, o procônsul Sixto Mário, o célebre Sardanapale, Alexandre da Macedônia e outros, passaram à posteridade, não por suas leis ou por suas batalhas, mas pela generosidade e franqueza, desenvolvidas nos seus jantares e ceias. Petronius Caius colocou uma das primeiras pedras do Capitólio, Petronius Caius escreveu um livro a favor das hetairas romanas, Petronius Caius descobriu a origem da mitologia pagã. Nada disso, porém, elevou-o tanto como a ceia que ele e sua amante Artabalda deram a sessenta mulheres e sessenta homens na grande cidade dos Césares.

— Bravo, Zezé! Bebe e entusiasma-te!

O velho fazendeiro prestava toda a atenção ao discurso. O silêncio estendeu-se em redor do orador.

Zezé continuou:

— "A ceia continha iguarias suficientes para alimentar metade da Europa durante um século!

— Safa!

— "A ceia, meus senhores, durou sete dias e sete noites e Petronius Caius gastou, sorrindo, nada menos do que um milhão de talentos, isto é, na nossa moeda, seis mil e oitocentos contos de réis!

— Sapristi!

— Viva Petronius Caius! gritaram as mulheres, erguendo os braços alvos, elevando os copos espumantes.

— Cala a boca, J. Oh! Cândida! Não vês que o brinde é ali ao senhor? No fim, no fim, espera!

— Silêncio!

Zezé prosseguiu:

— "O procônsul Sixto Mário só tinha um prazer neste mundo: dar de cear aos seus contemporâneos!...

— Que boa alma!

— "Consta que ele fazia tanto caso do dinheiro que, um dia, para satisfazer os desejos da amante de um dos seus amigos, comprou uma latinha de sardinhas de Nantes por noventa e oito contos de réis!...

— Xi! faziam as mulheres.

O velho fazendeiro suava por todos os poros.

O orador acrescentou:

— "Sardanapalo, meus senhores? Sardanapalo que despendia por hora dez contos e quinhentos de salários a pescadores e caçadores cujas aves e peixes ornavam as suas admiráveis ceias! Sardanapalo que chegou a vender a última jóia de sua coroa para com o produto dela encher de trufas mil oitocentos e sessenta e nove papos de perus!

— Nossa Senhora!

— "Pois bem! Agora é que é o ponto culminante da minha alocução!

— Silêncio! Oh! Leontina, está você a partir nozes como uma menina de colégio! Não faças barulho, homem!

— "Pois bem, meus senhores, maior que Petronius Caius, maior que o procônsul Sixto Mário, que Alexandre da Macedônia, cujas proezas estomacais não contarei para não roubar-vos tempo; maior que o liberalíssimo Sardanapalo, sabeis quem é?...

Todos os olhos voltaram-se para o fazendeiro.

— "É ele sim! é este amigo admirável! este coração imenso como o Amazonas, esta alma mais elevada que o morro da Tijuca!

— Apoiado! Bravíssimo!

— "O dinheiro antigamente, meus senhores, não tinha o valor que a economia política hoje lhe confere. O que era naquele tempo seis ou sete contos é hoje um cartão das barcas de Niterói e S. Domingos!

— Fichtre!

— Portanto, se este nosso grande amigo gastar conosco dez ou doze contos...

O velho deu um saltinho na cadeira.

— "...dez ou doze contos, faz mais, muito mais que Petronius Caius, o procônsul Sixto Mário, Alexandre de Macedônia e Sardanapalo em toda a sua vida! Se aqueles mereceram cultos, este merece adorações; se os antigos foram dignos de um monu­mento, é justo que o nome deste excelso herói fique gravado em letras de bronze no coração da pátria! Viva o nosso anfitrião!

— Viva!

— "Viva o nosso anfitrião!

— Viva!

— Viva o nosso anfitrião!"

— Viva!

As vozes femininas caíram em linha cerrada sobre o fazendeiro:

— À sua saúde, Sr.**!

— Muito obrigado!

— À sua saúde!

— Muito obrigado!

Horacinho pôs-se em pé e gritou de copo alçado:

— À saúde de Zezé, o rei dos bestialógicos!

Uma gargalhada geral acompanhou o brinde.

O nosso velho amigo boquiaberto dirigiu-se à vizinha da direita.

— Pois aquilo não foi um insulto? Bestialógico!

— Qual, meu caro! Zezé não se ofende por tão pouco.

— Queres um bocadinho de foie gras, Leontina?

— Bota um pouquinho sempre.

— E tu, Cândida? Irra! já esvaziaste a garrafa de Xerez toda, hein? Desiré começou a cantar em surdinas o primeiro ato do Barbe Bleu.

— Oh! Desiré! guarda o concerto para amanhã, meu velho! O elegante Zezé bateu palmas.

— Atenção!

— Não me deste plenos poderes para tudo hoje, Joaninha?

— Decerto! És o programa vivo!

— Pois bem, antes de dar começo ao punch violeta...

— Que diabo é punch violeta? perguntou o negociante falido.

— É uma nova produção do meu engenho, caríssimo amigo. Mas, como dizia, antes de começar o punch violeta, a cuja luz vária e cambiante jurar-nos-emos amor eterno.., até amanhã, pro­ponho uma cousa!

— Fala!

— A mitologia é a fonte dos prazeres mundanos...

— Temos novo discurso? Mau!

— ...dos prazeres mundanos. Ora, é justo que cada um de nós tome para si, à escolha, um nome de deus mitológico. É original, e deixamos assim correr um véu misterioso sobre os nossos verda­deiros nomes!

— Vá lá, acudiu Joaninha Sacramento. Eu serei Vênus!

— Vênus de Milo que é a mais velha! murmurou Narciso R. ao ouvido do Pontes.

— E eu? perguntou Leontina.

— Tu? Serás Ceres! Está no teu gênero!

— E eu?

— E eu?

— Cândida pode ser uma das Danaides!

— Ah! ah! ah!

— Que vem a ser Danaide?

— Vem a ser uma rapariga que enche um pote eternamente vazio! Cândida amuada despedaçou contra a parede um prato de morangos.

— A Dama de Ouros será Juno!

— J., que é mais empertigada de todas, ficará sendo Minerva.

— V. está boa para Ariadne!

— E T? T é uma soberba Leda!

— Que queres ser Rosaura, além de circassiana?

— Rosaura? Qual é o feminino de Briaréu? É o que ela é!

— Não seja tolo!

— Merci, ma chère! Pois fica sendo Aurora, então!

— Agora nós, meus senhores. Ali o senhor...

O fazendeiro, de quem se tratava, arregalou o olho.

— O Sr. poderá ser Vulcano!

— Ora! ora!

— Que é que fazia Vulcano? perguntou o velho enfiado a Narciso R.

— Fazia raios! Era o deus do poder e além de tudo casado com Vênus

— Joaninha!

O velho sorriu apertando amoroso a mão de Joaninha Sacramento.

— Eu, exclamou Zezé, serei Marte!

— E eu, disse Narciso R., Saturno: com uma diferença, em vez de devorar meus filhos, devoro meu pai!

Gargalhadas, estrondo de rolhas e tinir de copos.

— Dêem-me um nome! exclamou Pontes.

— Você, meu caro, está ótimo para Mercúrio.

— Ah! Ah! Ah! Ah!

— Hein! Que é lá! Protesto!

— Então serás Adônis!

Nova hilaridade.

— Moi, acrescentou Desiré, je serai Apollon.

— Antes fosses o Pégaso! murmurou Horacinho. Estava mais no caso.

— Agora, meus amigos, vou dar princípio ao célebre punch violeta. Garçon! Passa para cá aquela nossa vasilha, sabes?... (o caixeiro traz uma enorme urna.) Bem. Vai despejando um copo dos seguintes néctares: cognac, bom. Rum, curaçau, kummel, kirch, vinho Bordeaux, mais, mais, despeja toda a garrafa; bem, Marrasquino, genebra, cachaça...

— Oh!

— Cachaça, é bastante. Champagne, Reno, Moscatel, Chablis, Xerez, Madeira, Porto, Lisboa, laranjinha.

— Ainda, Zezé? Santo Cristo!

O elegante Zezé imperturbável continuou, enquanto o cria­do despejava os licores:

Punch inglês; sufit! Sanctorum benedictorum, mais um pouco; assim. Cerveja preta, meia garrafa; chartreuse, rosa, bitter, lacrima-christi Alicanti, Málaga, Sauterne, pimenta-do-reino...

— Quê!

— Dá-me fósforos. Deixa-me tirar as cabeças para...

— Estás maluco, gritaram todos.

— É o punch violeta, meus caros, minha última invenção.

Depois de atiradas ao fundo da urna as cabeças de fósforo, o elegante incendiou os licores, e mandou apagar as luzes da sala. Através da chama todos tomaram o aspecto de cadáveres. O fazendeiro já bastante alcoolizado, ao calor do fogo, caiu dor­mindo em cima da mesa. Zezé chegou-se a Joaninha Sacramento, e apertando-lhe significativamente a mão:

— Sabes por que eu quis ser Marte, Vênus?

Vênus respondeu-lhe com um olhar de múmia amorosa.

 

XXXII
UM CRIME NÃO PREVISTO NO CÓDIGO

Na hora em que as labaredas do punch violeta despediam a luz fosforescente e sinistra daquele dilúvio de licores, quando as vozes dos convivas no hotel Rocambole mais atroavam os ares e os roncos de baixo profundo do fazendeiro adormecido serviam para tema das risadas das mulheres e dos rapazes, Bernardino Agulha abriu sorrateiramente a porta do quarto e espalhou o olhar inquieto em redor de si.

Anastácio Agulha adormecera lendo os anúncios do jornal do Commercio. Esse extraordinário homem tinha uma mania acima de todas as outras, e era a de amar extremosamente o filho. Para ele, Bernardino pertencia ao número das criaturas sagradas, vindas à terra predestinadamente.

Já era moléstia aquela ternura paternal! Se Bernardino exigisse a cabeça de Anastácio Agulha para qualquer cousa, o bom do homem far-se-ia degolar sem mais preâmbulo. Todas as extravagâncias e loucuras do rapaz eram satisfeitas sem a menor censura ou a mais leve observação. Diante do filho, Anastácio Agulha tornara-se humilde e cabisbaixo, ele que seria capaz de bater-se a pau com a guarda nacional em peso.

Nesse dia Bernardino entrou em casa sombrio e mudo como o convidado de pedra. Anastácio Agulha quis trocar com ele algumas palavras e teve em resposta uma frase que fecha gloriosa­mente o capítulo antepassado desta maravilhosa história.

Anastácio Agulha sentou-se no sofá e começou a cismar sobre o filho profundamente. Que terá Didino? Será falta de dinheiro? Dinheiro não há; mas rouba-se se for preciso. Roubar! não! Não há de ser preciso tanto!

Que terá Didino, Deus do Céu? Alguma paixão? A Caxuxa!

Anastácio Agulha estacou em meio do raciocínio.

— Maldita mulher! disse ele, interiormente e com uma cólera indomesticável. Se me fosse possível matá-la sem que ninguém desse pela cousa...

Levantou-se pé ante pé e colocou o ouvido ansioso à fecha­dura do quarto de Bernardino Agulha. Ouviu um ruído cadenciado como o das folhas de um livro voltadas durante rápida leitura. Espiou: um lenço ou uma toalha interceptava a vista do interior da alcova.

Anastácio Agulha novamente voltou ao sofá e abrindo o jornal começou a ler a gazetilha, decidido a ir até os anúncios dos espetáculos, contanto que não adormecesse. Pobre pai! Pobre-diabo! Pobre Agulha! O amor ao filho era o castigo que a Provi­dência lhe enviava!

— Ele está um rapaz, meditava Anastácio Agulha, suspenden­do a leitura; e que rapaz sacudido! Tem feito das suas, mas quem não as faz mais ou menos quando é criança? É o retrato da mãe cuspido e escarrado. Foi posto para fora de vários colégios, mas não por estúpido, graças a Deus! O pequeno tem cabeça; isso não se pode negar! A tal Caxuxa, maldita Caxuxa, é que veio...

Anastácio Agulha dirigiu-se mais uma vez de pé nu até a porta do quarto, espiou e prestou com mais atenção o ouvido. Nada! Nem mesmo o ruído de há pouco! Estaria dormindo Bernardino?

— Didino! Didino! oh Didino!

Não lhe responderam. O pobre do homem foi tomar o seu posto no sofá e atacou de novo a gazetilha do Jornal.

Nova meditação deteve-lhe a leitura.

— É verdade que outro dia ele falou em dar cabo da vida por causa da... Morrer! Didino morrer! Não! eu sou um maluco em pensar estas cousas! Mas que estará fazendo ele a estas horas? Dormindo? Não me responde quando falo e...

Quando Anastácio Agulha espiou pela última vez o interior da alcova estava tudo às escuras. A luz havia sido apagada.

Um reflexo de prazer percorreu a alma do desconfiado pai.

— Bom! já se deitou. Nada de barulhos. Coitado de Didino.

Durante meia hora Anastácio Agulha lutou com o sono. O jornal caía-lhe das mãos, ele despertava; lia de novo e ainda uma vez os dedos entreabertos pela letargia deixavam escapar a folha.

Os sinos marcaram uma hora da madrugada; Bernardino Agulha abriu a porta da alcova e espalhou em redor de si olhares inquietos. Didino estava pálido e com a fronte úmida de suor: dos seus olhos assustados fugiam lampejos sinistros e mortuários.

Quando abriu a porta do quarto vinha pronto para sair. Tentou dois passos até o sofá e debruçou-se um pouco para exa­minar se realmente o pai dormia. Anastácio Agulha sonhava nesse momento com o filho, e um tremor convulsivo encrespava-lhe as faces e os lábios no sono.

Bernardino Agulha retrocedeu; tirou a chave da porta inte­rior do quarto, fechou-o, e meteu-a no bolso. A vela, a cuja luz lera Anastácio, estava quase a findar, lançando uns reflexos lívidos e intermitentes.

Bernardino Agulha saiu da saleta, atravessou o corredor e chegou à porta da rua. A chave dormia na fechadura. O rapaz escutou, esperou e com a maior cautela abriu a porta. A baforada fresca da noite alta fê-lo recuar de súbito.

E correu de novo à porta e estendeu os ouvidos a fantásticos rumores. Os varredores ao longe cantavam levantando colunas de poeira. Como sempre, a polícia dormia, longe do sereno e das constipações anticonstitucionais.

Bernardino Agulha, cobrando ânimo, saiu e fechou a porta, passando a chave por baixo para o corredor. Imediatamente seguiu pela Rua de S. José acima, trêmulo, assombrado, rápido como um desertor perseguido.

A noite era das mais escuras e úmidas. O nevoeiro cobria o horizonte e embaçava a vista a todo o momento. Uma lanterna acesa ao canto de uma igreja assustou Bernardino, como se fosse o olho da Providência.

O coração de Didino batia a romper-lhe o peito. Os seus olhos escurecidos pelo terror viam na escuridão espectros e fantasmas.

Uma vez chegou a parar e a encostar-se à esquina: dois ou três ratos que entretinham diálogos no meio da rua, fizeram-lhe o efeito de um bando de assassinados.

Acelerou o passo, e pouco tempo depois estava junto à porta contígua à casa de Joaninha Sacramento.

Um vulto que o esperava decerto, surpreendeu-lhe os passos. Bernardino Agulha por pouco não desmaiou de susto!

— Sou eu! murmurou o vulto.

— Bom. E então?

— Tome a chave. A escada está no fundo do quintal. Suba por ela, que em um pulo entra na cozinha.

— Dê cá a chave! Olhe, venha comigo, ajude-me.

O fantasma que era nada menos do que um pardo gordo e alto, riu estrondosamente.

— Que eu o ajude? Estou pronto se me der duzentos mil réis.

— Não tenho.

— Então boa noite e até sempre, meu amo. Aquela casa é sua! Não me dá alguns cobrinhos para ir matar o bicho?

— Toma.

— Obrigado! Seja feliz que é o que eu lhe desejo!

Bernardino Agulha empurrou a porta de uma casa unida à de Joaninha Sacramento e foi direito ao quintal. Os passos do pardo alto e gordo perderam-se pelas calçadas da Rua do Ouvidor. Junto ao muro do quintal havia uma escada.

Bernardino Agulha, exalando um hausto de corajosa decisão, galgou os primeiros degraus. O galo da vizinhança cantou vibrante­mente nesse momento; Didino perdeu o equilíbrio e escapou de rolar pela escada abaixo. Mais um, mais dois, mais três degraus e Bernardino Agulha descansou a mão no peitoril da janela.

Era aí a cozinha da casa da Caxuxa; o pobre rapaz olhou para todos os lados, benzeu-se, fitou lacrimosamente o céu e entrou em um ligeiro salto para a casa de Joaninha Sacramento.

A porta da cozinha para o corredor da sala de jantar estava escancarada; nada mais notável nesses lugares onde o desleixo é a suprema elegância. Com a maior cautela e delicadeza, sus­tendo a respiração e limpando o suor com os dedos convulsos e gelados, Bernardino atravessou o corredor e chegou à sala de jantar. Ninguém! O nosso jovem amigo conhecia os domínios em que pisava. Pouco distante era a alcova da diva. Bernardino pôs-se de cócoras e encaminhou-se para lá; pálido, trêmulo, alucinado e febril. Chegando à entrada do boudoir, ergueu-se de manso, e nas sombras brilhou um relâmpago de seus olhos fúnebres. Desalojou do bolso um punhal nu e pontiagudo deveras, e benzendo-se mais uma vez entrou na alcova escura. O perfume que mais de uma vez lhe embriagara os sentidos, sufocou-o amorosamente. Os dedos frios apertaram com mais desespero o cabo do punhal. O leito estacionava ao lado esquerdo da câmara; Bernardino aventurou para aí os passos indecisos e sufocados.

Estacou com o ouvido atento e apurado ao mais impercep­tível movimento. Desgraça! pareceu-lhe escutar o jogo suave de duas respirações diversas. A raiva, o amor, o ciúme deram-lhe força titânica aos membros. Atirou-se como uma hiena à cama, apalpou, sentiu uma grande eminência como o volume de um corpo suculento, e erguendo desesperadamente o punhal cravou-o duas vezes no volume enorme. Imediatamente, porém, o susto e o remorso cingiram-no com braços de fogo; Didino sentiu os pés colados ao pavimento e o acre perfume do sangue chegou-lhe ao olfato, em uma onda abrasadora.

De um arranco ele conseguiu fugir da câmara e escondendo no bolso a mão traidora correu até a escada principal da casa. Já nem se lembrou o infeliz do lugar por onde entrara. Desceu, sustendo com a mão esquerda o corpo ao corrimão e dirigiu-se à porta da rua. Nesse momento justamente Felismina dava saída secreta a um policial de seu conhecimento. Bernardino Agulha, espavorido, parou na sombra contendo a respiração. Quando o policial desapareceu de todo, ele apresentou-se à criada que subia.

— Ai! Nossa Senhora! um homem! socorro!

— Cala a boca! Felismina! sou eu!

— O Sr. Bernardino! disse a criada, dirigindo-lhe a luz do querosene em rosto.

— Eu mesmo. Não digas nada a ninguém! Amanhã dou-te uns cobres! Deixa-me sair!

— Mas como foi que o Sr. entrou?

— Pelos fundos! Por uma escada! O ciúme! tu sabes! a raiva! Está tudo acabado! Abre-me a porta!

— Veja lá se minha ama sabe, hein? volveu a criada abrindo a porta.

Bernardino Agulha não quis ouvir mais. Deitou a correr pela rua fora, sempre de mão direita no bolso, e daí a momentos batia fogosamente à porta de sua casa.

Anastácio Agulha sobressaltado correu a abrir, gastando dez minutos pelo menos a procurar a chave.

— Sou eu, papai, sou eu.

— Didino.

— Sim, a chave está embaixo, abra depressa.

Aberta a porta, Bernardino Agulha caiu nos braços paternos, exclamando com os olhos injetados e a face lívida:

— Estou perdido, papai. Matei o fazendeiro.

— Hein?!

— Matei o fazendeiro! Duas punhaladas! Ninguém ouviu, mas amanhã todos saberão do caso porque a criada me viu sair!

— Mas, desgraçado!

— Ponha o paletó e vamos ao subdelegado, já.

Bernardino Agulha tremia da cabeça aos pés; o suor caía-lhe da testa baga a baga.

Anastácio cuidou que o filho estava doido.

— Conta-me.

— Não há tempo; vista-se e vamos à polícia. Se o senhor não quiser vir, vou eu só!

Anastácio Agulha saiu com o filho, que lhe contou tudo em caminho. Despertaram o subdelegado, o inspetor, e alguns curiosos e policiais foram convidados a seguir o assassino ao lugar do crime. Em um dos policiais Bernardino Agulha conheceu a visita de Felismina. Anastácio foi até a casa de Joaninha Sacramento, chorando.

A criada se recusou a abrir a porta, mas à palavra "polícia", pronunciada por um policial conhecido, a chave rangeu na fechadura. Acenderam-se mais velas, e encaminharam-se todos à alcova. Felismina, admirada, seguia-os.

— É aqui! disse Bernardino. O homem deve estar morto na cama!

Felismina meteu a cabeça entre o grupo e espreitou cada vez mais pasma.

Anastácio Agulha correu desvairado até o interior da alcova, e desprendeu em seguida um grito retumbante.

Bernardino Agulha sentia-se desfalecer.

Anastácio voltando-se para a porta:

— Didino! exclamou ele entre a alegria e o deslumbramento. Tu não mataste um homem, mataste uma trouxa, meu filho!

Felismina compreendendo tudo enfim, caiu atacada de uma convulsão de risos. Entraram todos no quarto. Realmente, sobre a cama havia apenas uma grande trouxa de roupa suja onde o punhal de Bernardinho Agulha fora enterrado até o cabo.

 

XXXIII
COUSAS QUE SEMPRE ACONTECEM

Vinha rompendo furtivamente a madrugada, quando os ale­gres convivas do hotel Rocambole deram por terminada a festa. Joaninha Sacramento, mostrando o fazendeiro adormecido ao dono do hotel, disse-lhe, com um movimento de ombros impu­dente e cínico:

— Pegue naquele trambolho e deite-o em qualquer cama.

— Oh! mademoiselle!

— Ele é rico, mon cher! Paga-lhe bem, e quanto a mim, amanhã explicar-lhe-ei a cousa da melhor maneira!

Voltando-se para o elegante Zezé:

— Acompanhas-me, Marte? perguntou ela, sorrindo desafo­radamente.

Marte respondeu-lhe com um olhar mitológico e ofereceu-lhe o braço.

Momentos depois os carros partiram para a cidade, envoltos em nuvens de poeira, gargalhadas e palavras que não podem ser aqui transcritas.

Quando Felismina, tonta de sono, contou a Joaninha Sacra­mento o que sucedera a Bernardino Agulha, a Caxuxa correu ao quarto estalando de gargalhadas.

Abriu a assassinada trouxa e depois de examiná-la rapida­mente:

— Patife! exclamou ela: furou-me três saias novas e dois fichus de renda de Inglaterra!

O travesso Zezé cantarolava entredentes uma cançoneta da Gaudon.

Esperto pardal, aos primeiros raios do sol, ele desamparou o ninho da bela adormecida.

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A autoridade indignada com a peça que lhe pregara Bernardino Agulha, deu-lhe ordem de prisão.

— Mas por quê, Sr. doutor? perguntou Anastácio atemorizado.

— Boa pergunta. Porque tem de responder perante as autori­dades pelo crime cometido.

Felismina estorcia-se em gargalhadas.

— Crime! Pois furar uma trouxa é crime, senhor?

— E a intenção? E a arma proibida? Camarada, tome conta deste moço. Vamos.

Anastácio Agulha, ao sair à rua, procurou um meio de salvar o filho. Quando viu que realmente ele ia ser recolhido à prisão, o pobre do homem caiu de joelhos aos pés da auto­ridade:

— Pelo amor de Deus, Sr. doutor!

— Vamos, siga!

— Pelo amor de Deus! O rapaz não regula bem.

Bernardino ia protestar, mas Anastácio Agulha, beijando os botins do subdelegado:

— Não me mate, Sr. doutor; articulou ele entre soluços.

Se este rapaz for preso eu dou com a cabeça nas pedras e acabo com a vida!

O certo é que os policiais tiveram ordem em voz baixa de deixar escapar o sujeitinho. A autoridade não perdoou, mas consentiu na fuga.

— É um idiota! disse consigo o subdelegado. Os idiotas estão incursos no art. 27 do código e portanto não há criminalidade!

Dada esta satisfação à própria consciência, a autoridade retirou-se, deixando o campo aberto à evasão do preso.

Em casa, Anastácio Agulha, acendendo duas velas junto ao célebre pé de Eufrásia:

— Meu filho, murmurou ele sem poder conter as lágrimas, Didino! Pela memória de tua mãe! Por teu pai, por este desgra­çado homem que tu vês chorando de desespero!...

— Papai!

— Não faças mais disto! Deixa aquela mulher danada que é capaz de te fazer subir à forca, meu filho!

— Oh!

— Olha, não há decerto mais recursos na nossa algibeira, mas arranja-se, arranja-se e vamos daqui para fora!

— Não posso!

— E continuas a fazer catroaças desta maneira? Responde!

— Acabou-se, papai! Foi o ciúme, a raiva, a tentação!

— Felizmente uma trouxa não é um homem e então...

— É verdade que estamos sem vintém, meu pai?

— Quase, Didino, quase!

Bernardino Agulha sorriu lugubremente.

— Vou descansar um pouco, disse ele. Que dor de dente, oh!

— Extraordinário menino! murmurou intimamente Anas­tácio Agulha, seguindo com o olhar o filho. Outro qualquer, depois de uma patuscada destas, teria dor de cabeça, ele... Aquilo decerto é o dente do siso que lhe está doendo!

Apagou as velas e foi deitar-se; mas não dormiu mais.

Bernardino Agulha, embrulhado na coberta, tiritava mais do que sempre. A imagem da Caxuxa apareceu-lhe entre as visões do sono febril. De vez em quando acordava sobressaltado sentin­do o peso de uma trouxa de roupa sobre o estômago.

 

XXXIV

A CAXUXA TRIUNFA

Às 8 horas da manhã, pouco mais ou menos, o velho fazen­deiro, desfigurado e trêmulo, penetrou na alcova de Joaninha Sacramento.

— Ah! é você?

O honrado homem fez um gesto de ira concentrada e sentou-se aos pés da cama.

— Com que então a senhora deixa-me em um hotel que não conheço, só, desamparado, dormindo, e vem para a cidade com...

— Com...? Acabe!

— Com o seu amante!

— Ah! Ah! Ah! soberbo! divino! incomparável! Descanse, meu velhinho, vim só, eu e a minha sombra!

— Alguma sombra de bigodes!

— Faz espírito? Bravo! Eu lhe conto... Felismina?

— Minh’alma.

— Traze o chocolate. Quer tomar uma xícara de chocolate? Está tão amarelo você; talvez lhe faça bem!

— Obrigado!

— Pois, meu carozinho, participo-lhe que o acordei lá umas dez vezes. Você roncava como uma onça que eu vi em casa do Souto! Chamei-o, gritei; tornei a gritar; nada! Estava morta de sono; quis carregá-lo nos meus braços até o carro; não tive forças. Cândida ajudou-me uma vez, mas atirou com o senhor ao chão!

— E caí! exclamou o velho, abrindo embasbacado os olhos.

— Caiu e em regra! de barriga para baixo. Nem se lembra, hein? Pois caiu, sim. Chamei os rapazes para o levarem nas costas. Riram todos a bandeiras despregadas!

— Canalha!

— Vendo que não podia demorar-me mais por ter muito que fazer na cidade, recomendei-o ao dono do hotel.

— Que me deixou dormindo com a cabeça em cima da mesa.

— Sim? coitado! Recomendei-o como lhe disse, e vim para casa imediatamente.

— Ninguém te acompanhou, Joaninha?

— Todos. Até a porta só, note-se. Despediram-se e eu subi, cambaleando de sono. Aí tem.

— Oh! Deus te pague! Obrigado! Pensei que...

— Tolinho! Diga-me: gostou do pagode?

— Assim, assim: estou pouco acostumado àqueles barulhos.

— Pois esteve magnífico. Tem muita graça o Zezé, não tem?

— O do discurso?

— Ele mesmo.

— Para mim foi o melhor de todos, isso é que é verdade! Joaninha Sacramento escondeu um sorriso indiscreto.

— Agora, sabe o que o senhor tem de fazer hoje?

— Tu me queres?

— Cada vez mais!

A fisionomia do honesto fazendeiro resplandeceu de triunfo.

— Pede-me tudo o que imaginares!

— Olhe: não se esqueça da vitória do Batalha, das assina­turas dos jornais de modas, passe pelo Moutinho e compre-me uma charuteira de ouro embutida de pérolas que lá há.

— Uma charuteira? Pois tu fumas, Joaninha?

— Não, mas gosto muito de objetos delicados. Traga-me tudo o que lhe pedi, sim?

— Sim.

A Caxuxa despediu sobre o nosso homem o seu mais feiti­ceiro olhar e ele saiu correndo, cada vez mais eletrizado.

Quando voltou e entregou a Joaninha Sacramento os reci­bos das assinaturas, da vitória do Batalha e a charuteira, Felismina veio às pressas à alcova participar que uma pessoa queria falar a todo o custo com o velho fazendeiro...

— Diga que não estou aqui!

— Ele viu vosmecê entrar e quer por força falar-lhe. Já está na sala de visitas.

— Não vou!

— Vai, sim senhor, e eu o acompanho. Dá-me esse peignoir, Felismina! Vê os meus chinelos de veludo. Bom. Vamos à sala.

Na sala de visitas esperava-os um homem de porte austero e nobre, vestido com a distinção de um diplomata.

O velho fazendeiro correu ao seu encontro expansivamente.

— Oh! é André! Como vais?

O outro, saudando-o, glacial e nobre, tirou do bolso uma carta tarjada de preto e entregou-lha.

— Que é isto?

— Isto é a notícia da morte de sua filha!

— Josefina! balbuciou o fazendeiro, lívido até a raiz dos cabelos.

Joaninha Sacramento ia afastar-se.

— Fique, disse o visitante, detendo-a com um movimento imperioso. É preciso que a senhora assista a esta cena!

A Caxuxa, um pouco impressionada, sentou-se em uma cadeira distante.

A carta tremia e machucava-se entre as mãos oscilantes do velho. Um véu sombrio encobria-lhe a vista.

O portador da missiva tomou-a delicadamente das mãos do fazendeiro, abriu-a com certa pausa e leu o seguinte, sem tremer-lhe a voz:

"Josefina deu a alma a Deus ontem, depois da meia-noite. Pobre criança! como padeceu, coitadinha! A minha consolação foi ter feito tudo quanto se pôde fazer para salvá-la. Mas estava escrito que ela iria para o céu desta vez. Quando morria chamou por ti, estendendo os bracinhos..."

Um soluço abafado rompeu do peito ofegante do velho libertino.

A voz grave e triste continuou:

"Esperei-te tanto! Minha única vontade era que ela não mor­resse sem a tua última benção. Pedi sempre isso chorando a Nossa Senhora das Dores; mas o céu não me ouviu, e agora só me resta pedir-te que venhas pelo amor dos outros filhos e desta tua desgraçada mulher."

O fazendeiro escondeu o rosto nas mãos juntas.

— O que esta carta não diz, senhor, e que eu sei por fonte limpa, é que outra filha sua está bastante doente, e sua mulher...

— Quê? perguntou o velho com um olhar de idiota.

— E sua mulher pouco tardará a reunir-se à sua filha Josefina. O fazendeiro levantou-se e deu dois passos pela sala, trôpego e alucinado.

— Está tudo pronto. O senhor vai partir hoje.

— André!

— Até o dia em que chegar a Minas não conte com a minha amizade, que é a de um homem de bem.

Joaninha Sacramento acompanhou de um sorriso essas últimas palavras.

— Tão de bem, volveu ele, dirigindo-se à Caxuxa, que a se­nhora nunca me verá perder a vergonha estendendo-lhe a mão!

— Senhor!

— Vamos!

O velho fazendeiro olhou para Caxuxa. Ela dardejou-lhe o olhar da Vênus imperiosa. Ele cerrou os olhos instintivamente, como quem evita a atração do abismo.

O portador da carta repetiu:

— Vamos, senhor!

O fazendeiro correu a Joaninha Sacramento, perguntando-lhe sôfrego e em voz baixa:

— Queres que eu fique? que deixe tudo por ti? Eu finjo que me vou embora para Minas, e venho às encondidas! Queres? Responde pelo amor de Deus!

— Sabe o que o seu amigo está me perguntando? exclamou Joaninha Sacramento, desprendendo uma gargalhada. Se eu quero, ou antes se exijo que fique! Ah! Ah! Ah! É curioso este velho!

— Hein?

O fazendeiro saltou como impelido por uma pilha vulcânica.

— Impagável! prosseguiu Joaninha! Vá, vá enterrar sua se­gunda filha, meu caro; já estou enjoada de sua presença e do seu dinheiro.

O fazendeiro cerrou os punhos e avançou para ela:

— Maldita! Depois que me roubaste!

— Saia! Leve o senhor! Daqui a Minas é um pedaço e toda a demora torna-se prejudicial! Boa viagem.

O velho cambaleava atônito.

A Caxuxa fez uma cortesia e mostrou a porta.

O portador da carta disse em voz baixa a Joaninha Sacramento:

— Agradeço-lhe em nome de uma pobre mulher!

— Ah! o senhor pensa que é por compaixão a essa pobre mulher que eu faço isto? acudiu ela asquerosamente. Qual! Tanto me dá que as filhas morram, como os netos, as sogras e as madras­tas! Eu é que já estou aborrecida deste velho!

O fazendeiro, no auge da cólera, quis atirar-se sobre Joani­nha Sacramento.

Mas dois braços generosos e fortes o arrastaram e uma voz amiga bradou-lhe ao ouvido:

— Pela sepultura de tua filha!

As gargalhadas da Caxuxa ouviam-se da rua.

 

XXXV
FELISBERTO CANUDO DE OLIVEIRA CONCEIÇÃO ALBUQUERQUE E MELO EM APUROS

O elegante Zezé foi surpreendido por um bilhete de Joa­ninha Sacramento que dizia:

"Caríssimo Marte,

Recebe esta charuteira que eu fiz o meu velho maluco comprar para ti. Adeus, não me posso .esquecer da noite de ceia! Tua, Vênus."

Está aí explicado o motivo por que Joaninha Sacramento exigiu do fazendeiro a tal charuteira de ouro ornada de pérolas.

Feliz Zezé! Feliz Zezé! Feliz Zezé!

Bernardino Agulha foi recebido pela Caxuxa como da primeira vez; precedeu-lhe a visita uma carta amorosíssima e duas valiosas notas do Banco do Brasil.

Joaninha Sacramento esqueceu com súbita facilidade a céle­bre punhalada na trouxa.

Ora! uma trouxa! uma punhalada! que era isso à vista daque­las interessantes cédulas do tesouro nacional e do Banco que o pequeno Agulha lhe derramava aos pés?

Se o leitor incrédulo admirar-se da nova posição de Bernar­dino Agulha, espécie de Monte-Cristo em miniatura neste capí­tulo, não tem mais do que consultar os usurários desta boa capital e a uma misteriosa sociedade de falsificadores de firmas, cuja his­tória contarei um dia, para quem não há dificuldades, nem obstá­culos perante o fulgor irresistível das moedas. Alguns vão parar à correção, outros a Buenos Aires e outros... e quase todos vivem folgadamente na Corte, sede do Império, acotovelando a polícia, enchendo os salões com o luxo de suas mulheres e o esplendor de suas condecorações.

Mas esquecia-me de que não sou moralista, e portanto passo adiante sem mesmo tomar fôlego.

Por fás ou por nefas, Bernardino Agulha despendeu durante uma boa semana riozinhos de dinheiro com a tentadora Joaninha Sacramento. Alcazar, reuniões no campo, ceias, vestidos, nada fal­tava ao feminino Minotauro.

Anastácio nadava em oceano de delícias pela alegria e bem-estar do filho.

O escrivão Lopes, que viera despedir-se para seguir viagem até Friburgo, onde o chamava negócio de enganar gente tola, disse a Anastácio Agulha, já a sair:

— Eu sou seu amigo e portanto devo falar-lhe com o coração na mão.

— Fala, Lopes, fala com o coração na mão!

— Seu filho se está perdendo!

— Como! pois hoje que o vejo satisfeito como nunca! Isto são intrigas.

— O senhor dá-lhe dinheiro?

— É cousa que não vejo há muito tempo!

— Como é que ele gasta tanto, não me dirá?

— Ora, nada mais simples. Disse-me que um amigo seu, sócio de uma sociedade que vai aparecer, não sei qual é!... tem lhe adiantado algumas patacas!

— Um... um... é peta, não creia, Sr. Agulha! Enfim, bote sen­tido e adeus! Conte sempre com um amigo!

— Outro tanto, outro tanto, Lopes!

Nesse mesmo dia Anastácio Agulha recebeu notícia de sua demissão no arsenal. Por incapaz, dizia o ofício. O pobre homem não pestanejou sequer.

— Eu já não tenho um vintém, mas pouco me importa; de qualquer maneira me arranjo. Vou ser até recebedor de ônibus. O caso é que Didino vá indo com a ajuda de Deus!

Mas estava decretado que Anastácio Agulha havia de receber nesse dia a maior soma de calamidades imagináveis. Bateram-lhe à porta. Eram dois sujeitos de pavoroso tipo. Daí a pouco mais um, em seguida outro e outro. Tratava-se simplesmente de procu­rar Bernardino por falsificador de firmas, devedor de não sei quantos contos de réis, e duas letras foram apresentadas por um usurário com a assinatura de Anastácio Temporal Agulha.

Anastácio sentiu faltar-lhe a luz dos olhos, e a respiração dos pulmões convulsivos.

— Com que então, meu filho...

— Seu filho é um ladrão, senhor; e para os ladrões é que o governo mandou fazer a casa de detenção!

Anastácio Agulha saiu de casa alucinado. Entrou em um café, sentou-se, bebeu água e pensou dois minutos. Parecia agonizar, o infeliz dos infelizes! Compondo o melhor que pôde o semblante, dirigiu-se a uma botica do seu conhecimento.

— Oh! menino, dá-me dois tostões de arsênico.

— Sem receita, não senhor.

— Homem, nem para matar ratos e cupins! Está bem, hei de achar quem me venda!

— Dê, menino; o Sr. Agulha é conhecido; pode dar.

— Obrigado!

A única fortuna de Anastácio Agulha eram 240 rs. Pagou o arsênico e comprou em uma venda próxima uma caixa de fósforos.

Assim munido, encaminhou-se às pressas para a casa de Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

O homenzinho recebeu-o meio atemorizado. Anastácio Agulha estava pálido e com um tremor constante na boca fria.

— Como vais, Felisberto?

— Oh homem! que tens tu?

— Eu? nada, Felisberto. Mostra-me a tua casa.

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo acompanhou admirado o amigo ao interior da casa. Na cozinha, que para pouco servia, estavam amontoados dois ou três colchões velhos e rotos, tábuas que pertenceram outrora ao galinheiro, paus, traves, palhas, etc. Um grande sorriso de sa­tisfação irradiou no semblante de Anastácio Agulha.

— Que queres ver, homem? perguntou-lhe Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo seriamente impressionado.

— Nada. Pediram-me para ver uma casa, e eu lembrei-me de...

— Desta não me mudo eu senão para o cemitério.

— Disseste cemitério?! Oh! dize cemitério, outra vez!

— Bom! Já tardavam as tuas esquisitices.

— Onde está tua negra?

— Saiu às compras.

— Vem cá, Felisberto.

Quando chegaram à sala, Anastácio Agulha começou por fechar as janelas e em seguida a porta da rua cuja chave guardou no bolso.

— Anastácio! Que vais fazer, Anastácio?

O homenzinho tremia e suava como se estivesse dentro de um forno.

Anastácio Agulha sorriu funebremente e mostrando um pequeno embrulho ao outro:

— Tu és meu amigo, não és?

— Sou sim, por que? fala!

— Queres me fazer um obséquio?

— Dize!

— Vamos morrer juntos.

— Hein?!

— Isto é arsênico e do bom. Eu tomo metade e tu tomas metade. Daqui a meia hora espichamos a canela abraçados um ao outro!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, cuidando que aquilo era caçoada, bateu no ombro de Anastácio Agulha, sorrindo amavelmente. Anastácio, despedindo um grito furioso abriu o papel e metendo os dedos no alvo pó venenoso:

— Vais engolir primeiro do que eu a dose!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo recuou até a porta.

Anastácio Agulha avançando com energia:

— Abre a boca já, anda! Isto é uma morte de instantes! Palavra de honra que eu tomo depois!

— Anastácio!

— Meu filho vai ser preso, desonrado, sobe à forca talvez; eu não posso fazer nada por ele, antes quero bater a bota, mas em tua companhia, meu pobre amigo!

Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo espiou as janelas; fechadas; a porta da rua o mesmo, e querendo correr para o quintal e saltar o muro, foi agarrado possantemente pelos braços nervosos de Anastácio Agulha.

— Socorro! Socorro! Socorro!

Anastácio Agulha lançou ao chão o homenzinho e com o papel inclinado procurava descerrar-lhe os dentes apertados.

Baldado intento! Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo tinha o instinto da conservação muito apu­rado; Anastácio não conseguiu abrir-lhe a boca, por mais esforços que empregasse.

— Ah! isso é de propósito? bradou ele com todos os entusias­mos dos seus primeiros tempos. E dando um salto à cozinha, acendeu um punhado de palhas lançando-as no meio dos paus secos, lenha, colchões que atopetavam o limitado espaço.

A chama apoderou-se de tudo em um momento; uma enorme labareda subiu ao teto e as traves crepitaram ao contato do fogo. Nesse ínterim Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo, no cúmulo do desespero, metia o ombro à porta da rua para arrombá-la. Não tendo forças para tanto, o homenzinho voou a uma das janelas, abriu-a e indo saltar para a rua, foi seguro por uma perna; era a mão frenética de Anastácio Agulha.

— Socorro! socorro! uivava Felisberto Canudo de Oliveira Conceição Albuquerque e Melo.

O povo aglomerou-se junto à janela; o fumo da cozinha chegou até a rua.

— Fogo! gritaram algumas vozes.

— Já que não quiseste morrer envenenado, bramia Anastácio Agulha, pendendo a cabeça, hás de morrer assado, Felisberto!

Mas o homenzinho em um arranco lançou-se à rua; Anas­tácio acompanhou-o. Três policiais e gente do povo correram sobre ambos. Anastácio Agulha quis bater-se com todos, mas lembrou-se de Bernardino, Bernardino perdido nesse momento talvez, Bernardino por quem ele tentara matar-se, e, desvairado, fugiu perseguido pelo clamor do povo e pelos agentes da polícia.

 

XXXVI
CONCLUSÃO

Nesse dia Joaninha Sacramento disse com um momo de menina enamorada a Bernardino Agulha:

— Sabes que é hoje dia de meus anos?

Os olhos de Bernardino Agulha faiscaram.

— Zezé mandou-me este colar de corais: olha como é boni­to. O Sousa mandou-me este anel; a Cândida este estojo de essên­cias, e tu, meu anjo, que me dás?

Bernardino Agulha saiu à rua pouco depois. Não possuía um mil réis e não lhe ocorria expediente algum para arranjar dinheiro. Lembrou-se de que com jeito talvez lhe fosse possível roubar uma jóia e... Entrou em casa de um ourives, pediu braceletes, pulseiras para escolher e em uma das vezes que o cai­xeiro voltava o rosto, empalmou uma jóia e saiu da casa um pouco apressado. Infeliz! o grito de ladrão estrugiu no espaço, e o miserável deitou a correr com toda a velocidade.

Enquanto Anastácio Agulha fugia por um lado, o filho fazia o mesmo por outro. De forma que quando Anastácio, quase sem forças, já pouco distanciava dos seus perseguidores, encontrou-se em uma esquina cara a cara com Bernardino acometido por mais de vinte pessoas.

— Ladrão! Pega ladrão! Ladrão!

Anastácio Agulha estacou petrificado e ouvindo de novo bradarem ladrão ao filho:

— Oh! vociferou ele mostrando os punhos fechados ao povo. E caiu no meio da rua, morto.

Bernardino Agulha desvencilhou-se dos braços que o prendiam e dobrou a rua com mais velocidade e desespero....................................................................................................................................................................

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A multidão perseguia-o..................................................................................................................................................

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Bernardino Agulha corria ................................................................................................................................................

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.................................................................................................................................................................corria ainda

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..............................................................................................................................................................corria sempre!

NUPILL

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística