Lírica. Sonetos e rimas, de Luís Guimarães Jr.
Texto de referência:
Sonetos e rimas / Luís Guimarães Júnior ; apresentação, Gilberto
Araújo. – Rio de Janeiro : Academia Brasileira de Letras, 2010.
Sonetos e Rimas
Aere
Perennius
ÍNDICE
Misticismo
PRIMEIRA PARTE
[O Coração que Bate neste Peito]
O Esquife
O Sono de um Anjo
Fora da Barra
O Cruzeiro do Sul
Visita à Casa Paterna
A Esmola
A Morte da Águia
Temperamentos
Meu Pai
A Voz das Árvores
Noite Tropical
Nostalgia
Natal
A Noite de S. João
Os Boêmios
Londres
A Avó
Soneto Romântico
Hora de Amor
O Jaguar
Arte Poética
Roma
Diva
Jesus
Súplicas Maternas
Saudade das Montanhas
O Farol
Idílio
As Estrelas
O Danúbio Azul
O Arsenal
Madrugada na Roça
A Voz de Moema
Dum Polo a Outro
Os Albatrozes
Dia de Finados
Os Escravos
Amar e Ser Amada
Metamorfose
Paisagem
Vênus de Milo
Mata Virgem
O Bom Doutor
O Sol no Mar
A Borralheira
Miguel Ângelo e Moisés
Paulo e Virgínia
O Filho
A Caravana
Idade Média
Cantiga para Adormecer
Paris
A Alcova
Ódio
Ernesto
Nhanhã
A Bordo
A Vestal
A Bela
Credo
O Piano
A Noiva
No Álbum de Stanislao D’Atri
Revelação
Frente a Frente
As Vozes da Noite
A Primeira Entrevista
Versos de Stecchetti
História de um Cão
Confiteor
Veneza
O Enterro Civil
O Coliseu
O Derradeiro Olhar que na Agonia
Nera
A um Rico que Passava
As Duas Forças
SEGUNDA PARTE - OS POETAS MORTOS
Gonçalves Dias
Casimiro de Abreu
Junqueira Freire
Álvares de Azevedo
Castro Alves
Varela
Agrário de Menezes
Franco de Sá
Laurindo Rabelo
Bruno Seabra
Aureliano Lessa
José de Alencar
Porto-Alegre
TERCEIRA PARTE
Per Amica Silentia
Eva
A Hora do Repouso
Naufrágio
Enlevo
Página Íntima
Contraste
A Jangada
Olinda
Aos Estados Unidos
Duas Sombras
À Mulher Americana
A Valsa
Arrulhos de Namorados
A Canção da Morta
Tranças Amadas
Os Olhos de Clemência
Noturno
A Gaivota
Aspásia
Auto-da-fé
A Capela
Visão
O Viajante
O Pensamento
Guitarra
O Colar
Memórias
A uma Cega
À Sombra dos Álamos
Inverno
Triste Volta
Miss Perfection
O Cego
À Beira-Mar
A Escrava
Señorita
A Carta
Boa Viagem
Cantiga
A Gazela
Incógnita
A um Milionário
A Lua no Mar
O Cisne
O Boi
A Sertaneja
Longe dos Homens
O Berço e o Túmulo
Confidência
Satanás
No Deserto
Sorrento
A meu Filho Gabriel
À Rainha de Portugal
O Beijo da Morta
Num Terraço
Êxtase
Galateia
Venus Victrix
As Mãos de Bela
Paquita
A Estátua
A Lucinda Simões
Profissão de Fé
APÊNDICE
Lenda Antiga
NOTA
ADVERTÊNCIA
Fialho D’Almeida
Os poetas propagandistas, cantando a Justiça, derruindo velhas fórmulas políticas e religiosas, fazendo a apoteose da oficina e da blusa, ou conclamando, em rutilantes alexandrinos, as invenções, descobertas e sínteses da ciência e da indústria, são prosadores castrando em rimas imprevistas ou sonoras os períodos que vão escrevendo. Como agente de propaganda, a poesia é o mais frouxo dos veículos literários; e com a sua organização feminil, os seus delicados moldes, o artifício das rimas e o mosaico das imagens, ela amesquinha a magnitude e o ímpeto dos altos problemas que tem em mira vulgarizar. Ela vive do meio sonho vago, que deixa o poeta ir idealizando o seu mundo em doces e flutuantes quimeras. Nas manifestações do belo, toma por lei uma relação precisa e justa entre as concepções individuais e o elemento tradicional. Estabelece as correlações íntimas, as misteriosas afinidades da religião com o amor, e do amor com a família e com a pátria. Todas as crenças e todas as abnegações que a mocidade irradia sem lhes indagar da lógica dirigente, ou querer justificar as explosões cavalheirescas, constituem os seus diletos subsídios e fontes de inspiração profunda.
Tais aspirações são já uma poesia instintiva, esparsa por todos os espíritos moços, mas incapaz de cristalizar por si, num cântico dotado de formas literárias. Mas eis que o poeta chega e dá corpo a estes sons errantes, a estes vortilhões da imaginação coletiva, a estas tendências sonoras da alma, sublimada por aspirações de mais generosa altura; chega e dá cor, acento, ironia e vida aos trechos anonimamente sentidos e colaborados por uma raça, ou simplesmente por uma geração.
Tal é na poesia romântica o papel de Byron, de Schiller, de Madame de Staël, Thomaz Moore, Chateaubriand e Jean Paul, interpretando a inquietação atormentada, a febre delirante, e o frenético amor da sociedade do seu tempo. O público vem então maravilhosamente disposto a compreender essa poesia que ele propulsionou sem assinar e que reflete o seu momento psicológico, ao tempo que lhe está fortalecendo as tendências e lisonjeando as necessidades e as predileções. Idade de ouro para os poetas, aquela em que o público é inteiramente o contemporâneo da poesia vigente, e onde o sentimento individual do artista tem pouco a fazer numa obra tão intimamente enraizado no coração da turba[1].
Este estado d’inteira adaptação entre a obra dum espírito e o espírito duma época dá-se quando a humanidade atravessa estados de incerteza ou de angústia, ou às horas de transição em que uma idade está morta, quando ainda outra mal vem alvorecendo. O poeta faz-se então o apóstolo da ansiedade geral, o profeta da aurora que nem boceja sequer ainda entre os escombros. É Leopardi em Recanati, aos vinte anos, pondo a sua tristeza de raquítico em versos febris e límpidos, e elevando-se por ela à expressão mais patética da dor. É Herculano em Plymouth, chorando as saudades da pátria crucificada ao miguelismo, ou inspirando as suas elegias nos conflitos liberais de 32 e 34. É Byron tentando esculpir, na selvageria das suas figuras, a revolta do gênio contra os pequenos moldes da sociedade artificial que lhe reprovava as excentricidades. Walter Scott, o clarificador da história, segundo Hazlitt, renovando o interesse histórico na literatura escocesa por um gênio de narrador sem rival. E Baudelaire, Musset, Rollinat e Richepin, exprimindo a saciedade cética e a inquietação nevrótica e doentia das nossas civilizações atuais.
Porém, a crise passa, resolveu-se a dificuldade política, o cadafalso ou o exílio levaram o tirano que motivara a revolução. Na sua labutação incansável de mineiro, a humanidade depara com novos filões vitais que lhe avigorentam a trama, sacudindo-lhe a tristeza enervante. Uma outra era sorri. Aquele estado do ser moral coletivo evaporou-se e foi curado. E eis que a musa desflorada emurchece da frescura radiosa que primeiro fizera chispar cintilas nos corações opressos! Por forma que se escreverá desta poesia o que Guy Patin já dissera de certos remédios em moda — que era i-los tomando enquanto curavam. De fato, quem compreende hoje a musa católica de Chateaubriand? Onde reboa um eco sequer da poesia jacobita de Diana de Vernon? Que heróis de Byron não fariam hoje rir François Coppée e Catulle Mendès? O que há de atualidade no amor heroico de D. Carlos, e no amor cavalheiresco de Aben-Hamet? Como sentir pulsar uma alma, mesmo, na Idade Média de Victor Hugo[2]? Esses grandes bocados são vozes sem eco na alma moderna, alguns já tão frios que parecem só feitos de ênfase, tão longe vamos do pensamento que os ditou. Não correram muitos anos desde que Napoleão III desceu à história, e já declinam os Châtiments, como se a mediocridade política da figura que os inspirou descorar pudesse a poesia demolidora do nosso velho colosso romântico. A humanidade não quer dos pequenos interesses circunscritos aos pequenos grupos: por isso depressa passa do gosto essa poesia de episódios locais. Entanto ela tem as suas grandes paixões indomáveis, eternamente vivas, sangrentas e fecundas, as suas grandes cóleras, as suas soberbas forças heroicas; e a musa que as vibra é a única que nunca morre, pois ela presta a sua voz à alma mesma da humanidade. Sem arcabouço para suportar a formidável massa dos assuntos contemporâneos, secos, positivos, que não deixam margem a voos de imaginação, e dos quais só a monografia, o tratado de ciência, o panfleto, o romance de análise etc. podem dar conta e fazer correr mundo; a poesia, como vulgarizadora, carece de fôlego, e, tentada há pouco ainda, está agonizante, ou morreu à nascença.
Os assuntos práticos de que se convulsiona a moderna vida, esses vastos problemas que fecundam as riquezas e centuplicam as ideias, criando necessidades, gostos, aptidões e pontos de vista, sobre que logo outras indústrias e interesses vão polarizar-se, anquilosar-se, e contundir-se — determinam no mundo uma circulação tão brusca e constante, prendem o homem em tal gargalheira de atividades, que o seu coração, tornado egoísta pela fadiga, perde a impressionabilidade de sentir e traduzir aquelas emoções líricas e finas, que em outras juvenis idades eram a paixão dos espíritos nobres, e entretinham a vida sóbria, tudo explicando pelo sentimento, exprimindo tudo pelo símbolo, e pondo na palestra e na escrita, entre imagens e juízos simples, essa gotejante alegria solar, que nas zonas temperadas faz tão exuberantes as culturas da terra e as manifestações da inteligência. Em nossos dias o espírito positivo matou o sentimento poético, que o exclusivismo individualista está acabando de matar. A análise encaneceu a juventude do nosso coração, e já não vamos com túnicas de linho branco, coroados de flores, saudar a primavera entre evoés pagãos, ébrios do amor panteísta que se nos entornava da alma em golfões, como um Chipre raro, das belas ânforas de ágata, vermiculadas de oiro. O amor, quando não seja um cálculo, transfaz-se numa extravagância dos sentidos, que falsearam a impressão para que tinham sido criados. Quebrou-se o elo natural entre a turba e o poeta. Cada lira restringe a sua glória a pequenos clubs de crentes maníacos, que passam a vida imobilizados no êxtase de aberrações postas em rima, aberrações que, pela estranheza, dir-se-iam pescadas no álcool dos museus de teratologia hospitalar. Desnecessário exemplificar. É ler a mor parte dos versos célebres dos nossos dias, as Odes Funambulescas de Bainville, as Chansons des Gueux e as Blasphèmes de Richepin, as Flores do Mal de Baudelaire, as Nevroses de Rollinat, e todos os volumes que mais ou menos gravitam à volta destes. Jamais o metro foi tão rico, a rima tão hilariante, a língua tão plástica, e tão embelezada a imagem, duma cinzelura vaporosa! Mas o talento, rebuscando os efeitos de arte mais excêntricos, e querendo ferir por uma originalidade arquidoida, estrangula a voz dos sentimentos naturais, turba a grande veia límpida da inspiração, falseia a sinceridade da alma que se queixa ou que exulta, mira efeitos teatrais na emoção que explora, caindo numa sorte de monomania bizarra. Tudo neste certâmen condiz ao fim: a rima procurada entre palavras obsoletas, as imagens colhidas entre os fenômenos mais repelentes, mais extravagantes, mais recônditos, e o tema inicial quase sempre talhado em podridões, misérias, infâmias ou bufonerias. Eu não nego o gênio destes extraordinários analistas. Quantas vezes Rollinat me tem dado pesadelos! Mas tantos desses patológicos assuntos não diriam melhor numa monografia científica? Cuidam os poetas pagar com as maravilhas da fatura a frialdade ou o artifício do sentimento interior — e assim ficaram as estrofes, enfileiradas, enigmáticas, mortas, como uma avenida de esfinges que leva à necrópole deserta.
Resta a poesia puramente lírica, a poesia que o amor glorifica, nas transfigurações do idílio e paixão platônica das puras formas: bando de visões tecidas de sonho e nuvem, desejos duma serena plenitude que todos os seres compartilhem, desde a alga microscópica até ao homem de gênio — poesia perfumada dessa ternura infinita, castíssima, maternal à força de íntima, que vibra no poeta ante os mais leves aspectos sensíveis. Através das evoluções do espírito moderno, no vortilhão doentio dos que todos os dias renovam os seus ideais, há pequenas sinagogas de contempladores e eternos crentes, imutáveis como o dogma, aos quais as velhas coisas inspiram culto apaixonado, e que se comprazem em cultivar os afetos simples do espírito, ingenuamente expressos, ingenuamente sentidos, e camonianamente cantados. A poesia que eles fazem, repassada do sentir da multidão anônima, parece antiga como a estatuária grega, e como ela eterna pela graça rústica que acentua, e pela límpida e franca linguagem que emprega. Nesta situação, o poeta lírico é um ser à parte, uma espécie de divino sonâmbulo, cristalizando dor a dor, soneto a soneto, na sua alma, como numa concha, à força de concentração, contemplação, o grande ideal de amor absorvente, que se alimenta de puríssimas reminiscências de beleza, e flutuante nas asas do êxtase, tudo vai sagrando por onde quer que passe. É o caso de João de Deus, recolhido nas contemplações da sua mocidade algarvia, rimando singelos amores com raparigas do campo, e dizendo as saudades de Marina morta, e a meiguice frágil de Margarida, naquela forma primitiva do lirismo português, que no século XVI radiava em fragmentos de Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões.
Instintivamente, indaga-se a quantos séculos de distância está a voz que se escuta rimando essa canção paradisíaca e divina, onde entanto lateja o coração do mundo, e quer-se perscrutar a maneira por que eles têm conservado, na complexa vida deste século, a limpidez de espírito da antiguidade. Conhecem o lied? É um gênero de poesia vaporosa e ingênua, que se encontra por toda a Alemanha, incorporado na vida do povo. Através da sua forma fantasiada, das suas divagações nebulosas, o lied conserva uma lado real, que se prende a todos os atos do viver alemão e vai maravilhosamente a essa língua de todos os ritmos, hábil para todas as versificações, e cujo efeito acústico Philarete Chasles compara a um ressoar de órgão com tubos de cobre, em que as notas solenes se vão perdendo através do espaço. Os velhos lied são anônimos. Os modernos, que se inspiram na tradição, tarde ou cedo, perderão a rubrica, ao entrarem no reportório da massa. O lied foi muito tempo exclusivo do povo, que traduzia por ele as tendências e emoções da sua alma, o amor, as harmonias da boda, o nascimento do primeiro filho, o entusiasmo da caça, o poder da superstição, a cólera, o ciúme, o luto... Associava no espírito emoções dispersas, insuflando vida nas lembranças arredadas da memória. É o canto familiar da Alemanha; e trazendo refrigério às existências votadas aos rudes misteres, nenhum outro guarda como ele essa floração exótica de nacionalidade, que isenta por todo o sempre das frias versões estrangeiras. Porque se não trata bem da balada escandinava, com olhos cor de violeta, alvorecida ao luar, na brancura imaculada dos fiordes; nem há nesta poesia a petulância da canção berangeriana, ou o sarcasmo do epigrama latino, à André Chenier. É um canto bonacheirão como a fábula, com o ceticismo ligeiro, a graça loira e feminina, a sensibilidade nova e virginal, pro cedendo um pouco à maneira das comédias poéticas de Shakespeare, e deixando dormir no fundo um vago bom humor de burgomestre apaixonado por tulipas, típico no país de Henri Heine, como esse outro humorismo de Yedo e Nagasaki, que até nas esculturas dos templos abre o seu riso, entre infantilmente surpreso e velhaco. Para estas inefáveis serenadas, os maiores compositores da Alemanha têm feito música, Dessauer, Schubert, Schumann: e é um prazer ouvi-las já modificadas ao dizer plebeu, nos trabalhos do campo, nas vindimas do Reno, no interior das cabanas, ao serão, à saída da escola, e pelas ruas, nos templos e nas quermesses. Henri Blaze, pensando numa renovação de moldes para a poesia lírica francesa, recomendava aclimar-se o lied para cá do Reno. Quanto a nós, João de Deus atingiu admiravelmente este gênero de composição, nas Loas à Virgem e no Era Já Noite Cerrada, gênero que Campoamor sabe vestir com uma graciosa simplicidade. Mas como generalizar hoje uma tal poesia, quando o espírito não tem mais o perfume da adolescência, e a frescura das idades primaveris?
O lirismo profundo morre pois falto de condições sociais que o impulsionem e fecundem. Pode guardar-se donde aonde, por um prodígio de cultura, no coração de algum destes sublimes eremitas, estacionados à margem do tumulto moderno, assim como, num frígido país, a planta tórrida consegue medrar, por excessivos cuidados, na calafetada estufa que lhe há de ser cárcere por toda a vida. Compreende-se de feito que um homem passeado pela vida artificial dos cafés, dos teatros, das redações, do parlamento, das salas e das capitais esteja autenticamente incapaz de se transfigurar, por exemplo, na Adoração que abre as Folhas Soltas do nosso adorável João. Quando muito, terá ele mais lapidada a estrofe, desesperando, à força de correção, os que venham para atingi-lo ou imitá-lo. No fundo, porém, o sentimento andará dinamizado ou artificialmente posto em jogo; e em vez do eterno amor dominativo e panteísta, a obra revelar-nos-á um ceticismo elegante, uma índole romanesca, incapaz de ser dominada pela paixão, um lírico da decadência, melhor: um parnasiano. Luís Guimarães é um parnasiano.
Parnasiano, disse eu, como Armand Silvestre e como Theodoro de Bainville, no esforço de renascença poética do Portugal contemporâneo. Desde que a função crítica da análise se tornou início e fundamento de toda a educação atual, o nosso tempo destronou a inspiração pela reflexão e substituiu os profetas pelos sábios. Os mesmos poetas começaram de escrever em prosa os seus poemas, primeiro que os fossem instrumentando nas cadências musicais do metro; e forraram duma utopia ou duma ideia filosófica todos os assuntos que se propuseram vestir na púrpura dos ritmos poéticos. Ides supor que uma arte assim crucificada sobre a reflexão não tenha podido ser fecunda em criações de grande fôlego — senão comece de estiolar-se em bastardias pálidas, de cujas ramificações provenham livros inexpressivos, doentios, impertinentes, histerizados num bizantismo de requinte, e de todo o ponto exangues porque lhes falte a paixão. No romance, o À Rebours e a Manette Salomon. Em poesia, as Nevroses e os Soirs Moroses. Seja. Entanto, uma tal arte fotografa a alma atual. Primeiro, é adorável como entidade: tem a sutileza hipócrita, a afetação elegante, uma esplêndida toilette: e mente bem, e é delicioso, hão de confessar, ser-se iludido por uma criaturinha daquela provocadora distinção. Depois, tudo nela vem pautado e rescendendo a mise-en-scène, o menor gesto que ela esboce, a mais ligeira palavra que ela diga, o amor, o ódio, a nostalgia, o ciúme... Não procurem todavia forçar-lhe o limite de sinceridade para que foi feita. Um passo além, desmanchar-lhe-ia a caracterização de musa olímpica: e veríamos por baixo a grizette fazendo pied-de-nez à galeria.
Se eu quisesse agora inferir do homem físico uma constituição psicológica que viesse explicar-me a obra do artista, tracejaria de Guimarães a longa biografia de esforços, viagens e empreendimentos que o trouxeram coroado príncipe, volvidos anos, ao doce país polar da mais aristocrática das artes, a poesia. A lei de Taine, tão nitidamente científica, pela qual se estabelece a mútua dependência entre uma dada literatura e uma dada sociedade, dissecar-me-ia esta entidade de escritor que irrigaram as influências fatais da raça, do meio e do momento.
É um americano, móvel de fisionomia e de caráter, precipitado, pressentido, ardente, e incapaz de concentrar-se num assunto por mais de algumas horas. Daí talvez a sua predileção pelo soneto. A viveza estranha da sua máscara estereotipa e reflete a impressionativa feminilidade do seu talento. Tem, na beleza física dum tribuno, os olhos terríveis dum domador de feras: e como as vidraças duma galeria de palácio, deixando transudar iluminadas, a magnificência orgíaca das salas, músicas de orquestra, e centenares de pares remoinhando em cotillons, assim direis que as pupilas dele, cintilando entre as íris de fibrilhas frenéticas, nos fazem assistir ao carnaval furioso da sua imaginação de sobre-excitado.
Os adocicados de origem que na pronúncia tem sabido guardar este homem, por um orgulho talvez de patriota, e malgrado o afastamento da pátria, longos anos, dão-lhe à conversa essa ternura melíflua e põem no ouvido essa bizarra sensualidade, que fizeram do brasileiro falado um dialeto do português, e contra cuja fixação definitiva na língua a literatura escrita todos os dias protesta, na sua teimosia de ainda insinuar a velha preponderância portuguesa, na constituição da jovem nacionalidade[3].
Guimarães sabe a pitoresca impressão que produz falando assim. Aquela soutache poética que a boca emite articulando os beiços em buraco de flauta, e nos plurais sifla os ss como uma chuva de orvalho caída de néctares de fúcsias, sobre as divinas mãos de uma mulher: aquelas construções gramaticais, onde o pronome precede o verbo, como em Me disse, Me adora... e em que os finais das palavras se retraem pela omissão dos sufixos característicos, como em sinhá, cantá (cantar)... — alvo da troça, aquela soutache, na pronúncia dum grosseiro colono repatriado — na língua dum fino artista e na palestra duma rapariga de salão, ela quer dizer uma condensação de graça fonética — introduz modulações, veludosidades, carícias, que exornam de um requinte novo, duma incrustação, duma rocaille, a nossa velha língua mãe, e por muito tempo deixam na orelha a difusão da mais voluptuosa sinfonia.
Uma tal linguagem parece feita para ser falada em cortes de amor: há nela preguiças, começos de ais, frou-frous de roupas, titilações... Cada mestiçagem lhe insinua uma sutil volúpia, uma angústia nova e divina: e sentem-se balbuciar na sua trama as virgindades duma raça que desperta ainda, sem passado, como as crianças, monossilabando reminiscências de sonhos heroicos e translúcidos. Agora junte-se a esta feição da língua a excelsa glória da paisagem, que a luz alaga, e a caprichosa natureza sabe vestir em formas fantasiosas, árvores, montes, baías, catadupas... Lá, onde a calma aperta, e cantam as aves mais extraordinárias da terra, e se ouvem as núpcias da seiva, caule a caule, na misteriosa alcova das florestas, o espírito, naturalmente exaltado à contemplação, deriva por seu turno na cheia sensual desses titânicos e cósmicos amores. Filho de colono, o brasileiro guarda na alma a indefinida nostalgia que vira bruxulear nos olhos dos pais. A mesma criação opulenta que o cerca, o humilha e acabrunha: entanto, as paixões dela propagam-se-lhe ao sangue em efervescências insofridas, e um gulf-stream de magnéticos amplexos o arrasta no vortilhão das monstruosas e sagradas gestações da natureza. Assim, o poeta é lá um produto do clima e do solo, como os frutos, como as flores. Nem quase cultivá-lo é necessário.
Em Luís Guimarães, está de ver, todas estas determinantes convergiam a impulsionar-lhe o talento. Em 1869, ao formar-se em Direito, na escola de Pernambuco, contava já na bagagem literária dois volumes de versos: Corimbos, composições soltas, e o poemeto Mont’Alverne. Estou a pensar que Mont’Alverne não arrojará o poeta para excessivas culminâncias artísticas. Entanto os Corimbos elucidam-nos à farta sobre as nativas qualidades da sua inspiração.
Ali pululam blandícias e ardores duma natureza essencialmente amorosa, a que a melancolia presta o seu colorido romântico. Ali bate pulso uma insofrida febre de ideais, e ânsias de paixão donde se vê golfando uma seiva inesgotável. Neste livro de lírico, em cujos ditirambos rebrilham, numa espécie de petulância, as indecisas graças da mocidade, edita-se a alma virgem de contatos, duma selvageria sincera e duma insaciável virulência amantética — alma sonora de americano, cheia de ímpetos, onde ao mesmo tempo tivessem deixado ressonância o gemer da araponga e o rugir do leão, o cântico e o grito: e entre ambos, toda a vastíssima gama das emoções intercalares.
Vejamos agora os seus livros de prosa, dessa época[4]. Eles confirmam as características que nos Corimbos apontei. De quase todos eu conheço páginas. A forma é fluida, abundante, irisada de ornatos, pouco refletida, evocativa porém, e fazendo lembrar pela contextura fácil Júlio Machado e Manoel Roussado, seus contemporâneos e amigos. As suas crônicas e fantasias literárias afiguram-se-me pequeninas obras de acaso, feitas numa aberta de mais sérios trabalhos, e brilhando apenas pela ironia benigna, e saltitante esmalte da adjetivação. Nos contos, a intriga decorre para assim dizer do humor ocasional do contista, no momento da concepção; tipos simples, situações de pura idealidade poética, diálogos onde o recorte literário predomina: e toda a paisagem de roda, não conseguindo fazer atmosfera intelectual à tensão dramática do assunto, que não existe, fica para assim dizer um motivo repetido em surdina, na orquestra do descritivo, e avulta no quadro como um pormenor decorativo simplesmente, poetizado, alindado, lembrando os tons lilases dum sanguíneo visto por trás dumas lunetas cor de azul. Entanto a nota amorosa, dominadora do caráter do artista, atinge aqui por vezes o arroubamento lírico, emprestando então à narrativa um tom de sinceridade que provoca o interesse. A minha conclusão é pois esta:
O isolamento na pátria, entre as ubérrimas maravilhas do solo e as visões interiores do seu espírito, tão finamente idealista, cedo ou tarde teriam arvorado Luís Guimarães num dos mais profundos poetas líricos do nosso tempo. Tudo leva a profetizar que assim fosse — aquela sua compleição idílica, o seu poder de evocação a distância, uma sensibilidade dolorosa e feminil, e a fantasia cálida extravasando de invenções. O homem do mundo veio atenuar porém estas primitivas tendências do doce arrulhador de doloras maviosas. Flutuações de viagens despolarizaram-lhe o espírito da singeleza nativa: convívios de cortes e museus, mil acasos enfim do dandismo diplomático lhe foram desviando a sinceridade para uma espécie de risonho ceticismo.
Em 1880 vamos encontrar Luís Guimarães na Embaixada de Roma. Roma era a última estação duma série de residências que o poeta realizara, junto de todos os centros de inteligência europeia, através de cujas maravilhas, pudera exercitar as suas faculdades de artista vibrante e progressivo.
Entre os Corimbos e os Sonetos e Rimas, de que a primeira edição viu luz em Roma (1880), aquelas viagens põem um interregno no furor de publicidade de que Luís Guimarães parecia acometido. Mas ao fim delas o americano está transfigurado num prodigioso cinzelador de melodias, destro, flexuoso, elegantíssimo; sabendo casar as mais raras graças nas mais fidalgas fantasias, e graduando a impressão com um tato de ator e gentil-homem a quem não convém desmanchar a linha impecável de artista. Especialmente Roma, com a sua grande área de monumentos, onde caem no chão, truncadas sob uma luz de atelier, as memórias de muitas civilizações triunfadoras: Roma antolhar-se-ia ao poeta como a última e recapituladora lição duma série de preleções sobre o belo ideal nas suas profusas revelações através da arte. Ela lhe deu ao verso, talvez, uma academia de melhor gosto, nada rígida, nada comum, e salvando-se pela nobreza desse chic de ocasião, que, passado de moda, invalida e torna efêmera obra dum grande número de escritores.
Vênus sem braços! Divinal grandeza!
Abençoada seja a mão calosa,
Que te arrancou à entranha criminosa
Da terra...
Ou como na “Borralheira”:
Meigos pés pequeninos, delicados
Como um duplo lilás, — se os beija-flores
Vos descobrissem entre as outras flores,
Que seria de vós, pés adorados!
Luís Guimarães ficará pois na poesia portuguesa como o Massenet do soneto, exasperado de perfeição plástica, e acusando no mordido da forma a paciência dum buril seguro do que pretende. O mistério de sedução da sua poesia está antes de tudo no modernismo que dela ressumbra, e na sua atualidade perante o público que a compulsa e lhe dá voga: público cético e blasé, que, tendo visto, baquear todas as sortes de cultos e ideais, lentamente foi perdendo a aptidão de isolar-se em transcendências de sentimento. Nem sempre, nos versos dele, a emoção resultará do sentimento afetivo acordado na alma pela ideia dramática do assunto, senão por uma convergência de melodias exóticas que a linguagem lhe empresta, já pela rima, já pela imagem, já pela estridorosa eufonia do adjetivo e do metro. É uma emoção que vai ao cérebro antes pelo ouvido do que pelo coração, e que eu de melhor grado agradeceria à música do que à literatura. Poucos livros deixam, como os Sonetos e Rimas, recompor com mais escrupulosa fidelidade a fisiologia artística do escritor, estudar sob que aspectos as coisas o ferem, depois ver como ele faceta e lapida a mais leve das suas impressões de aquarelista — águia ou albatroz por cima da vaga ululante, um fim de valsa fugindo pela janela entreaberta, silhouettes de cúpulas, escorços de paisagens, perfis de mulher, qualquer efeito ou qualquer tom — para as cristalizar depois no engaste dum soneto ou de meia dúzia de estrofes. Deliciosa maneira artística, onde eu descubro o que de mais puro tem a língua e a poesia de mais plástico; e onde, como num ciclorama vertiginoso, cintilam transparências de água entre maciços de folhagem, rumores de abelhas e trilos de aves, ziguezagues de caprichos, acaroados de ocaso, nudezes ebúrneas estátuas... todas as músicas enfim do universo que respira e canta, na plenitude do seu disforme ser. A perfeição calma do verso trai o homem que percorreu os receptáculos da grande arte mãe, beijou os nus sublimes de Sanzio e Vinci, e conhece de perto o diletantismo canalha das modernas capitais. E o verso, assimilando inconscientemente as pomas das deusas, as musculaturas dos efebos e dos heróis, transparências de marinhas cortadas de steamers, sorrisos de mulheres e reminiscências de efêmeros amores; o verso sai-lhe numa correção esvazada, numa largueza de estilo, lavrando em cada uma dessas pequeninas obras-primas um baixo relevo de Acrópole, fulgurante e divino. Na escultura de muitos dos sonetos do livro também sentirá o leitor a cada instante, inquieta, proeminente, a influência do bibelô na arte de escrever, que já surpreendera Paris nos primeiros romances dos Goncourts.
Depuradora do gosto, e dando ao espírito uma percepção mais luminosa, mais dolorosamente incisiva, da vida das coisas, aquela frequentação pelo bric-à-brac, das formas de arte, rebuscadas ou exóticas, desperta alfim na personalidade do escritor uma rara elegância sugestiva, e uma singular finura de concordância estética. Estas qualidades são inimigas da violência e proíbem no poeta a explosão dos sentimentos extremos: — aquelas grandes cóleras dramáticas de que o romantismo tirava efeitos para escravizar as plateias ávidas de calafrio. Mesmo, uma preocupação de serenidade aristocrática transluz em todos os pormenores da Lírica de Luís Guimarães. Na sua ironia, por exemplo, que ele atenuou até uma espécie de humor benévolo, serpenteando duma existência sem contratempos nem torturas. Na sua voluptuosidade, que é uma espécie de arrulho amoroso, mesmo apesar do seu temperamento escandecido. E aqui e além, notas críticas, intenções de malícia casta, finuras de desenho encantadoras — como nas manchas das porcelanas japonesas, família rose ou vert-celadon, que, sem nervuras salientes, abstraindo a linha quase, dão a ideia por massas, num efeito sutil de abstração acessível somente às retinas educadas. Este lírico, gasto pela poesia do coração, educou os olhos para a compensação de descrever, no dia em que já não pudesse amar. E neste ponto o parnasiano fica, com extraordinárias qualidades de paleta e cinzel — um refinado. Que talvez pudesse dizer, como o Charles Demailly dos Goncourt — je suis un homme pour qui le monde visible existe.
A
Cecília Guimarães
No dia de seus anos
Roma, 20 de março de 1880
Misticismo
A luz do teu sorriso
Meigo como o luar,
Sinto minha alma entrar
No azul do Paraíso;
E junto a Deus diviso
Bela a me contemplar,
Quem há de me amparar
No dia do Juízo:
Ó doce Formosura,
Pura! mil vezes pura!
Enquanto me sorris,
Minha alma delirante
Pensa na dor de Dante
E pensa em Beatriz.
PRIMEIRA PARTE
Nel mezzo del mio cor Madonna siede,
E qual è la mia vita ela sel vede.
— PETRARCA.
Quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.
— HORACIO. — OP. IV, III, 24.
[O Coração que Bate neste Peito]
O coração que bate neste peito
E que bate por ti unicamente,
O coração, outrora independente, Hoje humilde, cativo e satisfeito;
Quando eu cair, enfim, morto e desfeito,
Quando a hora soar lugubremente
Do repouso final, — tranquilo e crente
Irá sonhar no derradeiro leito.
E quando um dia fores comovida
Como visão que entre os sepulcros erra,
Visitar minha fúnebre guarida,
O coração, que toda em si te encerra,
Sentindo-te chegar, mulher querida,
Palpitará de amor dentro da terra.1
O Esquife
Rosa d’amor, rosa purpúrea e bela.
— GARRETT.
Como é ligeiro o esquife perfumado
Que conduz o teu corpo, ó flor mimosa!
Mal pousaste entre nós, alma saudosa,
Pouco adejaste, ó querubim nevado!
E vás descendo ao túmulo sagrado,
Igual à incauta e leve mariposa
Que sem sentir queimou a asa ansiosa
Do mundo vil no fogo profanado.
Mas eu, que acabo de te ver perdida
Nos abismos sem fim da Natureza,
Ó minha filha! ó terna flor caída.
Eu, que perdi contigo a fortaleza,
As ilusões, o gozo, a crença e a vida,
Ah! eu bem sei quanto esse esquife pesa!
Londres.
O Sono de um Anjo
Quando ela dorme como dorme a estrela
Nos vapores da tímida alvorada,
E a sua doce fronte extasiada
Mais perfeita que um lírio, e tão singela,
Tão serena, tão lúcida, tão bela
Como dos anjos a cabeça amada,
Repousa na cambraia perfumada,
Eu velo absorto o casto sono dela.
E rogo a Deus, enquanto a estrela brilha,
Deus que protege a planta e a flor obscura
E nos indica do futuro a trilha,
Deus, por quem toda a Criação se humilha,
Que tenha pena dessa criatura,
Desse botão de flor — que é minha filha.
Florença.
Fora da Barra
Adeus! Adeus! Nas cerrações perdida
Vejo-te apenas, Guanabara ativa...
— VARELLA. — AO RIO DE JANEIRO
Já vamos longe... Os morros benfazejos
Metem na bruma os cimos alterosos...
Ventos da tarde, ventos lacrimosos,
Vós sois da Pátria os derradeiros beijos!
As alvas plagas, os profundos brejos,
Ficam além, além! Adeus, gostosos
Tormentos do passado! Adeus, ó gozos!
Adeus, ó velhos e infantis desejos!
Na fugitiva luz do sol poente
Vai-se apagando — ao longe — tristemente
Do Corcovado a majestosa serra:
O mar parece todo um só gemido...
E eu mal sustenho o coração partido,
Oh terra de meus pais! Oh minha terra!
1873.
O Cruzeiro do Sul
Não vimos mais enfim que mar, e céu.
— OS LUSÍADAS.
Tudo sumiu-se na distância... Agora
Que o tombadilho escuro e sossegado,
Convida o amargo espírito exilado
A relembrar a vida, hora por hora:
Minha alma como a sombra gemedora
Das velhas lendas corre o iluminado
E vasto espaço, apenas animado
Pela vaga do mar alta e sonora;
Do firmamento esplêndido e imponente
Alguém me diz: “Tu voltarás um dia,
Ó coração! à tua pátria ausente!”
E elevo a fronte à abóbada sombria:
Era Deus, cujas vozes simplesmente
O Cruzeiro do Sul me repetia.
Visita à Casa Paterna
A minha Irmã Isabel.
Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo:
Entrei. Um Gênio carinhoso e amigo,
O fantasma talvez do amor materno,
Tomou-me as mãos, — olhou-me, grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.
Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha mãe... O pranto
Jorrou-me em ondas... Resistir quem há de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.
Rio– 1876.
A Esmola
Vás para o baile, é hora: as flutuantes
Gazes te envolvem como as névoas puras
Que os astros vestem nas azuis alturas...
Vás coberta de gaze e de brilhantes;
E, enquanto espalhas graças deslumbrantes,
Repleta de opulência e de venturas,
Há um milhar de pobres criaturas,
Que se estorcem — na noite — agonizantes:
Moças sem pão, crianças magras, nuas,
Cujo suplício fora aliviado,
Se quisesses das pálidas mãos tuas,
Num santo gesto, rápido e ignorado,
Deixar cair na lama dessas ruas
Um alfinete só do teu toucado.
A Morte da Águia
A bordo vinha uma águia. Era um presente
Que um potentado, — um certo rei do Oriente,
Mandava a outro: — um mimo soberano.
Era uma águia real. Entre a sombria
Grade da jaula o seu olhar luzia,
Profundo e triste como o olhar humano.
Aos balanços do barco ela curvava
Ao níveo colo a fronte que cismava...
E enquanto as ondas túrbidas gemiam
Ao som do vento — em lúgubres lamentos,
Ela pensava nos longínquos ventos
Que do Himalaia os píncaros varriam.
Fora uma infame e traiçoeira bala,
Que do régio fuzil negra vassala,
Invisível — uma asa lhe partira:
Cheia de luz, tranquila, majestosa,
Dobrando a fronte branca e poderosa,
Aos pés de um rei a águia real caíra.
Os bonzos vis, proféticos doutores,
Sondando-lhe a ferida e as cruas dores,
Que um venenoso bálsamo tentava
Apaziguar em vão, — diziam rindo:
“Não há no mundo um exemplar mais lindo:
Vale um império!” — E a águia agonizava.
Um dia, enfim, o animal valente
Resistindo aos martírios, — largamente
Respirou a amplidão. A asa possante
Abrir tentou de novo. Aberta estava
A jaula colossal que o esperava:
Forçoso era partir. Desde esse instante,
Muda, sombria, a águia pensativa,
Solene mártir, vítima cativa,
Terror dos vis, e símbolo dos bravos,
Pediu a morte a Deus, — pediu-a ansiosa,
Longe, porém, da corte vergonhosa
Desse covarde e baixo rei de escravos.
Pediu a morte a Deus, o cataclismo,
As convulsões elétricas do abismo,
As batalhas do ar! Morrer num grito
Vibrante, imenso, heroico, soberano,
E rolar sobre as ondas do Oceano,
Como um titão caído do infinito.
Morrer livre, cercada de vitórias,
Como suas asas — pavilhão de glórias –
Inundadas da luz que o sol espalha:
Ter o fundo do mar por catacumba,
As orações do vento que retumba,
E as ferventes espumas por mortalha.
Por isso, melancólica, tristonha,
Como um gigante mórbido que sonha,
Fitava, às vezes, o revolto Oceano
Com esse olhar nublado e delirante,
Com que saudava a César triunfante
O moribundo gladiador romano.
O comandante — urso do mar bondoso –
Disse um dia ao escravo planturoso,
Ao portador do imperial presente:
“Leve-a ao convés. Verá que esse desmaio
Basta para apagá-lo um brando raio
Do largo sol no rúbido oriente”.
Subiu então a jaula ao tombadilho:
Do nato dia o purpurino brilho
Salpicava de luz o céu nevado...
E a águia, elevando a pálpebra dormente,
Abriu as asas ao clarão nascente
Como as hastes de um leque iluminado.
O mar gemia, lôbrego e espumante,
Açoitando o navio; — além — distante,
Nas flamejantes bordas do horizonte,
As matutinas névoas que ondulavam,
Em suas várias curvas figuravam
Os largos flancos triunfais de um monte.
“Abra-lhe a porta da prisão” (ridente
O comandante disse): “Esta corrente
Para conter-lhe o voo é mais que forte:
Voar! pobre infeliz! causa piedade!
Dê-lhe um momento de ar e liberdade,
Único meio de a salvar da morte”.
Quando a porta se abriu, — como uma tromba,
Como o invencível furacão que arromba
Da tempestade as negras barricadas,
A águia lançou por terra o escravo pasmo,
E, desprendendo um grito de sarcasmo,
Moveu as asas soltas e espalmadas.
Pairou sobre o navio — imensa e bela –
Como uma branca, uma isolada vela
A demandar um livre e novo mundo;
Crescia o sol nas nuvens refulgentes,
E como um turbilhão de águias frementes,
Zunia o vento na amplidão, — profundo.
Ela lutou, em vão! Nova agonia
Sufocava-a. O escravo lhe estendia
Os miseráveis e covardes braços;
Nu o Oceano ao longe cintilava,
E a rainha do ar, em vão, buscava
Onde pousar os grandes membros lassos.
Sobre o barco pairou ainda, — e alçando,
Alçando mais os voos, e afogando
Na luz do sol a fronte alvinitente,
Ébria de espaço, ébria de liberdade,
Como um astro que cai da imensidade,
Afundou-se nas ondas de repente.
Temperamentos
Uma era loira, ingênua e vergonhosa;
A outra, ardente, lúbrica, morena:
Esta era a flor vermelha e voluptuosa,
Aquela um branco lírio, — uma açucena.
Liam. Cheguei-me como faz um velho,
Um velho e honesto professor de escola:
Vi que a morena lia o Evangelho,
E a loira lia o Assomoir de Zola.
Meu Pai
A Minhas Irmãs.
Cai a floresta, majestosa e triste,
Sob as foices do tempo; — os monumentos
Ruem do inverno aos pavorosos ventos:
Chegou a tua vez, meu Pai! caíste.
Mas como o odor que a natureza calma
Deixa no largo bosque desfolhado,
Dentro em meu peito, nu e amargurado,
Deixaste-me, ao partir, toda a tua alma!
Ah! nesta terra mortuária e crua,
Meu Pai! a vida é um fumo: esvai-se e some,
Só a memória como a luz flutua;
Poupe-me a morte que hoje te consome,
Dê-me o Senhor virtude igual à tua,
Que eu talvez seja digno do teu nome.
1875.
A Voz das árvores
Enquanto os meus olhares flutuavam,
Seguindo os voos da erradia mente,
Sob a odorosa cúpula fremente
Dos bosques — onde os ventos sussurravam,
Ouvi falar. As arvores falavam:
A secular mangueira fielmente
Repetia-me a rir o idílio ardente
Que dois noivos, à tarde, lhe contavam;
A palmeira narrava-me a inocência
De um brando e mútuo amor, — sonho que veste
Dos loiros anos a feliz demência;
Ouvi o cedro, — o coqueiral agreste,
Mas excedia a todas a eloquência
Duma que não falava: — era o cipreste.
Noite tropical
Desceu a calma noite irradiante
Sobre a floresta e os vales semeados:
Já ninguém ouve os cantos prolongados
Do negro escravo, estúpido e arquejante.
Dorme a fazenda: — apenas hesitante
A voz do cão, em uivos assustados,
Corta o silêncio, e vai nos descampados
Perder-se como um grito agonizante.
Rompe o luar, ensanguentado e informe,
Brotam fantasmas da savana nua...
E, de repente, um berro desconforme
Parte da mata em que o luar flutua,
E a onça, abrindo a rubra fauce enorme,
Geme na sombra, contemplando a lua.
1873.
Nostalgia
Pátria! berço d’amor que a alma embala
Enquanto a luz vital nos ilumina.
— JOÃO DE DEUS.
— Que tens? Cruenta dor, mágoas pungentes
Dobram-te a jovem fronte esperançosa;
Do Amor acaso a garra imperiosa
Turbou-te o sono? O que tens tu? Que sentes?
Vem! Eu possuo em minhas mãos clementes
O talismã da vida deleitosa:
Vem! Junto a mim, ó alma caprichosa,
Verás romper as manhas resplandecentes:
Dou-te a riqueza, a força, a alta vertigem
Que a eterna Glória no regaço encerra,
E apagarei dos males teus a origem.
— “Dai-me a vertigem da elevada serra,
Dai-me as riquezas da floresta virgem,
E — sete palmos só de minha terra”.
Londres — 1874.
Natal
— 23 de outubro de 1879 –
Ei-lo feliz, contente, purpurino,
Limpo de mágoas, nu de desenganos:
Ei-lo no berço, — velho de seis anos,
Sempre a rir, como um Cristo pequenino.
Vê como fala o seu olhar divino,
E a sua boca brilha! Os reis humanos
Não são mais fortes — crê — mais soberanos,
Que este mimoso e tímido menino:
Seu berço nada em lágrimas suaves,
Ao som da voz das rumorosas aves,
Dos turbulentos anjos da família:
E ele, a bater as palmas de alegria,
Nos abençoa: — é seu Natal, seu dia:
Hoje faz anos nosso Amor, Cecília.
A Noite de S. João
La streghe in frotte passano;
È la notte, Maria, di S. Giovanni
— PANZACCHI — ROMANZE E CANZONI.
Noite de S. João! Quantas legendas
Na terra espalhas! Noite imensa e bela!
Quereis senti-la bem e compreendê-la?
Ide aos campos do Sul, ide às fazendas.
Do céu nas brancas e orvalhadas rendas, —
Favorita de Deus — nua revela
A lua cheia... É sua noite aquela!
E das bruxas também — dizem as lendas.
Eu, livre pensador de grave siso,
Eu, que me ria dessas frioleiras,
Depois que vi, ó flor do Paraíso,
Brilhar à luz vermelha das fogueiras,
Teu divino semblante num sorriso,
Creio em feitiços, creio em feiticeiras.
Os Boêmios
Os boêmios vão cantando
Pelas estradas reais,
Enquanto o sol descambando,
Doira as altas catedrais.
Um deles, esfarrapado,
Meneia, aos sons da viola,
Outro, lívido e esfaimado,
Faz tinir a castanhola.
As mulheres e os meninos
Seguem na frente a bailar,
Ao som dos estranhos hinos
Dessa orquestra singular.
Desde a manhã, todo o bando
As ricas vilas explora,
E vai, cantando, cantando,
Enquanto a fome o devora.
Por vezes, uma criança
Põe-se a tremer e a cair,
Mas o pai grita-lhe: — dança!
Dança! — e ela dança a sorrir.
Cobertos do pó da estrada,
Seminus, magros, sedentos,
Lá vão, em turma agitada,
Os miseráveis, aos centos.
E rubro sol luminoso
Continua a desmaiar
Como um nababo amoroso,
Sobre a terra e sobre o mar.
Ó pobres aves sem ninho!
Pobres árabes sem tenda!
Que em vosso negro caminho
A morte não vos surpreenda!
Cantai! cantai, triste bando,
Vossa dorida canção!
Deixai que o mundo execrando
Vos negue o vintém de um pão!
Sois os poetas da estrada,
Que a eterna febre consome,
Não tendes cama doirada,
Ai não! nem sequer um nome!
Mas seguis esfarrapados,
Vossos destinos fatais,
Protegidos e amparados
Por secretos Ideais.
Quem sabe? Na atroz romagem,
Como celestes visões,
Vos guiam de Homero a Imagem,
E o Fantasma de Camões.
.............................................
Enquanto o sol descambando,
Doira as altas catedrais,
Os boêmios vão cantando
Pelas estradas reais...
Londres
Como um gigante suarento, — dorme
Nos pardos mantos duma névoa estranha,
A cidade opulenta em cuja entranha
Rasteja a fome como um verme enorme.
Dos lampiões à dúbia claridade,
Passam, repassam vultos cautelosos:
Este procura no mistério os gozos,
Procura aquele um pão, na realidade.
Contra o cais solitário o rio escuro
Geme convulso e espuma, — e novamente
Volta a gemer, de encontro ao velho muro;
Retine o oiro: — vela a Indústria ingente,
Cresce a miséria, e aumenta o vício impuro...
Ó milionária Londres indigente!
A Avó
Ao noturno clarão da lâmpada obscura,
A avó, terna, sorri, de pálpebras cerradas,
Enquanto pelo ar voam as gargalhadas
Duma rósea criança, ardente de ventura.
E ela, ao gentil rumor daquela travessura,
Cuida ouvir, como um eco, ao longe, outras risadas:
Mas o seu pensamento cai, de asas quebradas,
Sobre a cruz de uma negra e fria sepultura;
Sufocada de dor, — abaixa a fronte e chora...
O menino a tremer beija-a e, num gesto, a implora:
E a avó, ao deslizar do pranto que a conforta,
Prende nas magras mãos o risonho inocente,
E, como num espelho azul e transparente,
Vê nesse puro olhar sorrir-lhe a filha morta.
Soneto Romântico
Soam ao longe as trompas vencedoras;
Vibra o hallali na mata gloriosa:
Latem os cães, e a cavalgada airosa
Das elegantes, fortes caçadoras,
Cabelo ao ar, altivas, tentadoras,
Qual de Diana a escolta poderosa,
Persegue a fera, e açula jubilosa
As matilhas cruéis e vingadoras.
No entanto, a castelã, triste e isolada,
À sombra dos frondosos arvoredos,
Pálida, loira, casta e enamorada,
Passeia ouvindo uns matinais segredos,
E, como a Margarida da balada,
Desfolha um malmequer entre os seus dedos.
Hora de Amor
Reunimo-nos todos no terraço:
A fria lua sobre nós pairava;
Rescendendo a baunilha, — suspirava
A aragem, quente ainda do mormaço.
E Ela pousou o alabastrino braço
Nu sobre o mármor. Seu olhar brilhava
Como a opala ao luar, — e procurava
Os mudos olhos meus, de espaço a espaço.
Uma orquestra, invisível e saudosa,
Cuja harmonia os ecos repetiam,
Lançava à noite os ais de Cimarosa:
E, quando os mais a música aplaudiam,
Eu, ó madona minha silenciosa,
Ouvia o que os teus olhos me diziam.
O Jaguar
Rosna o fulvo jaguar, triste e dormente,
No seio da floresta: — a fera inteira
Dobra à velhice, e a névoa derradeira
Cobre-lhe a fauce lívida e impotente.
O imundo inseto, a mosca impertinente
Zumbe-lhe em torno; — a cobra traiçoeira
Fere-lhe a cauda inerte, e a aventureira
Formiga morde-o calma e indiferente.
Apenas quebra o sono mortuário
Do velho herói o grito, entre as folhagens,
Do cordeiro medroso e solitário;
Ou, através das tropicais aragens,
O tropel afastado, intenso e vário
Dum rebanho de búfalos selvagens.
Arte Poética
A Poesia és tu... Não crês? Pois olha:
O sorriso sutil, leve, discreto,
Que em tua boca úmida se esfolha,
Parece-me um Soneto.
Outras vezes, como uma carícia,
Roçam-te o lábio, ó flor de tentação,
A reticência aérea da malícia...
E as asas da Canção.
Quando suspiras, e esse olhar magoado
Segue no espaço a luz final do dia,
Eu cuido ouvir, num frêmito — a teu lado,
Pousar uma Elegia.
E quando alegre, forte, deslumbrante,
Nas grandes festas teu perfil serpeia,
És a Musa de Byron e de Dante,
És a rubra Epopeia.
Roma
Nil patrium, nisi nomen, habet romanus alumnus.
— PROPERCIO.
Eis o fantasma excelso e venerando
Da Cidade que a terra viu pasmada,
Como a barca de Cristo ameaçada,
Ir nas ondas dos séculos boiando.
Aqui outrora a Liberdade armada
Das vitórias do Gólgota baixando,
O cetro imperial despedaçando,
Deu a Roma o buril, a pena e a espada.
Tudo findou. A colossal Senhora
Dos monarcas da terra — dorme agora
Entre os seus capitais abandonados...
É mudo o Foro — a Glória empalidece,
E a própria voz do bronze que estremece,
Chora os mortos heróis, — dobra a finados.
Diva
Quando ela, trêmula e pura,
Como a estrela da alvorada,
Meiga, lânguida, enleada,
Sublime de formosura,
Faz desmaiar os fulgores
Dos bailes irradiantes,
Rainha dos diamantes,
Celeste flor entre as flores:
Tristonho e desconsolado,
Diz o velho surdamente:
— Como era belo o passado!
Febril, sequioso, ardente,
Brada meu lábio agitado:
— Oh! como é belo o presente!...
Rio– 1871.
Jesus
Astro de amor, baixado à terra um dia
Para aclarar as trevas com teu pranto:
Encarnação do beijo sacrossanto
Que Deus pousou na fronte de Maria;
Cedo pagou-te o mundo o que devia,
Pobre rei de Israel! bem cedo! — e enquanto
Uns te renegam, — outros o teu manto
Arrastam ébrios pelo chão da orgia.
Por entre as nossas vergonhosas cenas,
Essa divina Imagem que eu contemplo,
Provoca injúrias e desdéns apenas:
Ó belo, inútil e imortal Exemplo!
Hoje riem de ti as Madalenas,
E os vendilhões expulsam-te do templo.
Súplicas Maternas
A milionária exclama ansiosamente:
— Meu Deus! fazei deste menino airoso
O ser mais rico, esplêndido e formoso
Que haja criado a vossa mão potente.
A miserável diz timidamente:
— Ó meu Senhor! o filho desditoso
De minha entranha dolorosa e ardente,
Fazei humilde, pobre e generoso.
Saudade das Montanhas
Aqui em frente destes descampados,
À monótona voz dos lavradores,
Por que minha alma pende como as flores,
Ou como a planta murcha dos valados?
Descamba o sol, aquietam-se os rumores
Da charrua, da enxada e dos arados;
Os bois enormes pastam sossegados;
Despovoam-se o campo e os arredores...
Sinto gemer-me o coração ferido:
Que dor é esta que meu peito encerra?
Que dor formou-te, ó íntimo gemido?
É que nestas planícies nuas erra
O fantasma solene e enegrecido
Das montanhas azuis de minha terra.
1876.
O Farol
Corta o navio as águas encrespadas
Do mar convulso, tenebroso e imenso;
Das noites as asas, o sendal extenso
Cobrem do espaço as névoas agitadas;
Longe, bem longe — as cores desejadas
Do farol, entre o céu e o mar suspenso,
Rompem da noite o nevoeiro denso,
Guiando o barco às plagas afastadas.
Assim também seguro caminhando
Vai meu amor em meio dos escolhos,
Tal como o lenho as ondas recortando:
Que importa a dor, o frio, os crus abrolhos,
Se eu vejo sempre além vir despontando
A clara luz dos teus profundos olhos!
1872.
Idílio
Ao pé da cerca elevada,
Meu cavalo impaciente
Agita a crina orvalhada...
No entanto, amorosamente,
Eu e ela caminhando
Sobre a folha adormecida,
Vamos cismando, cismando,
Como Fausto e Margarida.
Do seu cabelo abundante
O vago e sentido aroma,
Igual ao cheiro hesitante
Dos lírios duma redoma,
Lentamente me fascina,
E eu beijo essa trança preta,
Qual pousam sobre a bonina
As asas da borboleta.
A noite, branca e macia,
Cai silenciosamente:
Mais claro que o claro dia,
Boia o luar no oriente.
Tudo nos causa quebrantos
E emoções vertiginosas,
A flor, os astros, os prantos
Das fontes misteriosas;
As lucíolas fulgentes
Na sombra azul do arvoredo,
E as mornas brisas plangentes
Que passam como um segredo.
Por vezes, a sua fronte
Sobre o meu peito descansa
Como a estrela no horizonte,
Ou como a vaga, em bonança.
A tremer... por quê? Ficamos
Estreitamente abraçados,
Na hora em que os curvos ramos
Dos largos bosques copados,
Vão, pouco a pouco, luzindo
Do dia ao primeiro encanto,
E as plantas movem sorrindo
O tenro caule... Entretanto
Ao pé da cerca elevada,
Meu cavalo impaciente
Escarva a grama orvalhada...
E a lua cai no poente.
As Estrelas
Boas amigas, imortais estrelas,
Eu vos comparo, ó níveas criaturas,
Ao ver-vos caminhar nessas alturas,
A um rebanho de lúcidas gazelas.
Bem se assemelha o vosso olhar ao delas,
Ninho de amor e ternas amarguras,
Mas sois mais puras que as gazelas puras,
Boas amigas, imortais estrelas!
Às vezes, levo as noites, fielmente,
A vos seguir aí nas nebulosas
Planícies como um cão triste e dormente...
Mas vós fugis de mim! — silenciosas
Mergulhais no Infinito, de repente,
Como um bando de letras luminosas.
O Danúbio Azul
— “Desçamos ao jardim: dê-me o seu braço,
— Ela me disse — Este calor me mata!”
E em sua espádua nua um véu de prata
Luzia: — era o calor, era o cansaço.
Seguimos a alameda conversando:
Que voz celeste! que inflexões que tinha!
Uma voz de contralto e de rainha,
Ora imponente, ora um murmúrio brando.
E a tíbia luz da aurora que esgarçava
Da morta noite o solitário velo,
Toda minha alma, trêmula escutava,
Cheia de um longo, — dum profundo anelo,
Aquela ardente voz que suspirava
Como o Danúbio Azul num violoncelo.
O Arsenal
Dorme o vasto arsenal. As balas apinhadas
Reluzem ao clarão de lâmpadas distantes;
Enrolados num grupo, — os pavilhões brilhantes
Erguem, rijas ao ar, as lanças afiadas.
Dormem, fartas de sangue, as triunfais espadas
Sobre os áureos broquéis, como um tropel de amantes:
Dos sombrios fuzis as pontas lancinantes
Repousam, uma a uma, — ao longo — enfileiradas.
Junto ao férreo portão — repleto, saciado,
Sobre a negra carreta — estende-se isolado
O cérbero da Lei, o vil canhão enorme:
E, ao soturno rumor do vendaval do norte,
Que penetra-lhe a fauce, o brônzeo cão da morte
Uiva, rosna, ameaça, — e novamente dorme.
Madrugada na Roça
Dentro da sombra matinal os campos
Riem-se ao fresco pranto da alvorada,
Sobre a planície verde e rociada
Voa o bando dos tardos pirilampos.
O arrieiro, tonto de preguiça,
Desperta apenas: — ao bulir das matas
Vêm misturar-se o eco das cascatas,
E os lentos dobres da primeira missa.
Sob o véu orvalhado os olhos dela
Riem fitando os meus: ao divisá-los,
Cuido que Deus perdeu mais de uma estrela.
Rincham pulando os nossos dois cavalos,
E, através da manhã cheirosa e bela,
Ouve-se o canto festival dos galos.
A Voz de Moema
“Ah Diogo cruel!” disse com mágoa,
E sem mais vista ser sorveu-se n’água
— DURÃO — CARAMURU.
Gemem as ondas mansamente; — a quilha
Do barco ondeia ao som da vaga clara;
Cai do farol a luz longínqua e rara,
E a lua cheia sobre as ondas brilha.
Do mar na ardente e luminosa trilha
Nem um batel por estas hora para:
Dorme a Baía, ao longe, — a altiva e cara
Joia dos deuses, de Colombo filha.
Tudo é silêncio e calma. O bardo, entanto,
Que tudo vê, e em tudo colhe o tema
Que amor produz no flácido quebranto,
Ouve pairar no ar sons dum poema...
Ai! é a voz, — a voz, rouca de pranto,
A triste voz de pálida Moema!
A Bordo.
Dum Polo a Outro
Vejo-te ao pé de mim, horas e horas,
Fito os olhos nos meus olhos: — vejo
Teu alvo rosto, e escuto o leve harpejo
De tuas breves frases sedutoras.
Ora me ris somente, ora demoras,
Toda coberta de sublime pejo,
E eu sinto, amiga, do teu casto beijo
Roçar-me a fronte as asas tentadoras.
À noite, enquanto as pardas mariposas
Voam-me em torno, — e as horas surdamente
Vibram profundas, longas e piedosas,
Vens visitar-me, tímida, inocente,
Coroada de lírios e de rosas...
E há quem diga que tu estás ausente!
Santiago do Chile — 1872.
Os Albatrozes
Fervem as vagas, os trovões reboam
Nas roxas nuvens com fragor insano:
E nobres, calmos sobre o irado oceano
Os albatrozes em rebanhos voam.
Os raios silvam retalhando a espuma,
Uivam os ventos trágicos do norte;
E as grandes aves, sem temer a morte,
Pousam nas ondas, — sacudindo a pluma.
Vendo-os pensei na cruciante lida:
Vi dos heróis a legião errante,
De gesto calmo e de estatura erguida.
Em cuja fronte excelsa e gotejante
Das salivas do mundo degradante
O gênio voa, desprezando a vida.
Mar Pacífico — 1872.
Dia de Finados
Por entre as largas filas silenciosas
Das sepulturas mal iluminadas,
Rugem as negras sedas odorosas,
Ao compasso de excêntricas risadas.
As grinaldas, de goivo entrelaçadas,
À frouxa luz das velas lacrimosas,
Rolam no pó dos túmulos, — lançadas
Da mesma sorte qual no palco as rosas.
Vão pela mão das nobres elegantes
As crianças risonhas, — cintilantes
De uma feroz e estúpida alegria:
Cruzam-se olhares de malícia, — enquanto
Os mortos sentem gotejar o pranto...
Que chora o orvalho quando expira o dia.
Os Escravos
Eu os lamento e amo: — do passado
Nas densas névoas vejo tristemente,
Como num sonho, — a multidão contente
Desses negros fiéis... Ah! desgraçado
De quem não teve outrora o desvelado
Escravo de seus pais, junto ao tremente
Berço em que o nato espírito inocente
Dorme feliz e dorme descansado.
Por isso, agora, ó velhos protetores,
Quando a vossa figura carcomida
Vem contemplar-me, em meio às minhas dores,
Eu me reporto à era estremecida
Dos amuos, das crenças e das flores...
E beijo os elos da passada vida.
Amar e Ser Amada
Si Satanás pudiese amar
dejara de ser malo.
— SANTA TERESA.
Aproximei-me, e ouvi o que diziam;
— “Sinto um cruel prazer, disse uma: quando
Vejo-o a meus pés — ridículo — chorando
Como um mendigo...!” E os lábios dela riam.
Da outra os meigos olhos se embebiam
No sol poente... A noite ia baixando...
E eu vi que duas lágrimas brilhando,
Por suas faces pálidas caíam.
Torna a primeira: — “Estúpida ventura A minha!
Odiar e ser amada! Choro
Por ver-me livre dessa criatura!
E tu?” — Em vão suplico, em vão o imploro:
— Sei que me odeia, e sou feliz! — “Loucura!”
— Sim! mil vezes feliz porque o adoro!
Metamorfose
Meu coração repleto de esplendores
Como as grutas fantásticas do Oriente,
Será digno de ti. Por ti somente
Foi que eu junquei meu coração de flores.
Por ti despi-o das passadas cores,
Por ti sequei a lágrima pungente
Que gotejava como o orvalho ardente,
Silenciosa — sobre as minhas dores.
Entra. Percorre estes vergéis risonhos,
Calca a sorrir a terra emudecida
Onde palpita o mundo dos meus sonhos.
Fica porém atenta e prevenida:
Hás de ouvir, muitas vezes, os medonhos
E surdos ais de uma ilusão perdida.
Paisagem
O dia frouxo e lânguido declina
Da Ave Maria às doces badaladas;
Em surdo enxame as auras perfumadas
Sobem do vale e descem da colina.
A juriti saudosa o colo inclina
Gemendo entre as paineiras afastadas;
E além nas pardas serras elevadas
Vê-se da lua a curva purpurina.
O rebanho e os pastores recortando
Os meandros da mata lentamente,
Voltam do pasto num tranquilo bando;
Suspira o rio tépido e plangente,
E pelo rio as vozes afinando,
As lavadeiras cantam tristemente.
Petrópolis.
Vênus de Milo
Vênus sem braços! Divinal grandeza!
Abençoada seja a mão calosa,
Que te arrancou à entranha criminosa
Da terra e deu-te a eterna Realeza!
Dir-se-ia, ó Deus! que a avara Natureza
Enterrando-a no seio misteriosa
Ocultava-a dos homens — invejosa
Desse prodígio enorme de beleza.
Não há flama no sol, flama tão bela
Como o raio daquele olhar gelado
Que aclara a Arte em meio da procela:
E o mundo inteiro prostra-se pasmado,
Roja-lhe aos pés marmóreos, — e vê nela
Um sorriso de Deus petrificado.
Mata Virgem
Eu perdi-me na mata imensa e tenebrosa...
O vento que a princípio era uma aragem pura,
Transformou-se de pronto, — e a brisa que murmura
Fez-se negro tufão de voz tempestuosa.
Treme o solo, e a floresta há pouco silenciosa,
Estorce-se a gemer numa cruel tortura;
O pássaro fugindo — em vão louco procura
Na convulsão da mata a companheira ansiosa.
Range o jequitibá: — os ninhos arrancados
Voam no turbilhão; — a cabiúna anseia,
Deslaçam-se os cipós dos troncos derrocados;
Muge o rouco trovão, toda a floresta arqueia,
E eu, à tremenda voz dos ecos espantados,
Tenho pena de mim como dum grão de areia.
O Bom Doutor
O bom doutor, o médico excelente
Diz ao tomar-lhe o pulso: — “Otimamente:
Vai tudo em mar de rosas”.
A mãe sorri e acerca-se do leito,
Ela sorri também, cruzando ao peito
As duas mãos formosas.
O velho sábio inclina a austera calva,
Espelho da ciência: “Ela está salva”
Repete junto à porta.
Mas de repente a mãe, correndo à cama,
Grita, recua, empalidece, chama...
A filha estava morta.
O Sol no Mar
As grossas ondas quebram num gemido
Gemido da alma quando está saudosa:
Uma expira após outra vagarosa
Com um leve, um frouxo, um tímido ruído.
Nas rubras bordas do horizonte unido
Ao mar — à vaga elétrica e amargosa —
Vai-se cavando a tumba luminosa
Do Sol, do herói, do deus nunca vencido.
Rubins, opalas, lírios e violetas
Rolam do seio augusto e imaculado
Do rei do espaço e Guia dos poetas...
E, como César mórbido e cansado,
O Sol, colhendo as fulgurantes setas,
Dorme na régia púrpura embrulhado.
A Borralheira
Meigos pés pequeninos, delicados
Como um duplo lilás, — se os beija-flores
Vos descobrissem entre as outras flores,
Que seria de vós, pés adorados!
Como dois gêmeos silfos animados
Vi-vos ontem pairar entre os fulgores
Do baile, ariscos, brancos, tentadores...
Mas — ai de mim! — como os mais pés calçados.
“Calçados como os mais! que desacato!
Disse eu — Vou já talhar-lhes um sapato
Leve, ideal, fantástico, secreto...”
Ei-lo. Resta saber, anjo faceiro,
Se acertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçai este soneto.
Miguel Ângelo e Moisés
A RODOLFO BERNADELLI
Escultor brasileiro
Quando arrancaste, ó lívido gigante,
Do frio bloco inerte e inanimado
Essa estátua que o mundo eletrizado
Compara às brônzeas criações do Dante;
Quando o velho profeta deslumbrante
Do teu gênio surgiu, ó Mestre ousado,
Imprimindo-lhe o punho desvairado,
“Fala!” bradaste extático e ofegante.
Há já três séculos que o imortal prodígio,
Obra de tuas mãos — resume a história
Dos teus triunfos e do teu prestígio;
O próprio tempo, Arcanjo da Vitória,
Não lhe deixa na pedra um só vestígio,
E ele não cessa de aclamar-te a glória.
Paulo e Virgínia
Fomos um dia alegres, estouvados,
Ao clarão matinal do sol nascente,
Colher as flores do vergel ridente
E as primeiras amoras dos cercados.
Risonhos, venturosos, namorados,
Cada qual mais feliz e mais contente,
Esquecemos a terra inteiramente:
Doidos de amor, de gozo embriagados.
Seus cabelos — enquanto ela corria,
Voavam, loiros como a luz, dispersos!
Eu a chamava e ela me fugia.
Por fim voltamos — em prazer imersos:
E das venturas todas desse dia...
Resta a saudade que inspirou meus versos.
O Filho
A vida dele era uma gargalhada,
A vida dela, um pranto. Ela chorava
Sobre o rude trabalho que a matava,
Ele ria na tasca enfumaçada.
Jamais nos lábios dela a asa doirada
De um sorriso passou; — jamais na cava
E horrenda face dele resvalava
Sequer de um pranto a pérola nevada.
Mas Deus, que deu à entranha de Maria
O redentor dos homens, Deus lhe fez
Uma esmola: — Deus fê-los pais um dia:
E ambos, beijando ao filho os níveos pés,
Pela primeira vez ela sorria,
E ele chorou — pela primeira vez.
A Caravana
Da agreste lira aos matinais harpejos
Foi caminhando, ó bela soberana,
A esperançosa e infinda caravana
Das minhas ilusões e dos meus beijos;
Teus largos olhos, donde a luz emana,
Eram miragens de ideais desejos;
E os lábios teus — oásis benfazejos
Cujo fulgor atrai, promete e engana.
E, após jornadas cruas e penosas,
As ilusões famintas, sequiosas,
Do teu falsário coração já perto,
Sucumbiram, ó pérfida tirana,
Como no Saara a exausta caravana
Que pro cura uma fonte e acha o deserto.
1871.
Idade Média
No seu terraço a pálida rainha
Aos clarões melancólicos do dia
Que transmontava — olhava os céus e ria
Seguindo o voo azul de uma andorinha.
E o rei lhe disse: — Por que ris sozinha?
Quero saber a causa da alegria
Que te ilumina a palidez sombria:
Em que pensas, ó triste escrava minha?
E sempre a rir como a orvalhada rosa
Quando desponta a aurora luminosa,
Responde ao rei a pálida rainha:
— Penso que um dia nos azuis espaços,
Livre afinal do mundo e dos teus braços,
Minha alma voará como a andorinha.
Cantiga para Adormecer
A SANTINHA SOBRAL.
Dorme! No céu os anjinhos
Já dormem também agora,
E na terra os passarinhos
Dentro do musgo nos ninhos,
Enquanto não rompe a aurora.
Dorme! A turba imaculada
Dos sonhos que a infância cria,
Cerca-te a cama nevada
Por Maria abençoada,
Pois que te chamas Maria.
Dorme! É tarde: a Lua algente
No meio do céu caminha...
Dorme teu sono inocente,
Enquanto nós ternamente
Velamos por ti, Santinha.
Paris
Fluctuat nec mergitur
— DIVISA DA CIDADE DE PARIS
Ei-la! A Cidade esplêndida e famosa,
A Princesa da Gália, — o triunfante
Empório do Universo! Avante! Avante,
Ó alma deslumbrada e curiosa:
Entra na multidão lesta e ruidosa,
Que inunda as ruas como um mar brilhante;
Mergulha as asas neste sol radiante:
Canta! respira! sonha! vive e goza!...
Paris! Paris! Nenhum poder na terra
Apagará as cores festejadas
Dessa bandeira que o futuro encerra:
Que importa a inveja e a ira congregadas!
Tu ressuscitas — a voar — da guerra
Como a fênix das cinzas calcinadas!...
A Alcova
Através das cambraias rescendentes
E sobre o azul papel cheio de lírios,
Vê-se do Cristo os olhos inocentes
E a cabeça, crivada de martírios;
Murcham num jarro de ideal opala
As rosas do Japão e as margaridas;
Pairam no ambiente as auras adormidas
Que a asa dos silfos pela noite exala...
Sobre o róseo tapete ao pé do leito,
Vê-se uma fita; — além vê-se a botina,
Uma botina, cujo molde estreito
Diz que é do céu o pé dessa menina.
E o travesseiro, então? E os castos folhos
Desse lençol em que ela sonha e goza,
Quando do sono a garra carinhosa
Cerre a cortina dos seus negros olhos?
E é tal o encanto desse mago ambiente,
E tão profundo esse divino encanto,
Que a alma, ao senti-lo, — ao mesmo tempo sente
Ondas e ondas de sorriso e pranto.
E como os crentes que da falta isentos
Libam as auras de uma vida nova,
Quem atravessa a porta dessa alcova,
Santa morada de alvos pensamentos;
Quem vê do Cristo a face macilenta,
A cruz ebúrnea, os cravos sacrossantos,
Nos olhos baços os gelados prantos,
Na roxa boca a pérola sangrenta;
Pensa no dia do final Juízo,
De crenças rico, de delícias farto,
E não sabe se aquela alcova é um quarto,
Ou se esse quarto é já o Paraíso.
Ódio
Esta criança tímida e medrosa,
Obra prima do gozo e da ventura,
Esta criança cuja boca pura
Exala aromas como o cravo e a rosa;
Esta inocente e meiga criatura.
Esta menina loira e radiosa,
Eu a detesto e odeio! É tão formosa
Que me faz mal a sua formosura:
Pois vêm-me à ideia as noites delirantes
Em que nos braços de outro palpitantes
Geraste a casta formosura dela:
Vejo-te o seio louco de desejos,
E parece-me até ouvir os beijos
Dados, cruel! para a fazer tão bela!
1870.
Ernesto
A minha Irmã Luíza.
Foste feliz, Ernesto! Deus piedoso
Arrancou-te do mundo aos revoltosos,
Torpes, pungentes, insensatos gozos
Para dar-te do céu o eterno gozo.
Eras a folha exposta ao vento iroso
Que gera a dor e forma os desditosos:
Por isso Deus teus dias melindrosos
Guardou nas sombras do final repouso.
Dorme e sonha, criança! A eterna Morte
Mitigue e embale o teu sonhar modesto
Longe da humana e pérfida coorte.
Ah! eu, que as loucas ambições detesto,
Não fui digno de ter a mesma sorte:
Descansa em paz; — foste feliz, Ernesto.
1872.
Nhanhã
Um dia apresentaram-me. Ela lia
Num canto do salão.
Deixou cair aos pés o livro, — e ria
Estendendo-me a mão.
Mão de princesa, fina, delicada,
De tão macio alvor
Qual se a talhara alguma boa fada
No cálix de uma flor.
Era no campo. As auras forasteiras
Suspiravam no ar,
Frescas do grato odor das laranjeiras,
Dos raios de luar.
Surda uma voz ao longe ressoava
Em doloridos ais...
Perguntei quem cantava. — Oh! uma escrava!
Disse ela. E nada mais.
Falou-me então das valsas delirantes
De Strauss e do furor
Dos novos cotillons. Disse-me: — Dantes
Valsava-se melhor.
E a voz da escrava como um ai de morte
Adejava ao luar...
— “Li, há dois dias, num jornal da Corte
Que a Patti vai chegar:
Será verdade? Ah! quem me dera! A moda
Renascerá enfim!”
E ela, a bater as mãos, ria-se toda
Olhando para mim.
Contemplei melancólico o semblante
Dessa virgem feliz:
Era mais alva que ao luar errante
As pálidas willis;
Era tão doce como a Fantasia
Dum bardo sonhador:
Lamartine colhera uma Harmonia
Nos lábios dessa flor.
E, enquanto o seu olhar negro brilhava,
Como a onda ao luar,
E a suspirosa aragem derramava
O aroma do pomar;
Enquanto aquela boca fulgurante
Mais pura que os cristais,
Repetia-me a crônica elegante
Dos últimos jornais;
A voz da escrava — trêmula, queixosa
Expirou na amplidão,
Longa como uma nênia dolorosa,
Triste como a paixão.
A Bordo
À noite a bordo quando tudo dorme
Aos rumores do hélice plangente,
Quando o homem do leme unicamente
E os faróis vão guiando o barco enorme,
Eu subo ao tombadilho... À noite pura
Entrego a fronte: — às nuvens luminosas
Conto as minhas saudades dolorosas;
E é para mim uma ideal ventura
Curvar-me sobre o abismo fumegante,
Rico de maravilhas ignoradas,
Vê-lo a meus pés rugir como um gigante,
Sentir do vento as asas espalmadas,
E beber como um néctar delirante
A embriaguez das ondas estreladas.
A Vestal
A uma Mulher.
Ias vivendo alegre e descuidosa,
Ó virgem alma! — Um dia aos teus ouvidos
Passar sentiste os mágicos ruídos
Que a voz do beijo espalha vitoriosa.
Essa harmonia ardente e saborosa
Perturbou como um vinho os teus sentidos...
Viste romper uns sóis desconhecidos,
Pobre Vestal! e a fronte ergueste ansiosa.
Vibrou enfim a desejada hora,
Hora do amor cruel e fugitiva,
Em que dobrando a fronte, livre outrora,
Triste, abatida, em lágrimas, cativa,
Tu sofres a delícia aterradora
De estares sepultada e estares viva.
A Bela
Disse o nababo amoroso:
— “Queres-me a mim por esposo?
Queres ouro? queres ouro?
Ei-lo a teus pés, e eu te adoro!
Ó bela! bela entre as belas!
Tu, a melhor das estrelas,
A mais pura das mulheres,
O que desejas, que queres?
Eu te darei do Levante
Os rubins, o diamante,
O coral que vai surgindo”.
Disse o Poeta sorrindo:
— Eu te dou meu coração!
E a bela estendeu-lhe a mão.
Credo
— “Meus amigos! Eu creio em Deus e no destino
Que do berço nos guia ao derradeiro leito...!
(Vozes: — Basta! O orador é suspeito! é suspeito!)
— Fora o velho ideal! (grita um loiro menino).
— “Eu creio, amigos meus, nesse poder divino...
(Vozes: — Fora o jogral!)... Nesse poder eleito
Eterno como o mar, calmo como o Direito...”
(Vozes: — Não crês também no Baco purpurino?)
— “Eu creio no porvir (Ouçamos!) que há de um dia
Como um rio de luz... (Champagne e Malvasia!
Bebamos o porvir! — Todos a rir beberam).
— “... Como um rio de luz iluminar o abismo”.
(Gritos: Fora o truão! fora o torpe lirismo!)
— “Creio também nas mães”. (Todos emudeceram).
O Piano
Febril, nervosa, exausta, ela cosia
Ferindo os dedos no trabalho insano;
Tinha um só desejo: era um piano:
Por isso a pobre nem sequer dormia.
Ganhou chorando a insólita quantia,
Depois de dias longos como um ano,
Que lhe exigiu a usura de um tirano
Judeu que nessas ilusões não cria.
Quando afinal a escura água-furtada
Veio adornar o mimo cobiçado,
Como a rosa num túmulo plantada,
Com o seio ardente, o rosto desmaiado,
Ela pousou-lhe a mão enregelada
E morreu a sorrir sobre o teclado.
A Noiva
Eu não senti essa cruel vertigem
Que abrasa o sangue ante a mulher amada,
Senti cobrir-me o albor da madrugada
Quando me olhaste e me sorriste, ó virgem!
Eu não senti a tentação que encanta
E faz crescer o rol dos pecadores,
Senti minha alma se alastrar de flores
Quando a teus pés me permitiste, ó santa!
E soube enfim quanto se exulta e goza,
E como Deus enroupa uma alma nua,
Ó prometida e desejada esposa,
Quando entre os véus em que o amor flutua,
Tu me disseste cândida, medrosa,
Toda banhada de rubor: “sou tua”.
No Álbum de Stanislao D’Atri,
Artista romano.
Dessa dor saborosa que um poeta
Chamou “doce pungir de acerbo espinho”,
Dessa lembrança de um perdido ninho,
Travo de mel e carinhosa seta;
Dessa dor singular — dupla e secreta:
Macia às vezes como o fresco linho,
Outras vezes terrível como o vinho,
— Áspide oculto em cálix de violeta;
Dessa febre cruel — ardente e fria –
Que envelhece num dia a mocidade
Quando a não mata antes do fim do dia;
Desse misto de horror e suavidade,
Dessa doença atroz, meiga, sombria,
Deus te preserve! Chama-se — saudade.
Revelação
Verum dispeream, nisi amo.
CATULLO — LESBIA.
Queres saber por que te amei e quando
Começou este amor? — Lembras-te ainda
Daquela tarde vaporosa e linda?...
Ia o sol nas montanhas resvalando.
E, enquanto o céu de púrpura raiado,
Como as asas de um pálio nos cobria,
Enquanto o teu olhar calmo Luzia
E me cercava de um fulgor sagrado;
Alguém turbou o virginal sossego
A delícia melhor de nossa vida:
Era uma multidão baixa e perdida
Rindo e ultrajando as nobres cãs de um cego.
O miserável quase moribundo
Faminto, roto, frio e macilento,
Abria as magras mãos nesse momento,
Pedindo um pão, um negro pão ao mundo.
Tu, como os Anjos que o Senhor envia
Às desgraçadas vítimas da fome,
Tu, ó querida, cujo belo nome
Soa melhor que o nome de Maria,
Atravessaste a multidão pasmada
E dessa mão perfeita e carinhosa,
Como o rocio que alimenta a rosa,
Eu vi cair... Ó alma enamorada,
Não me perguntes mais se te amo e quando
Começou este amor... Lembra-te ainda
Daquela tarde vaporosa e linda:
Ia o sol nas montanhas resvalando.
1872.
Frente a Frente
Encontraram-se um dia frente a frente
E recuaram. Suas mãos nevadas
Brandiam duas límpidas espadas,
E o seu olhar fulgia heroicamente.
Disse a primeira, rápida, tremente,
Com o lábio em fogo e as faces abrasadas:
“Quem és? Por que me segues as pisadas?”
— E tu? volveu a outra lentamente.
“Eu? Sou a hidra que jamais descansa,
O rubro facho que a discórdia atiça,
O horror do velho, o assomo da criança;
Ninguém se atreve a me afrontar na liça:
Olha-me bem! eu chamo-me a Vingança!”
— Treme de mim! eu chamo-me a Justiça!
As Vozes da Noite
A A. Carlos Gomes
A noite ia passando, ó Carlos, — luminosa
Como os dias azuis dos trópicos candentes;
Uma orquestra ideal — das nuvens transparentes
Caía sobre o mar — ampla e voluptuosa.
E eu pensava em teu gênio, ó alma fulgurosa,
Ó mestre! E quando ao longe as ondas reluzentes
Se enroscavam cantando e iam quebrar frementes,
Parecia-me ouvir o teu SALVATOR ROSA.
E a Noite ia passando... A lua apaixonada,
Apaixonada como o olhar do GUARANI,
Afastou a sorrir a nuvem estrelada...
E nesse instante ouvi — distintamente ouvi
Ecoar em minha alma, extática e inspirada,
A balada imortal da lânguida Ceci.
A Primeira Entrevista
Ela não tarda. Disse-me que vinha:
Mas quem sabe! Se acaso acontecesse
Qualquer cousa imprevista e não viesse!
Ó Deus do céu! que situação a minha!
E este relógio vil que não caminha!
E o tempo! — uma hora apenas e parece
Noite fechada já! Ah! se chovesse!...
Mas, não: alguém tocou à campainha,
Alguém subiu veloz a minha escada:
Ouço um rumor de seda machucada
E uns miudinhos, uns nervosos passos...
Duvido ainda! Espreito delirante:
Abro a tremer — e toda palpitante
Ela cai a sorrir entre os meus braços.
Versos de Stecchetti[5]
Estala-me a cabeça. O espectro ardente
Da ardente febre amargurar-me vem.
Estou sem forças, pálido, doente,
Mas quando penso em ti sinto-me bem.
Mas quando penso em ti cessam as dores
E as esperanças brotam como flores.
Quisera a morte para não sofrer,
Mas quando penso em ti quero viver.
História de um Cão
Contada ao autor.
— “Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos de um camarada
Na hora da partida. O cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim — mau grado seu — o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo
Olhava-o... O sol nas ondas se abismava...
Adeus! — me disse, — e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
“Trata-o bem. Verás como rasteiro
“Te indicará os mais sutis perigos;
“Adeus! E que este amigo verdadeiro
“Te console no mundo ermo de amigos”.
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A nua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.
Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoólogos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão esses senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes;
Gabava o steamer que o levou; — dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais — todas francesas;
Assombrava-se muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso de uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo,
Num post-scriptum do melhor cursivo
Recomendava “o pobre do Veludo”
Pedindo a Deus que “o conversasse vivo”.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e — creia que é verdade —
Vi comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, — e adormeceu contente
Farto de um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro:
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.
E respirei! — Graças a Deus! já posso
— Dizia eu — viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era, abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo
Como uma pedra — junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.
Zunia a asa fúnebre dos ventos,
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo, ele seguiu-me. Entanto
A tempestade em fúrias me arrancava
Dos frios ombros o sombrio manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Tomei um remo — e com furor remamos.
Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento:
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei a terra — entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão — profundo,
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas, ao despir dos ombros meus o manto,
Notei — oh grande dor! — haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: — eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo
Duas vidas tivera, — duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta!
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri, — abri. Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, — e docemente
Deixou cair da boca, que espumava,
A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, ó Deus? — Ajoelhado
Junto do cão, — estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto”.
Confiteor
Ao mar, aos astros, aos ventos
E à mais recatada flor,
Eu já contei meu amor
E os meus ocultos tormentos.
A humanidade indiscreta
Ouviu-o dos lábios meus;
Narrei-o aos anjos e a Deus
Com minha voz de poeta.
Amo! amo! amo! amo!
Por toda parte o proclamo,
Por todo o mundo o espalhei:
Mas junto d’Ela emudeço:
Coro, esfrio, empalideço...
Quero dizer-lho e não sei.
1872.
Veneza
Não és a mesma, ó flor de morbidezza,
Rainha do Adriático! Brilhante
Jordão de amor, onde Musset errante
Bebeu em ondas a lustral beleza.
Já não possuis, ó triunfal Veneza,
O teu sorriso — olímpico diamante,
Que se engastou do lord bardo amante
Na fronte heroica de imortal grandeza.
Tua escura laguna já não sente
Da antiga serenata o som plangente,
E os soluços de amor nos teus barcos
Exalava a patrícia voluptuosa...
Resta-te apenas a canção saudosa
Das gemedoras pombas de São Marcos.
O Enterro Civil
Vai — caminho do olvido — a turba lutuosa...
Sopra o vento do outono. As tochas vacilando
Pendidas para o chão, — consomem-se chorando
Como a ausente viúva, a mártir dolorosa.
No veludo do esquife a chama nebulosa
Roça, brilha e se esvai, e o coche caminhando
Conduz ao cemitério o espólio miserando
Daquele que viveu, e que afinal repousa.
Os amigos fiéis, em tom grave e pausado,
Relembrando do morto as ações, o passado,
Dizem alçando a voz: — “Foi um homem de bem,
Um livre pensador, um campeão valente,
Seja-lhe a terra leve e Deus onipotente
Dê-lhe um lugar no céu...” Grita um garoto: Amém!
O Coliseu
Enquanto a Noite, que a cismar ensina,
Caminhava na nuvem ondulosa,
— Sinistra, muda, torva, pavorosa —
Eu me perdi na Imperial Ruína.
Do firmamento o raio baço e escuro
Treme no pó do circo mortuário;
O Anfiteatro é negro e solitário,
Negro o canal e o condenado muro.
E eu, abaixando a fronte enevoada,
Desci ao antro, ao boqueirão do mundo
Onde a púrpura dos reis ficou rasgada.
E pareceu-me ouvir um ai profundo,
E ver rolar na treva apavorada
O fantasma do escravo moribundo.
O Derradeiro Olhar que na Agonia...
Le douleur de s’en souvenir.
— CATULLE MENDÈS.
O derradeiro olhar que na agonia
Me dirigiste, ó mãe, nunca me esquece!
E quando os olhos volvo ao céu, parece
Que o teu último olhar me aclara e guia.
Se os olhos fecho e a dor que me desola
Tento abrandar, aliviar procuro,
Vejo em minha alma o raio longo e puro
Do teu último olhar que me consola.
Bendita sejas, luz do meu deserto:
Olha-me sempre, mãe, da etérea altura,
Perto dos anjos e das glórias perto;
Olha-me sempre, amada criatura!
Como tal farol não errarei decerto
O caminho da tua sepultura.
1872.
Nera
I
Aos sinistros clarões de Roma que se abisma,
Nero tange feliz a lira e canta e cisma...
A Cidade convulsa é como um rubro oceano
Que rastejando lambe a púrpura ao tirano.
O tugúrio desaba, o monumento arde,
E alegre soa a voz do imperial covarde.
O Tibre espavorido encolhe as águas turvas
E foge como a serpe em rutilantes curvas.
O escravo moribundo ergue os braços trementes
Tentando espedaçar do pulso as vis correntes;
E, através desse horror, dessa infernal ruína
Suspira a mole voz do filho de Agripina.
II
Tranquila como o audaz e feminil tirano,
Ó Esfinge de carne, ó belo monstro humano,
Tu vês rojar-te aos pés o escravo que te implora,
Fria como um rochedo e bela como a Aurora:
O soluço da dor ecoa aos teus ouvidos
Melhor que de harpa eólia os matinais ruídos;
E, ao som da tua voz, indiferente e calma,
Lavra o fogo do amor que me ateaste na alma.
A um Rico que Passava...
Senhor, em do nome do céu
Um triste pai vos implora:
Por Deus, por Nossa Senhora,
Ouvi-me, olhai-me: sou eu.
Uma filhinha, uma aurora
— Que doce olhar que era o seu!
Nestes meus braços morreu,
Morreu-me, senhor, agora.
Vós, cujos filhos ridentes,
Dormem fartos e contentes
— Loiros tesouros de amor
Entre nuvens de escumilha,
— Para enterrar minha filha
Dai-me uma esmola, senhor.
As Duas Forças
Duas águias solenes, majestosas,
Voavam no infinito. Uma estendia
As fortes asas ao claro do dia;
Movia a outra as asas dolorosas.
Uma — a possante — a Júpiter subia,
Subia a outra às plantas caridosas
De Deus. E nas esferas luminosas
Uma a Deus, outra a Júpiter dizia:
— Júpiter! dai-me a guerra, a tempestade,
E de um só golpe eu vencerei por fim!
— “Dai-me, ó Senhor, a paz, a liberdade,
E Abel num beijo vencerá Caim”.
Abaixaram então da imensidade:
Uma pousou em França, — outra em Berlim.
SEGUNDA PARTE - OS POETAS MORTOS
Dignum laude virum Musa vetat mori.
— HORACIO. — OD., IV, VIII, 29.
... aqueles, que por obra valerosas
Se vão da lei da morte libertando.
— CAMÕES. — OS LUSÍADAS, CANTO PRIMEIRO.
La mort est le sacre du génie.
— BALZAC.
Gonçalves Dias
Descansa, ó lutador, que assaz lutaste!
GONÇALVES DIAS — CANTO INAUGURAL.
Dorme, Poeta. Ao som da voz brilhante
De teu vivo sepulcro, — ao som da forte
Onda do mar: — dorme afinal na morte,
Ó lutador vencido e triunfante!
Deus, ao te dar o âmago arquejante
Do mar, aos ventos lúgubres do norte —
Eternizou a tua augusta sorte
Pois fê-la como a onda eterna e errante.
Repousa enfim no pélago estrelado,
No teu vasto sepulcro iluminado,
Tu, que as glórias da vida conquistaste:
Embalado nas moles vagas cerúleas
Entre os rubros corais e as brancas pérolas,
Descansa, ó lutador, que assaz lutaste!
Casimiro de Abreu
Deus às tristezas o sorriso enlaça.
— CASIMIRO DE ABREU. — AS PRIMAVERAS.
Colhe o Senhor ao despontar do dia,
As madressilvas mal abotoadas,
E as pobres aves de asas emplumadas
Cede às cruentas garras da agonia.
Que desígnios cruéis o braço guia
Do Redentor? — as flores desfolhadas,
As crianças descalças e esfaimadas,
A ave sem ninho, a habitação vazia!
É que uma aurora gloriosa espera
Quem nesta vida tormentosa e escassa,
Como o terno cantor da Primavera,
Por entre cardos a sorrir perpassa:
Pois Deus as flores enlaçou à hera,
Deus às tristezas o sorriso enlaça.
Junqueira Freire
E vaga e vaga alígera e perdida
Pelas soidões do firmamento etéreo!
— J. FREIRE. — INSPIRAÇÕES DO CLAUSTRO.
Ei-lo por terra — o gênio consagrado,
O pensador do claustro! A larga fronte
Desceu à campa como além no monte
Desce do sol o globo inanimado.
Foi-lhe a existência nesse inglório mundo
Uma aflição em meio de agonias:
Foram-lhe noites os mais claros dias,
E viveu como vive um moribundo.
Cobre-lhe agora o seio o pó funéreo
Da sepultura. A lira emudecida
Já não acorda os ecos desta vida:
Que importa! A alma exulta no mistério,
E a vaga e vaga alígera e perdida
Pelas soidões do firmamento etéreo!
Álvares de Azevedo
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
— A. DE AZEVEDO. — LIRA DOS VINTE ANOS.
Quem dorme aqui ao pé das casuarinas,
Sob o cipreste verde e suspiroso,
Este que sonha no final repouso
Dentro da terra cheia de boninas;
— Réstia de sol nas névoas matutinas —
Fulgiu brilhante, aéreo, carinhoso,
E só durou o espaço radioso
Que dura o orvalho nas manhãs divinas.
Por entre as turbas falsas e descrentes
Ele espalhou a lenda incompreendida
Das liras santas e das harpas crentes...
Chorai, chorai, ó multidão descrida,
Quem entre as vossas ambições dementes
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
Castro Alves
E Deus para o poeta o céu desata Semeado de lágrimas de prata!...
— CASTRO ALVES. — ESPUMAS FLUTUANTES.
Baixaste à campa, sonhador, na hora,
Hora melhor da vida e da Poesia:
Mergulhaste na Noite eterna e fria,
Todo ensopado do orvalhar da aurora.
A Pátria, — a triste mãe que te deplora,
Já não sorri, ai não! como sorria:
E que futuro, amigo, prometia
Tua alma brava, esplêndida e sonora!
Dorme, porém, feliz e sossegado:
O mundo ainda é o mundo gangrenado,
E a dor que te matou também nos mata:
A morte, sim, é o sono imaculado:
E Deus para o poeta o céu desata
Semeado de lágrimas de prata!...
Varela
A noite, o orvalho, a viração e a calma.
— VARELA. — AS SELVAS.
Este era loiro como a luz coada
Da manhã pelas nuvens ondulantes:
Nos seus olhos azuis e fascinantes
Boiava sempre a lágrima ignorada.
Alma por Deus dos anjos exilada,
No mundo apenas rápidos instantes
Pousou — e abrindo as asas delirantes,
Tornou cantando à paternal morada.
Mal seu gentil e angélico instrumento
Ressoou entre nós. O firmamento
Chamava ansioso essa erradia alma;
E ela, fechando o cálix de repente,
Foi gozar, junto a Deus, eternamente,
A noite, o orvalho, a viração e a calma.
Agrário de Menezes
Morrer, sim, é o melhor. Que val’ o mundo?
— AGRÁRIO DE MENEZES. — CALABAR.
A horrenda deusa em cujo negro seio
Rolam da vida as flores despencadas,
Cedo chumbou-te as pálpebras amadas:
Bem cedo a Morte visitar-te veio.
Como brilhava o sol ao meio dia
Nos teus montes soberbos e vistosos!
E esses clarões de lua voluptuosos
No azul de tua esplêndida Bahia!
Tudo perdeste, e entanto, ó peregrino,
Neste sombrio báratro profundo
Desejam todos, crê! morrer num hino:
Que val’ o corpo? Um trapo vil e imundo:
A vida é a luta acerba com o destino,
Morrer, sim, é melhor. Que val’ o mundo?
Franco de Sá
De olhar lampejos mais vivos, Da lira canto melhor.
— FRANCO DE SÁ — O POETA.
Ele estreou nesta vida
Como os bardos do passado,
Cantando o ar estrelado,
De louros a fronte ungida.
A Fé — o escudo sagrado –
A Crença — a espada luzida —
Cobriam a fronte erguida Do
pensador inspirado.
Quando seus braços altivos
Na agonia e no estertor
Caíram frios, cativos,
Desprendia o sonhador
Do olhar lampejos mais vivos Da lira canto melhor.
Laurindo Rabelo
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro — impossível.
— L. RABELO — DOIS IMPOSSÍVEIS.
Quando por entre os homens divisamos
Os profetas da Santa Inteligência,
Fortes em sua mística excelência
Como do cedro os gigantescos ramos;
Em nossa mente e coração pensamos
Que tais prodígios, que uma tal potência
Jamais de Deus a paternal clemência
Na lousa arrojará, e acreditamos
Ver o Poeta, envolto em luz e neve,
Roçar das campas o degrau terrível
Sem a Morte o ferir sequer de leve:
Mas, oh terror! oh desengano horrível!
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro — impossível.
Bruno Seabra
Dormi — vim despertar na sepultura!
— BRUNO SEABRA — FLORES E FRUTOS.
A vida é um sono mau e tormentoso
Em cujas sombras a ilusão palpita,
E — como um sonho — velozmente agita
As brancas asas — um mentido Gozo.
Dormir, dormir — embora! Um hino etéreo
Que o Poeta a sorrir traduz e escuta,
Nos diz que breve acabará a luta,
O combate da ideia, o atroz mistério.
Bem o pensaste, ó alma audaz e pura!
E quando a negra Morte enregelada
Abriu-te as portas da divina altura,
Repetiste, feliz e extasiada,
Das algemas da vida libertada:
— Dormi — vim despertar na sepultura!
Aureliano Lessa
Vem com teus lábios risonhos
Contar-me os singelos sonhos
Que em tua alma o céu verteu.
— A. LESSA — DUAS AURORAS.
Tu que cantaste os amores
E os idílios perfumados,
Ó lira dos sons doirados!
Cordas de luz e de odores;
Pomba maior que os condores,
Bardo! A meus olhos molhados,
Que em vão procuram magoados
Teu mausoléu, entre as flores,
Mostra-te. Desce do céu,
Vem aos meus cantos tristonhos
Unir um cântico teu,
Vem com teus lábios risonhos
Contar-me os singelos sonhos
Que em tua alma o céu verteu.
José de Alencar
No teu regaço, ó Pátria angustiosa,
Ó grande Mãe! ó Níobe! Consente
Que caia minha lágrima pungente
E suspire minha alma dolorosa;
Tua serena fronte majestosa
Curva-se à terra — lívida e plangente:
Perdeste a nívea corda, a fibra algente
De tua agreste Lira luminosa.
Quem cantará agora esse obscuro
Idílio da floresta, — ingênuo tema
Que ele criou — tão mavioso e puro?
Quem guiará as asas do Poema
Com mais doçura? — Ó Bardos do futuro,
Eu vos pergunto em nome de Iracema!
Porto-Alegre
No horizonte da morte foi perder-se.
— PORTO-ALEGRE — COLOMBO.
Como a nau soberana a transitória
Vaga do mar cortando fulgurante,
Tu percorreste o plaino triunfante
De um passado ideal — que é nossa história.
Teu pavilhão ousado, aberto à Glória,
Tremulava nos ares flamejante
Como a bandeira augusta do almirante
Que indica à esquadra as plagas da vitória:
Mas o Destino bárbaro e implacável
A cujo império o grande e o miserável,
Gêmeos filhos da dor, — vão abater-se,
Opôs-te ao rumo a eterna penedia:
E a tua nau, Colombo da Harmonia,
No horizonte da morte foi perder-se.
TERCEIRA PARTE - OS POETAS MORTOS
Ora cantando placido y tranquilo
Ora en trivial lenguaje, ora burlando,
Conforme esté mi humor, porque a él me ajusto,
Y alá van versos donde va mi gusto.
— ESPRONCEDA. — EL DIABLO MUNDO. — CANTO I.
Se não faço melhor é que não posso.
— MAGALHÃES. — ANTONIO JOSÉ. — ATO III.
Per Amica Silentia...
Pelas ondas do tempo arrebatados
Até a morte iremos,
Soltos ao longo do baixel da vida
Os esquecidos remos.
— MACHADO DE ASSIS — Noivado.
Leve singrava a nossa esguia barca:
Fagueiro estava o ar e o mar fagueiro...
Lembras-te? À proa a voz do gondoleiro
Cantava uns versos do imortal Petrarca.
A aura marinha a suspirar beijava
A flutuante, a tremulante vela
Bem como um lábio... — e a vela palpitava
Como palpita um seio de donzela.
As majestosas catedrais erguiam
Os imponentes vultos solitários;
De longe em longe, os ecos repetiam
Quebrados sons de velhos campanários.
O sol sem raios lento agonizava
Na curva do horizonte... Preguiçosa
A casta Diva pálida esgarçava
Do firmamento a gaze nebulosa...
Sobre o rochedo a pique em alvo bando
As gaivotas pousavam, uma a uma,
E o torvo mar, junto ao rochedo uivando,
As borrifava de alvacenta espuma.
Frouxo, indeciso ainda cintilava
O clarão do farol na alta colina,
E a Noite como um sonho deslizava
Calma, estrelada, extática, divina!
E quando a nossa aventureira barca
Ia ondulando sobre a vaga nua,
E o gondoleiro os versos de Petrarca
Lançava aos raios da chorosa Lua,
Minha alma, igual à essência vaporosa
Que a terra exala quando a noite desce,
Bem como uma alma que viveu na rosa
E torna a Deus como invisível prece,
Voava a ti, ó meu amor! ó pura,
Pura visão dos mais felizes dias:
E tu, repleta de infantil ternura,
Me contemplavas tímida, e sorrias.
O que eu te disse nem o sei agora!
Pode-se acaso relembrar o canto
Que a ave modula na primeira aurora
E o coração em seu primeiro encanto?
O certo é que a minha vida inteira
Se transformou por ti... Nesse momento
De altivo gozo e glória sobranceira,
Ante o sublime altar do firmamento,
Minha alma errante, pávida, descrente,
Ó peregrina flor do Paraíso,
Fez-se mais pura que o cordeiro algente...
E bastou para isso um teu sorriso.
Eva
Adão, ao vê-la nua e iluminada
Pelo celeste olhar onipotente,
Sorriu, tremeu, chorou, e humildemente
Beijou a fronte à loira desposada.
Eva, entreabrindo a pálpebra adorada,
Ao seu divino esposo ternamente
Estende a boca pálida, tremente
Como a açucena aos lumes da alvorada.
Rezam depois as folhas da Escritura
Que Eva pecou e o Arcanjo vingador
Expulsou-os da edênica planura.
Salve, ó sublime filha do Senhor!
Tu que inventaste o êxtase, a ternura,
E os crimes todos do primeiro amor!
A Hora do Repouso
O mundo inteiro envolvido
No silêncio e no abandono,
Descansa. Nenhum ruído
Vem turbar-lhe o fundo sono.
As aves dormem; as flores
De sereno borrifadas,
Sonham aos níveos fulgores
Das estrelas afastadas.
Nem um suspiro, um murmúrio
Parte o silêncio que cobre
O miserável tugúrio
E as dependências do nobre.
A noite de asa espalmada
A natureza amortalha...
Só em minha alma agitada
O Pensamento trabalha.
Naufrágio
Sulcando as ondas soberanas, belas
Do verde mar a nau galharda corre:
Tranquilo o dia pouco a pouco morre,
E a noite assoma à frente das estrelas.
Enfuna o vento o desfraldado pano,
O tempo é calmo, o espaço é todo um prisma:
E de repente a nau para e se abisma
Nas fauces torvas e infernais do Oceano.
Sabeis por quê? Ninguém a bordo via
Ao nível do porão um ponto incerto:
Riam-se à vida e a morte os conduzia.
Também há almas como a nau decerto:
Vê-lhes o mundo a efêmera alegria,
E elas trazem no seio um cancro aberto.
Enlevo
Quando eu contemplo os olhos teus, ó pura
Obra de Deus num dia abençoado,
Sinto que voo aos astros enlaçado,
Preso aos raios da tua formosura.
E uma gostosa e matinal frescura
Tal como um véu de beijos recamado,
Cobre o meu coração fanatizado,
Cego de amor e cego de ventura.
És como a Lua plácida e erradia:
Ao teu olhar meu coração ansioso,
Igual aos bosques quando expira o dia,
Repousa envolto num tremente gozo,
E a ti se eleva a minha poesia
Bem como a voz dum rouxinol medroso.
Sintra– 1873.
Página Íntima
A minha Mulher.
Ils trébuchent, encore ivres du paradis.
— V. HUGO. — L’ART D’ÊTRE GRAND-PÈRE.
Quando eles vêm saltitantes
Como — entre os floridos ramos —
Os colibris doudejantes
E os travessos gaturamos,
Dizer-me as cousas mimosas
Que Deus ensina às crianças,
Cousas tecidas de rosas
E bordadas de esperanças,
Frases, pipilos, blandícias,
Intraduzíveis harpejos,
Que tentam como carícias
E seduzem como beijos:
Sinto-me bom, compassivo,
Grande, forte, entusiasta;
Sinto que existo, que vivo:
Sinto-me alegre e me basta.
Pois esses brancos Amores
Alívio dos meus martírios,
Que afogam as nossas dores
Numa cascata de lírios,
Essas aves saltitantes,
Esses mimos, esses brilhos,
São nossos beijos errantes,
Cecilia! — são nossos filhos.
Contraste
É meia noite. O hino funerário
Das doze angústias voa doloroso
Entre os raios da lua, e majestoso
Rodeia a cruz do velho campanário.
Tudo é silente. O espectro solitário
Do remorso e do amor paira onduloso
Nas mudas trevas, — arrastando um gozo,
Ou as medonhas fímbrias de um sudário.
Mas o Poeta, erguendo a fronte ousada,
Faiscante de límpida alegria
E de virentes ilusões ornada,
Ouve a sorrir a lúgubre elegia,
Pois em sua alma ardente e deslumbrada
Jorra em ondas de luz: — é meio dia!
A Jangada
Cinco paus mal seguros e enlaçados
Rompem os ventos pérfidos e irosos:
Neles confiam mais que venturosos
Dois pescadores nus e desgraçados.
Essa prancha que em saltos arrojados
Corta o mar como os lenhos poderosos,
Resume a vida, a fé — resume os gozos
Dos miseráveis rotos e esfaimados.
Nós também, alma minha, as desventuras
Bem conhecemos: — forte e esperançada
Sulcas do mundo o pranto e as vagas duras.
Que importa! A crença é tudo e a morte é nada,
E neste fundo abismo de amarguras
Uma esperança vale uma jangada.
Olinda
Bramia o lamarão como costuma
No feio inverno; — a lua embaciada,
De tormentosas nuvens coroada,
Menos brilhava que do mar a espuma.
Rola em cachões a vaga encapelada,
As estrelas desmaiam uma a uma;
E a férrea âncora é qual ligeira pluma
Para conter a barca fundeada.
Todos contemplam do Recife as luzes:
Mas, ó memória lúcida e vidente,
Com que poder o espírito seduzes!
Era na escura Olinda, — a penitente
Das negras catedrais e negras cruzes –
Que eu punha os olhos meus saudosamente.
A Bordo.
Aos Estados Unidos
(No Centenário da Independência)
I
Mesquinho cidadão da América gigante,
Eu venho hoje depor, ó colossais Estados,
Nos vossos cem lauréis, por Deus entrelaçados,
O meu beijo também, mas — ai de mim! distante!
Ei-vos, constelação tranquila e deslumbrante,
Aclarando de frente os povos congregados:
Saúda a noite ao dia, à aurora os sóis tombados,
E o Mundo que viveu saúda o Mundo infante.
Acabais de nascer: — a vida, em realidade,
Começa para vós, grandes recém-nascidos,
No dia em que fundais de todo a Liberdade.
Salve pois! salve, salve, salve, ó campeões ungidos!
Vós que o rumo traçais à livre Humanidade,
Unidos pela força e para a glória unidos.
Duas Sombras[6]
II
Hoje o norte, hoje o sul do jovem continente
Resumem numa só quarenta milhões de almas:
O mundo americano, o herói das lutas calmas,
Desdobra o pavilhão da Liberdade ingente.
O Amazonas soberbo arqueja de contente,
Quebram vagas azuis como um bater de palmas:
Raiou o eterno dia em que todas as almas
Curvam-se ante o fulgor do jovem continente.
E, como num mistério excelso e portentoso,
O poeta descobre além, além daquela
Estrela, que reluz no céu harmonioso,
Duas sombras que vão suspensas doutra estrela,
Repetindo a voar no azul misterioso:
— Tu com Ela nasceste e eu morri por Ela.
À Mulher Americana
III
Cabe a ti o prazer, a ti, mulher, a glória
Que o Mundo eletrizado hoje festeja e aclama:
Nasceu o herói de ti, — e a grande voz da Fama,
Eco dos lábios teus, vai retumbar na História.
Do despotismo um dia a púrpura irrisória
Tentou — oh! grande dor! — manchar da pátria a flama:
Teu coração viril, que ensanguentado ama,
Rasgou-se, mas pulsou no seio da Vitória.
És a loira criança e a máscula firmeza:
Nobre, pura e serena: ora forte, ora terna,
Semelhante ao destino e igual à Natureza.
Raia nos olhos teus a Inspiração eterna:
Salve pois, ó doçura! ó matinal grandeza!
Salve, nova mulher! Salve, mulher moderna!
Impressos no Globo do Rio — 1876.
A Valsa
Parece que a orquestra tem alma e que sente:
Dos astros cansados ao mórbido olhar,
A música geme qual gemem no mar
As ondas aos raios da lua plangente.
As gazes adejam no ar transparente
Bem como as neblinas que bailam no ar;
As sedas murmuram; — também ao luar
Murmura das vagas a clâmide algente.
E vós, loucas filhas da dança traidora,
Suspensas às notas da orquestra que anseia,
Voais como as pombas divinas da Aurora:
Diana entre as névoas longínquas pranteia,
E os flébeis compassos da valsa canora,
Borbulham as ondas morrendo na areia...
A Bordo.
Arrulhos de Namorados
— Não vês aquele riacho
Que da esplanada desceu
E uniu-se à fonte lá abaixo?
Ela és tu, ele sou eu.
“E tu? Vês aquelas palmas
Que enlaçam rijos cipós?
Não serão as nossas almas?
Não são tão iguais a nós?”
— Não vês os grupos formosos
Dos colibris sobre a flor?
Assim voam nossos gozos
Libando os favos do amor.
“E tu? Vês naquele ramo
Uma ave? Olha: ali, ali:
Parece gemer: — Eu te amo!
Sou eu gemendo por ti”.
— Assim é: ambos compomos
Na terra um profundo nó:
O que sou eu? O que somos?
Dois corpos numa alma só.
1872
A Canção da Morta
Quando eu cingia a veste caprichosa
Dos saraus opulentos e brilhantes,
Quando nas minhas gazes roçagantes
Enfeitiçava a turba rumorosa;
Diziam todos: — Como ela é formosa!
Que donaires corretos e elegantes!
E cercavam-me em grupos sussurrantes
Como as abelhas em redor da rosa.
Por que será que a multidão magoada
Geme agora de dor e de saudade
Contemplando-me a fronte engrinaldada?
Nunca tão bela fui na mocidade:
Eis-me feliz, risonha e amortalhada
Para as festas azuis da Eternidade.
Tranças Amadas
O cabelo é tal e qual
Um grande manto real.
— CÂNTICO DOS CÂNTICOS[7].
Tranças — ai! tranças formosas!
Cabelo puro e anelado!
Tão negro, tão perfumado
Como as matas tenebrosas;
Nas vossas roscas cheirosas
Eu sinto o aroma orvalhado
Que habita o seio doirado
Da madressilva e das rosas.
Por isso, amor, quando vejo
Esses escuros novelos
Revoltos, tenho desejo
De aspirá-los, de sorvê-los,
E de morrer como um beijo
Nas ondas dos teus cabelos.
Os Olhos de Clemência
Os lábios mentem
Os olhos não.
— BOCAGE.
Os olhos dela, os olhos de Clemência
São como o infindo azul resplandecente:
Olhos em cuja luz misticamente
Desponta a estrela d’alva da inocência.
Nada perturba a calma transparência
Desse infantil olhar terno e dormente,
Onde se estampa ainda fielmente
Do Divino cuidado a paciência.
Deixa que eu cante, ó anjo, a formosura
Do teu olhar dulcíssimo: — entretanto
Cedo virá a hora ingrata e escura
Em que outra voz apregoará o encanto
Dos olhos teus, queimados de amargura,
De amor, de febre e de insensato pranto.
Noturno
Del vostro bel cantar m’innamoro.
— RISPETTO TOSCANO
Canta! Parece — quando estás cantando –
Que eu já não sorvo o ar torpe e homicida
Dos tremedais malditos desta vida...
Sinto o meu coração fugir voando...
Ao teu suspiro mavioso e brando,
Minha alma exulta e goza comovida
Como a abrasada planta umedecida
Dos orvalhos que a Noite vai chorando;
Ora me levas aos queixosos mares,
Ora à floresta umbrosa e recatada
Onde boiam perfumes e luares...
Oh! canta! Estou a ouvir na madrugada
Os sussurros do rio e dos palmares
De nossa terra, ó companheira amada!...
A Gaivota
Das espumosas águas afrontando
O sal amargo, a alcíone indolente
Voa no ar molhado, e lentamente
Vai sobre as ondas cérulas pairando.
Aflam as vivas auras excitando
Do mar lascivo a boca impaciente;
E a gaivota se eleva, e novamente
Fulgem as águas como que a tentando.
Assim também, ó alma viajante,
E vós, ó minhas ilusões serenas,
Do mar da vida inóspito e brilhante
Voai por entre as revoltosas cenas,
E não lanceis ao monstro inebriante
As vossas brancas e selvagens penas.
Bordo do Níger.
Aspásia
Tu és famosa, ó bela, és celebrada
Como as deusas de Lesbos e de Atenas;
És a rival das lúbricas Helenas,
És a moderna Aspásia idolatrada;
Sobre essa boca úmida e culpada
Folgam do Gozo as imortais falenas;
És o tesouro das gostosas penas
Que cega e atrai a alma escravizada;
Rola a teus pés o cofre da opulência,
Um teu sorriso é da fortuna a origem,
Um teu aceno arrasta a consciência:
No entanto, às vezes, uma atroz vertigem...
— “É que nesse momento a Providência
Vara-me a alma com um olhar de virgem!”
Auto-da-fé
Queimai-vos cartas, expressões mentidas
Dum tempo infausto que não volta mais!
Flores mirradas, abrasai-vos todas!
Ao fogo! ao fogo, tentações fatais!
Tranças manchadas por seu lábio impuro,
Ardei também nesse voraz clarão!
Falsas memórias e relíquias falsas,
As labaredas vosso asilo são.
Eis o retrato da infiel: tão calma
Como a inocência e como um anjo está!
Queima-te, imagem fementida e torpe!
Varra-se a luz dos olhos teus! Mas ah!
Dá-me que eu possa contemplá-lo ainda,
Fogo insensível de infernal clarão:
Como estes olhos eloquentes falam!
Como repousa esta serena mão!
Ei-lo! Devora-o, mas devora-o rápido,
Pois meu martírio e meu amor são tais,
Que, se uma aragem te apagasse agora,
Ah! eu talvez não te acendera mais!...
1870
A Capela
Está postada à beira mar: — Um dia,
Ao som da vaga tépida que arfava,
E à morna luz do sol que se alongava
Pelo areal da plaga luzidia;
Eu penetrei o asilo em que sorria
A mãe de Deus. O padre consagrava
A hóstia santa. O incenso flutuava,
E o rosto meu e lágrimas fulgia...
Por isso agora, ó pomba imaculada,
Quando te vejo ao pé de mim tão bela,
Tão risonha, tão branca, tão singela,
Chora minha alma alegre e ajoelhada,
Como ante o altar da virginal capela,
Da pobre igreja à beira-mar postada.
Visão
Como se chama?... Acaso se nomeia
A mulher que nos prende a alma erradia?
Marco, Ofélia, Desdêmona, Maria,
São vários elos de uma só cadeia.
Leve, tão leve como a rara teia
Que ao mais ligeiro sopro se extravia,
Tão perigosa como a melodia
Dos invisíveis lábios de sereia;
Ela deslumbra o mundo ternamente,
E em seu caminho as almas amorosas
Prostram-se como os servos do Oriente;
Mas que lhe importam queixas dolorosas!
Ela é o orvalho, puro e inconsciente,
Que volta ao céu depois de abrir as rosas.
O Viajante
Quando da tarde a aragem refrescava
Os brancos lótus, a palmeira brava
E os areais ardentes,
Quando o chacal nos juncos estendido,
Dormia ao melancólico zumbido
Das abelhas luzentes;
Quando as cegonhas, em longínquo bando,
Iam na etérea tela desenhando
As fugitivas penas,
E a doce lua, o pensativo astro,
Arfava como um seio de alabastro
Entre as nuvens serenas;
Sobre o elefante branco ajaezado
De corais e rubins, — monstro sagrado
No Oceano e no Levante, –
Como visão estranha ela passava,
E em roda dela alegre caminhava
Um cortejo brilhante.
Era a princesa Aral, a descendente
Da mais guerreira tribo, a mais valente
Das tribos africanas:
Negra e amorosa como a Noite, — havia
Nos seus profundos olhos a ardentia
Das ondas soberanas.
Mais de um guerreiro altivo e poderoso
Vindo de longes terras glorioso
De louros revestido,
Tentou roubar-lhe o coração: no entanto,
Ela foi surda à glória, ao rogo, ao pranto
E ele partiu vencido.
Nada a ataria além do seu deserto
Horrendo e imenso, em cujo seio aberto
Ao sol e às estrelas,
Mora o leão enorme, e o tigre escuro
Espreita à sombra do covil impuro
O sono das gazelas.
E sempre ao pôr do sol irradiante
Sobre o nevado e esplêndido elefante
A princesa sorria,
Calcando o pó dos seus reais domínios,
Enquanto ao longe, em vagos tons carmíneos,
Lento expirava o dia.
Ágil como a pantera e tão mimosa
Como o botão da fulva tuberosa
Entre os juncais virentes,
Deslizava-lhe a vida sem que o pranto
Até então lhe profanasse o encanto
Dos olhos transparentes.
Um dia aos seus ouvidos delicados
Soaram gritos, furiosos brados
Da tribo reunida:
Rápida a bela, inquieta e curiosa,
Atravessando a turba revoltosa,
— Alegre e surpreendida –
Viu entre os seus guerreiros arquejantes,
Vingativos, coléricos, possantes,
Um branco — um forasteiro:
Firme como o destino ele sorria,
E o seu olhar heroico parecia
Lutar com o mundo inteiro.
Mil vezes mais que a cintilante e pura
Asa da garça era a perfeita alvura
De sua ebúrnea fronte;
E o seu cabelo espesso, ondeante e loiro,
Brilhava como as alvoradas de oiro
No pálido horizonte.
Em sua branca mão nervosa e fina
Luzia ao sol a esbelta carabina
De emblemas esmaltada;
Sob os seus pés — empoeirada e fria —
Uma formosa antílope jazia
No flanco baleada.
— “És a rainha, bem o vejo: és nobre,
Em tua calma fronte o olhar descobre
O mando sobranceiro;
És a Beleza: a tua formosura
Como a da Noite assombra a criatura”.
Começou o estrangeiro.
Igual ao débil nenúfar do lago
Da estiva brisa ao maternal afago
A mesquinha ignorante,
Senhora do deserto livre e infindo,
Estremecia cabisbaixa ouvindo,
O loiro viajante.
— “Dos meus perdi-me, há quase um dia inteiro,
E um cão, leal e bravo companheiro
Que sempre me seguia,
Morreu de febre no areal ardente:
Peço-te pois um teto unicamente
Até romper o dia”.
Tímida a um tempo e majestosa, a filha
Da grande tribo, a negra maravilha,
Virgem e soberana,
Abriu a turba com um sorriso honesto,
E ao forasteiro ofereceu num gesto
Sua régia cabana.
O sol vibrava as crepitantes setas
Sobre o areal em fogo: — ágeis, inquietas
As abelhas zumbiam...
De longe em longe os gritos penetrantes
Duma afastada tropa de elefantes
Os ecos repetiam.
E do estrangeiro o sono respeitado,
Tal como um rio plácido e sagrado,
Que corre em abandono,
Ninguém ousou quebrar: — fora punido
Com suplícios cruéis o destemido
Que lhe turbasse o sono.
Caiu a tarde, e a noite mansamente
Desenrolou o véu fosforescente
Pela ínvia grandeza
Da solidão tremenda e pavorosa...
No entanto, muda, trêmula, chorosa,
A cândida princesa
Cismava... Em quê? Num mundo iluminado,
Todo de loiras frontes povoado...
E um turbilhão de cenas
Iam-lhe na alma exausta resvalando,
À rouca voz do solitário bando
Das lúgubres hienas.
Ao romper da manhã o forasteiro
Disse-lhe: — e o seu olhar longo e fagueiro
Turbava-a e comovia –
— “Tu mereceras mais que um trono: a terra
Bem poucas almas como a tua encerra:
Deus te salve, Maria”.
Quando do céu na gaze diamantina
Sumiu-se enfim a longa carabina
Do moço viandante,
Ela curvou a fronte dolorida,
Como sucede à antílope ferida
E à corsa agonizante.
Nunca mais ao luzir do sol cadente,
Sobre o elefante branco a onipotente
Princesa acompanhada
Por seus fiéis e inúmeros guerreiros,
Foi respirar os hálitos primeiros
Da noite embalsamada.
Nunca mais uma flor, uma esperança
Veio adornar-lhe a fronte, e à semelhança
Do meigo aloés queimado
Pelo simum revolto, ela sentia
Faltar-lhe o sangue e em ânsias comprimia
O seio amargurado.
Às vezes — só — em frente do deserto
O seu olhar saudoso, vago e incerto
No espaço se embebia,
E a sua boca tremulante e pura
Repetia com mística ternura:
“Deus te salve, Maria”.
A tribo inteira em grupos, lacrimosa,
Contemplava-a de longe, e a mão calosa
Do possante guerreiro,
Brandindo a lança — que o furor agita —
Ameaçava a sombra ímpia e maldita
Do branco aventureiro.
E o dia frouxo e lânguido expirava:
O sol de mornas vagas inundava
As solidões medonhas...
E além, além, no éter transparente
Ia-se destacando lentamente
O voo das cegonhas.
O Pensamento
Uma pesada e fúnebre tristeza
Ganhava o espaço, — e a noite majestosa
Noite sem astros, noite procelosa,
Como um remorso enchia a natureza.
Do mar convulso na letal grandeza
A voz das ondas torva e monstruosa,
Arquejante, sombria, cavernosa,
Lembrava os uivos duma hiena presa.
E, enquanto o mundo, pávido e sedento,
Acabrunhado de cruéis terrores,
Contemplava a tremer o firmamento,
Minha alma, envolta em turbilhões de flores,
Sobre o corcel audaz do Pensamento
Galopava do céu entre os fulgores.
Guitarra
Cantei, ó bela, os dotes teus: a lira
Fiel e meiga a voz me acompanhava,
E a lua, erguendo o manto de safira,
Parecia escutar o que eu cantava.
Cantei-te o seio lânguido e alvejante
— Pomba aninhada em flocos de cambraia —
E pareceu-me ouvir naquele instante
Zelosa a vaga estremecer na praia.
Cantei depois a juvenil fragrância
Dos nossos velhos e gentis folguedos
Na mais sonora e feiticeira estância;
Cantei o nosso amor e os seus segredos;
Mas quando ia cantar tua constância...
Quebrou-se a lira e me caiu dos dedos.
1871.
O Colar
Quando de tules coberta
Como os jasmins orvalhados,
Tu atravessas dos bailes
Os vastos salões doirados;
Sem uma joia, um ornato
Nesse colo virginal,
Sem uma pétala de oiro,
Sem um fio de coral;
Parece que os teus olhares
Pousam cúpidos, ardentes,
Nos regaços salpicados
De frias pedras luzentes;
E uma nuvem pesarosa
Ensombra-te o rosto mago,
Como a neblina erradia
Que turba o espelho dum lago;
Tens zelo talvez, tens zelos
Das milionárias brilhantes,
Que jorram nas loucas valsas
Com um rio de diamantes...
No entanto, nada fulgura
Mais que os teus dotes serenos:
Nua de adornos tu vences,
Ó branca e inocente Vênus!
Teus olhos valem safiras,
Valem pérolas teu riso:
E essas joias soberanas
Herdaste-as do Paraíso:
Feliz do noivo que um dia,
Rio de amor e desejos,
Prender-te ao seio de neve...
Um rubro colar de beijos.
Memórias
De mi antiguo dolor recuerdos son.
— CAMPOAMOR — DOLORAS.
Baixava a noite: — os morros tristemente
No fofo azul das nuvens se envolviam...
Cheios de medo os pássaros fugiam,
À luz sombria do luar tremente.
Nós estávamos sós. Humildemente
Os olhos seus meus olhos refletiam,
Como no lago os astros, e bebiam
Sua alma fresca, trêmula e inocente.
Ao pé de nós um rio suspirava,
E as roxas folhas do pomar copado
De espaço a espaço, o vento meneava.
Seu alvo colo de pudor velado,
Entre os meus braços como a pomba arfava...
Cala-te, coração! Tudo é passado.
1871.
A uma Cega
IMITADO DO ITALIANO.
Não te lastimes, não, bela infeliz,
Por não poderes ver o nosso mundo:
Não vale tanto — crê — nem é jocundo
Como o teu pobre coração te diz.
Não vês os torpes pensamentos vis
Que se agitam do nosso olhar no fundo:
O desejo brutal, o instinto imundo
Que nos domina. Ó cega, és bem feliz.
Varre da mente os gozos com que sonha
Tua insensata e errante fantasia,
Ergue a cabeça lívida e tristonha:
No nosso mundo a infâmia tripudia
Nua, asquerosa, lúbrica, medonha!
Feliz de quem não vê a luz do dia.
À Sombra dos Álamos
— “Pois nada o atrai aqui? — ela dizia —
Contemple a neve excelsa e triunfal
Que envolve os Andes... Sinta essa poesia!”
Mas eu nas sombras de minha alma via
As verdes serras do país natal.
— “Pois nada o prende então — acrescentava —
Nesta pátria do amor e do ideal?
Veja que lua!” (e tão formosa estava!)
Mas em minha alma ainda fulgurava
A derradeira bênção maternal.
Santiago do Chile– 1872.
Inverno
Nas noites enregeladas,
Nas cruas noites de inverno,
Teus olhos, ó Bem eterno,
Luzem mais que as alvoradas.
E tuas frases aladas,
Gostosas como o falerno,
Me inundam dum gozo terno,
Ó amada das amadas!
Que importa que ruja o vento
E ao longe rebrame o mar!
Nesse ditoso momento
Eu vejo no teu olhar
Um segundo firmamento,
Cheio dum novo luar!
Londres.
Triste Volta
E. PANZACCHI[8]
Voltei. Achei fechada a tua porta;
Quisera, ao menos, te apertar a mão;
Pedi notícias tuas e me deram,
Porém tão tristes, tão penosas eram,
Que senti rebentar-me o coração.
Disseram-me, ai de mim, que já não és
Aquela amiga que eu aqui deixei,
A doce amiga que primeiro amei,
E a quem de prantos inundei os pés.
Disseram-me também que és mais formosa
Que és mais formosa do que dantes eras,
Mas que fugiu de ti a Providência,
E o melindroso lírio da inocência
Não orna mais as tuas primaveras.
Que triste volta! que cruel tormento!
Menos sofrera eu se à tua porta
Ouvisse alguém dizer nesse momento:
— Não a procures, não: ela está morta.
Miss Perfection
Era mimosa como um frágil lírio,
Como um terno lilás, como a encantada
Peri do Oriente — a peregrina fada –
Ou como Vênus — o jasmim do Empíreo.
Jamais a névoa de um fugaz martírio
Turbou-lhe a altiva fronte delicada;
Pálida às vezes, sim, dessa magoada
Dessa magoada palidez do círio.
Jogava as armas como um paladino;
Amava as cavalgadas, e o aparato
Do mundo a enchia de um prazer divino.
Da virgem tinha o nítido recato,
A timidez, o enleio purpurino,
Mas... Esse mas completa o seu retrato.
Brighton — 1874.
O Cego
Ontem meu canto longo e amargurado,
Entre os grupos do povo sussurrante
Vibrou convulso, rouco, soluçante,
Como os queixumes de um adeus magoado.
E quando o humilde cego desgraçado,
Morto de fome e quase agonizante,
Abria a mão gelada e suplicante,
Uma voz de mulher disse: “Coitado!”
Ah! que eu não possa contemplar-te um dia!
Que eu não te possa ver, casta Maria,
Tal que em meu coração hoje te vejo:
Tu, cuja voz plangente e comovida
Ressoou em minha alma agradecida
Mais doce ainda que o rumor de um beijo.
À Beira-Mar
Le crepuscule est triste et doux comme un adieu.
— F. COPPÉE.
O sol sem raios sobre o mar desmaia:
A Tarde meigamente surpreendida,
Desdobra o manto... A vaga entorpecida
Rola na areia túmida da praia.
O céu é como fúlgida cambraia
Que envolve a terra — noiva adormecida —
Ouve-se ao longe os sinos de uma ermida,
E a lua nova no horizonte raia.
Tudo se acalma: — as virginais estrelas
Rebentam como um turbilhão de flores,
Destacadas de angélicas capelas:
E, através desses magos resplendores,
Vêm aproando a terra as largas velas
Ao som da voz dos tardos pescadores.
A Escrava
Enquanto os outros negros companheiros
Bailam em frente à lúgubre senzala,
E da fausta vivenda a rica sala
Percorre a dança em giros feiticeiros;
Enquanto a noite com seus ais fagueiros
Como um segredo tropical se exala,
E a quente aragem que a palmeira embala,
Treme na leve rama dos coqueiros;
Enquanto a festa vívida, inclemente,
Louca de febre e graças soberanas,
Prende o senhor e o escravo juntamente:
Ela, fugindo às emoções tiranas,
Recorda tristemente, tristemente,
A solidão das noites africanas.
Señorita
Não tem a neve dos Andes
A alvura do rosto seu,
E os seus negros olhos grandes
Fulguram mais do que o céu.
Como a doce granadina
Exposta a um raio de luz,
Na boca dessa menina
Um róseo fulgor transluz
E os seus ondados cabelos!
Revoltas vagas do mar,
Onde a razão — só de vê-los –
Começa por naufragar.
Não há decerto beleza
Igual no mundo, — não há:
Mas, saibamos com certeza,
É boa a menina ou má?
Se não há sequer um astro
Entre os mais claros de Deus,
Alvo como esse alabastro
Que a envolve em místicos véus;
Se em negros olhos grandes
Fulge um ardente clarão,
... Há menos gelo nos Andes,
Menos que em seu coração.
Valparaíso — 1872.
A Carta
A cartinha gentil que me escreveste
É um tesouro de erros e belezas:
Da tua ortografia as incertezas
Dão mais valor às cousas que disseste.
É um mimo ler-te! E tu não compreendeste
A altura do teu estro! — as ligeirezas
De tua pena valem as grandezas
De Virgílio e Platão, que nunca leste.
Pensas que as ricas sabem muito?
Cobre O ouro, verniz da fofa jerarquia,
As misérias duma alma vesga e pobre;
Tu é que és sábia, ó lirial Maria,
Tu é que és sábia, milionária e nobre:
Tens coração em vez de ortografia.
Boa Viagem
Boa viagem, almas forasteiras!
Ides à Índia — à terra prometida
Onde a alma se abisma enlanguescida,
Morta de amor — no olhar das baiadeiras.
Ides dormir nas fúnebres clareiras
Onde ruge a pantera surpreendida;
Onde o clarão da lua entorpecida
Goteja e cai do leque das palmeiras...
E enquanto nós — prudentes criaturas –
Plantamos nesta insípida paragem
O velho tédio e as usuais venturas,
Vós — ardentes de febre e de coragem,
Colheis a rubra flor das aventuras:
Deus vos conduza, amigos! Boa viagem.
Cantiga
Meu coração é um pobre
Um pobrezinho sem lar,
Dá-lhe tu, que és rica e nobre,
A esmola do teu olhar.
Meu peito frio de neve
Se lhe roçar tua mão
Leve, leve, leve, leve,
Arderá como um vulcão.
Meus lábios são dois escravos
Mortos de sede e de dor,
Abelha! tens tantos favos!
Dá-lhes o favo do amor.
E minha alma de precito,
Ó branca filha do céu,
Fá-la voar ao infinito...
Nas asas de um beijo teu.
A Gazela
Sobre um coxim de malvas e de rosas
No regaço do bosque, sossegada
Dorme a gazela e sonha... A madrugada
Beija de leve as árvores frondosas...
Sonha que em vasta alfombra de mimosas
Por cristalinas águas esmaltada,
Folga segura a tribo delicada
Das gazelas ligeiras e formosas.
Súbito um grito agudo o espaço agita,
E como o raio cai da tempestade,
A pantera voraz se precipita.
Assim, gazela da alma, ó Mocidade,
Quando tu sonhas sobre ti palpita
A sanguinária e bruta Realidade.
1875.
Incógnita
Et vera incessu patuit Dea.
— VIRGÍLIO.
Eu vejo-a sempre no final do dia,
Quando os purpúreos flocos do ocidente
Vão descorando harmoniosamente,
Aos gemedores sons da Ave Maria.
Sua estatura de altivez sombria
Passa na vaga luz do sol poente,
Como o fantasma, a sombra penitente
Da antiga Musa solitária e fria.
Direis ao vê-la que uma aguda pena,
Que um martírio satânico e profundo
Morde-lhe as fibras d’alma e as envenena;
E ela percorre as festas deste mundo
Com a santa palidez de Madalena,
E com o olhar do Cristo moribundo.
A um Milionário
Dizes que és grande, que és onipotente,
Que ao teu fulgor a própria natureza
Pasma e recua, — e é tal tua grandeza
Que abala os céus e a terra juntamente.
Dizes que podes com teu oiro absurdo
Lutar com Deus, opor-te à Divindade,
E até, sem a menor dificuldade,
Dar voz ao morto e dar ouvido ao surdo.
Ora, se queres ver-me, humilde e terno,
Ante essa força monetária e vasta,
Esse poder que afronta céus e inferno,
Que algema os homens, que o universo arrasta,
Compra uma coisa, ó Júpiter moderno,
Compra um raio de sol — : é quanto basta.
A Lua no Mar
Et, dans le ciel couleur de perle, La lune monte lentement.
— LECONTE DE LISLE.
Corta o navio as águas sossegadas:
Repousa o mar, o velho mar bondoso;
No firmamento um ponto luminoso
Apenas fere as nuvens azuladas...
As noturnas aragens despertadas
— Longos suspiros trêmulos de gozo —
Beijam do mar o seio poderoso
Como invisíveis e lascivas fadas.
O firmamento, pouco a pouco, brilha;
Sobre a planície movediça e nua,
Que o altivo barco soberano trilha,
Como um vulcão de neve que flutua,
Rompe de todo a eterna maravilha:
A grande, a calma, a solitária Lua!
O Cisne
Sua nívea formosura
Encanta olimpicamente
Como o cisne na corrente:
Macia, ondulante e pura.
Seu lábio jamais murmura,
E o seu regaço indolente
Palpita amorosamente,
Oh Deus! como a sepultura!
E quando minha alma ansiosa
Cuida que vai escutar
Uma palavra amorosa:
A Formosura sem par
Desliza silenciosa...
Bem como um cisne ao luar.
O Boi
G. CARDUCCI[9]
Amo-te, ó manso boi, forte e jocundo,
Quando inundas de paz meu pensamento,
Ou quando — austero como um monumento —
Contemplas o valado amplo e fecundo.
Gosto de ver-te, auxiliador do mundo,
Enquanto o homem fere-te cruento,
Lhe responderes, não com um vão lamento,
Mas com teu doce olhar, — doce e profundo.
Nessa cansada e úmida narina
Fumega o teu espírito afanoso,
E o teu mugido na amplidão se perde...
Descamba o sol no vale e na campina,
E em teu olhar reflete-se saudoso
Dos campos o silêncio — augusto e verde.
A Sertaneja
(Canção do Norte)
Ainsi chante au soleil la cigale dorée.
A. DE MUSSET
Eu sou a virgem morena,
Robusta, lesta, pequena
Como a cabrita montês;
Vivo cercada de amores,
E Aquele que fez as flores,
Irmã das flores me fez.
Vinde ver, ó boiadeiros,
Meus vestidos domingueiros,
Meus braços limpos e nus:
Ah! vinde ver-me enfeitada
Com minha saia engomada,
Com meus tamancos azuis.
Sertanejos, sertanejos,
Pedis debalde os meus beijos,
Em vão pedis meu amor!
Eu sou a agreste cotia,
Que se expõe à pontaria,
E ri-se do caçador!
A sertaneja morena
Bonita, forte, pequena,
Não cai na armadilha, não:
A jaçanã corre e voa
Quando vê sobre a lagoa
A sombra do gavião.
Sou órfã, donzela e pobre,
Vistosa telha não cobre
O lar que herdei de meus pais:
Que importa? Vivo contente:
Ser moça, bela e inocente
É ter fortuna de mais!
Quem tece e protege o ninho,
Quem defende o passarinho,
Quem das mãos espalha o bem,
Quem fez o sol e as estrelas,
Dando a virtude às donzelas
Deu-lhes a força também.
A Virgem nunca se esquece
Da mais tosca e simples prece
Que voa ao seio de Deus:
Por cada infeliz que chora
Abre na terra uma aurora,
Crava uma estrela nos céus.
Sertanejos, sertanejos,
Podeis morrer de desejos
Que eu não me temo de vós!
A sertaneja faceira
É mais que a paca ligeira,
Mais que a andorinha veloz.
Sou viva, arisca, medrosa,
Bem como a onça raivosa
Pronta ao mais leve rumor
No meu cabelo selvagem
Sente-se a morna bafagem
Das matas virgens em flor.
No samba quem puxa a fieira
Melhor, melhor que a trigueira
Maravilha dos sertões?
Que peito mais brando anseia,
Quem pula, quem sapateia,
Quem pisa mais corações?
Ai gentes! ai boiadeiros!
Não sois decerto os primeiros
Que o meu olhar cativou:
Desta morena a doçura
É como a frecha segura:
Peito que encontra — rasgou!
Minha rede é perfumada
Como a folha machucada
Da verde-malva maçã:
Nela me embalo sonhando,
E dela salto cantando
Quando vem rindo a manhã.
Sonho com jambos e rosas,
Co’as madrugadas formosas
Deste formoso sertão:
Meu sonho é como a canoa,
Que voa, que voa e voa
Nas águas do ribeirão.
Trago no seio guardado
O rosário abençoado
Que minha mãe me deixou:
Ai! gentes! ai! pastorinhas!
Se estão alvas as continhas
Foi que meu pranto as lavou.
Quem é mais feliz na terra?
Quem mais delícias encerra,
Quem mais feitiços contém?
Vem, moreno boiadeiro,
Desafiar meu pandeiro
Com tua guitarra, — vem!
Raiou domingo! Que festa!
Que barulho na floresta!
Quanto rumor no sertão!
Que céu! que matas cheirosas!
Quanto perfume nas rosas,
E quantas rosas no chão!
Vinde ouvir-me na guitarra:
Não há nas brenhas cigarra
Que me acompanhe, — não há!
Trazei, trazei, boiadeiros,
As violas, os pandeiros,
Os búzios, o maracá.
Eu sou a virgem morena
Robusta, lesta, pequena
Como a cabrita montês:
Vivo cercada de amores,
E Aquele que fez as flores
Irmã das flores me fez.
1869.
Longe dos Homens
A.C.
Deixemos, sim? voar os nossos dias
Como um tropel de abelhas sussurrantes:
Há tanto sol nas ilusões fragrantes,
E o nosso amor tem tantas ambrosias!
Que nos importa o mundo? Ouve-me: — dantes
Eu assisti às negras alegrias
Da vida sem amor: — frontes sombrias,
Desejos maus, prazeres degradantes.
Hoje que tu és minha... Ah! se soubesses
Como agradeço a Deus o ter-me aberto
O tesouro das crenças e das preces!
E ter meu passo, vacilante e incerto,
Guiado até que enfim me aparecesses,
Ó palmeira gentil do meu deserto!
1873.
O Berço e o Túmulo
Eu sou — dizia o berço ao túmulo profundo —
A mansão da inocência, a festival guarida:
Em meu seio de neve é que se empluma a vida:
Eu sou o amor! o amor!... E tu, sepulcro imundo,
És a voraz garganta, o abismo furibundo
Onde o leve batel, de bússola partida,
Sente cair-lhe o leme e a vela descosida:
Ó morte, és como o tigre, o teu curral é o mundo.
Respondeu-lhe o sepulcro: — Escuta, enquanto inflamas
As ambições, o ódio, as guerras, a impiedade,
Eu acolho em meu seio as iras que derramas:
Dou a flor, dou o fruto à lívida orfandade,
Despovoo o hospital, varro as imundas camas,
E aos poetas sem pão dou a Imortalidade.
Confidência
“Ama!” è la voce altissima
Che suona in ogni cor.
— ISABELLA ROSSI.
Como dois cisnes que se vão errantes
Dum quieto lago a vaga azul turbando,
As nossas almas juntas deslizando
Asa com asa, voam semelhantes
Como dois cisnes que se vão errantes.
Ninguém nos pode separar na vida;
Somente o Criador — Deus tão somente
Fora capaz num dia injustamente
De dar-te a morte e me poupar, querida:
Ninguém nos pode separar na vida.
Juntos gozamos, juntos padecemos:
Assim os galhos gêmeos medram, crescem
Ao mesmo tempo e a mesma dor padecem;
O que tu sofres ambos nós sofremos:
Juntos gozamos, juntos padecemos.
Ao Firmamento límpido e profundo
Nossas aspirações boas e calmas
Vão ascendendo... Um dia as nossas almas
Subirão abraçadas deste mundo
Ao Firmamento límpido e profundo.
Satanás
Quando Satã, o Arcanjo fulminado,
Pelas divinas mãos, a criatura
Obra de Deus — encarcerar procura
Entre as brônzeas muralhas do Pecado,
Explora o mundo inteiro disfarçado:
É o Ódio, a Guerra, é a Avareza impura,
A Luxúria venal, a torva e escura
Vingança... E sempre, sempre transformado,
A raça humana, estólida e ignorante,
Lança aos martírios dum cruel tormento
Mais pavoroso que as visões do Dante.
Ah! quando chega a minha vez intento
Salvar-me — Em vão! — O infame nesse instante
É mais atroz ainda: — é o Pensamento.
No Deserto
Quando a Virgem fugia à lança dos sicários
Unindo ao casto seio o redentor bendito,
A noite os surpreendeu nos plainos solitários
Onde Mêmnon eleva o tronco do granito.
Nem um astro sequer da cúpula divina
No profundo dossel, nem um vislumbre, apenas:
Era a hora em que o vento arqueja entre a ruína
Aos gritos do chacal e aos uivos das hienas.
A José, cujos pés em chagas latejavam
Sobre a areia cruel, disse a Virgem Maria:
“Repousemos aqui”. — Seus braços vacilavam —
“Seguiremos depois, quando romper o dia”.
Tateando na sombra espessa e lutuosa,
José o roto manto ao longo desdobrava:
E a Virgem Mãe de leve, e pálida e medrosa,
Sobre o manto deitou Jesus que ressonava.
“Dorme” disse ao esposo a Virgem brandamente:
“Por nós o doce Pai atento está velando”.
Ele triste inclinou a fronte humildemente,
Ela aos pés de Jesus adormeceu chorando.
E sonhou... O futuro horrífico e sangrento
Do seu loiro senhor, do seu divino filho,
Drama de pranto e luz — veio nesse momento
Encher-lhe o coração de pavoroso brilho.
Viu-o crescer tranquilo e puro, abençoando
As negras multidões torvas de saciedade:
Ouviu-lhe a grande voz, como um clarim lançando
Ao mundo espavorido os sons da Liberdade.
Viu-o, por entre o povo inóspito e implacável,
Forte como os heróis e — débil como as flores —
Colhendo em seu regaço eternamente afável,
As crianças gentis e os rudes pescadores.
Viu-o nobre, sereno e firme, interpretando
Os mistérios da vida efêmera e terrena:
E a multidão pasmada o ia acompanhando,
E banhava-o de amor o olhar de Madalena...
Viu-o chorar então as lágrimas primeiras,
Ele — o santo ideal do Bem e da Ternura —
No medonho jardim das tristes oliveiras,
Bebendo, gota a gota, o cálix da amargura.
Viu-o depois sorrir ao beijo tenebroso
Que Judas lhe imprimiu na imaculada fronte,
Como sorri o oceano ao lenho aventuroso,
E como acolhe o raio o alcantilado monte.
Por fim o viu convulso e esquálido arrastando
O próprio cadafalso e o lúgubre sudário...
Viu-o amarrado à cruz, — viu-o morrer penando,
Entre infames ladrões, no cimo do Calvário.
E Maria a gemer, extenuada, exangue,
Despertou num soluço, e olhou: Jesus dormia:
A aurora lhe formava um nimbo cor de sangue,
E o divino Cordeiro extático sorria.
Sorrento
Nós chegamos à tarde... Em mole eflúvio
A tênue brisa, lânguida e cansada,
Cerzia as ondas da dormente enseada;
À nossa frente erguia-se o Vesúvio.
Entre as águas suspenso e o firmamento,
Perdia o sol os últimos fulgores,
Riam, cantando ao longe, os pescadores
E as poéticas filhas de Sorrento.
Lépida a vaga, esmeraldina e bela,
Vinha roçar-te os pés — branda, discreta
Como a nuvem que roça numa estrela...
Presa a uma dor incógnita e secreta
Pensavas tu talvez em Graziela...
E eu invejava a sorte do Poeta.
A meu Filho Gabriel
6 de março de 1880
Há poucas horas apenas
Que te partiste a chorar
Deste mundo e destas penas,
Ó criatura exemplar!
Fugiste à vida traidora
E à nossa vil multidão,
Em busca da eterna Aurora,
Da eterna Consolação.
Mimoso, aéreo, suave,
Tua mãe viu-te passar
Como um relâmpago, uma ave
Na lisa face do mar.
Mal tuas asas nevadas
Roçaram do mundo atroz
As ruas enlameadas,
Ó andorinha veloz!
Teus dias foram contados
E breves, ó meu amor,
Como os pistilos doirados,
Como os dias de uma flor.
Deste à terra ingrata e rude,
No teu fúlgido clarão,
A semente da virtude
E a raiz dum coração:
Dum coração de amianto,
Duma alma gêmea da luz:
Beijo orvalhado de pranto,
Cravo das mãos de Jesus!
E como a flor morre abrindo
As folhas ébrias de mel,
Tu morreste, ó loiro, ó lindo
Ó meu anjo Gabriel!...
Dos teus encantos o brilho
Deus formara-o para si:
O mundo — o mundo, meu filho,
Não era digno de ti.
À Rainha de Portugal
Por ocasião da quermesse
So io ben ch’a voler chiuder in versi Sue laudi, fora stanco
Chi piú degna la mano a scriver porse.
PETRARCA.
Princesa, vens da Pátria irradiante
Que a um tempo concebeu — obra divina —
Tasso, Petrarca, Buonarotti, Dante,
Laura, Eleonora, o Sanzio e a Fornarina.
Simbolizas a Glória. O Povo inclina
A fronte quando passas deslumbrante,
Com o teu fulgor de Estrela no levante
E as tuas graças infantis de ondina...
Mas tu és grande, ó triunfal Maria,
Porque das alvas mãos, dia por dia,
Deixas cair a esmola e não te cansas:
Como as Madonas no sendal da Glória
Irás subindo aos términos da História
Numa nuvem de flores e crianças.
O Beijo da Morta
Cresce a invernosa noite, um frio intenso
Morde-me as carnes: — lívido, gelado,
No leito me ergo... e escuto o desolado
Uivo do Inverno, atroz, convulso, imenso...
Tento dormir. Em vão! Escuto e penso.
Penso na eterna Ausente... Ah! se a meu lado
Ela estivesse! um beijo perfumado!
Um só! me fora ardente e ideal incenso...
Abre-se então de leve a minha porta:
É Ela! Entrou. Na palidez da morta
Uma aurora de beijos irradia:
Caminha... chega e diz-me num segredo:
“Une teu rosto ao meu, não tenhas medo:
Venho aquecer-te: — a noite está tão fria!”
Num Terraço
Como as pombas mansamente
Ao cair das tardes calmas,
Vão repousar juntamente
No ninho odoroso e quente,
Nossas almas
Nossas almas viajantes,
Vão num giro enamorado,
Como as pombas alvejantes,
Pousar nas nuvens distantes
Do passado...
Êxtase
Olha-me assim, Madona... longamente:
Deixa minha alma em teu olhar piedoso
Flutuar num silêncio, amplo e radioso,
Como um navio à terna luz do poente.
Nada me digas: olha-me somente:
Assim... Meu coração, ébrio de gozo,
Vai rolando no abismo luminoso
No etéreo abismo desse olhar dormente.
A natureza mórbida e alquebrada
Repousa. A ebúrnea esfera constelada
Desmaia antes que a Aurora ao longe assome:
E eu, embalado nesse olhar radiante,
Feliz, absorto, extático, hesitante...
Ouço tua alma soletrar meu nome.
Galateia
Mais clara que o claro Empíreo
Mais loira que o mel cheiroso,
Mais tentadora que um gozo
E mais perfeita que um lírio,
Ela atravessa indolente
As áureas pompas da vida
Como a garça adormecida
Levada pela corrente...
Das suas tranças sedosas
Voa uma grata mistura
De cravos e tuberosas,
E essa estranha criatura
É no meio das formosas
A Estátua da formosura.
Venus Victrix
De que profundos céus rolou a estrela
A dupla estrela que em teus olhos mora?
Qual foi a rósea lágrima da Aurora
Que se encarnou em tua espádua bela?
Dizem que a Vênus Veronesa é a tela
Onde dormia a Forma tentadora:
Eu, louco artista, vê-la quis outrora,
Mas depois que te vi não quero vê-la.
O Eterno Deus, o Estatuário ingente
Burilou-te, a sorrir, a alma inocente,
E — digno escrínio que tal gema encerra —
Pôs em teu corpo dotes aos milhares...
A própria Vênus que surgiu dos mares
Cede-te a palma a ti, Vênus da terra!
As Mãos de Bela
Essas divinas mãos feitas de arminho,
Lírios, jasmins, anêmonas e rosas,
Mãos, cujas palmas finas e untuosas,
Mais doces são do que o frouxel dum ninho;
Essas divinas mãos que ao burburinho
Da prece se unem tímidas, piedosas,
Mais palpitantes, débeis e medrosas
Que a asa fugaz do tenro passarinho;
Esses milagres de escultura viva
Que o divino buril na sensitiva
Talhou, — franzinas mãos de anjo e de fada,
Sabem vibrar com gesto soberano
E de chofre embeber no peito humano
Do heroico Amor a sanguinária espada.
Paquita
Como um fugaz suspiro, um som que passa,
E a flor pendida antes do fim do dia,
Assim morreste, ó pálida erradia,
Ó favorita pomba da Desgraça!
Rápida embora, passageira e escassa,
Foi-te a existência toda uma agonia,
E tua boca trêmula sorria
Bebendo a morte na funérea taça.
Abandonada, pobre, humilde, obscura,
Desceste à negra e torva sepultura,
Tu, a formosa deusa entre as formosas:
Ah! que eu não tenha versos como flores
Para a campa te encher de aromas, cores,
Goivos, saudades, lágrimas e rosas!
A Estátua
A FERNANDO LEAL
Narrei-lhe o drama de minha alma...
Absorta Num vago ideal talvez, pálida a bela
Tinha nos olhos um clarão de estrela...
Mas no resto do corpo estava morta.
Quando a voz do Poeta canta e exorta
Ou vibra como as asas da procela,
Arrasta céus e mundos... Porém Ela
Aos meus gemidos respondeu: “Que importa?”
Que importa! E contemplava-me tranquila
Aquela ousada encarnação da argila,
Fria, tão fria como a lousa fria...
Morto de dor, de desespero insano,
Dos meus olhos verti ondas de oceano,
E Ela — a sereia — entre meus prantos ria.
A Lucinda Simões
Quando percorres a fulgente arena
Da Arte imortal, — ingênua, cismadora,
Trágica, humilde, casta ou pecadora, —
Mas sempre de fulgor e graças plena;
Quando teu lábio atrai, morde e envenena
Nos sorrisos fatais da atroz Leonora,
Ou quando, fresco e róseo como a Aurora,
De cascatas de luz inunda a cena;
Ó diva! o nosso espírito cansado
Por te seguir os voos, sente o alado
Grupo de gênios na amplidão dispersos:
Grita o teu nome o Povo eletrizado,
E o Poeta, de súbito inspirado,
Lança-te aos pés toda a sua alma em versos!
Profissão de Fé
J’ai soif de chasteté, de vertu, de noblesse
Soif d’honneur, de bonté, de beauté, d’idéal...
— EUGÈNE ROSTAND.
O velho Sacerdote escuta cada dia,
Ruja o vento do inverno ou folgue a estiva aragem,
Perante o humilde altar da sua Freguesia,
Do Deus vivo a palavra. E em face àquela imagem
Nada o distrai. O grito estrídulo e selvagem
Da bruta multidão feroz que tripudia,
Não perturba sequer a matinal linguagem
Que o alto campanário às solidões envia.
Como o Padre fiel — o místico soldado
Das falanges de Cristo, — o Poeta isolado,
Perante o largo altar das Crenças imortais,
Sacerdote do Amor, eleva-se num hino,
Ao som da eterna voz dum invisível sino
Que percutem no céu os altos Ideais.
APÊNDICE
Lenda Antiga
A Velhice e a Mocidade
Nos umbrais da Eternidade
Viram-se um dia. A Velhice
Deteve a outra e lhe disse
Com toda a serenidade
E a mais perfeita meiguice:
“Tu és, encanto adorado,
O perfil do meu passado
E o meu primitivo encanto:
Devo explicar-te portanto
Da vida o mal condenado
E a negra origem do pranto”.
A Mocidade viçosa
Escuta maliciosa:
Prossegue a Velhice: “Evita
O amor que as veias excita,
E a fada misteriosa
Que dentro d’alma se agita:
As bocas rubras e belas
De mil milhões de donzelas
Mais terríveis que a ambrosia...”
— “E depois? depois?” — “Num dia,
Numa noite em que as estrelas
E a branca Lua erradia
Vogarem pelos espaços,
Sentirás talvez os braços
Do pecado traiçoeiro:
Cautela! no mundo inteiro
O inferno semeia laços
Ao pé incauto e rasteiro...”
A Mocidade imprudente
Inquieta, febril, contente,
Disse à velha parladora:
“Deus vos merceie, Senhora,
E vos dê eternamente
A santa luz redentora:
Deus vos pague estes instantes
De surpresas incessantes,
De gozo vivo, fecundo,
E de delírio profundo”.
Abriu as asas brilhantes
E — rindo — baixou ao mundo.
NOTA
HISTÓRIA DE UM CÃO — Pág. 108– Esta fantasia foi escrita depois da leitura de uma simples e sentida página de A. Destroyes, publicada no semanário parisiense La Mosaïque, em 1874. O conto do escritor francês intitula-se “Moustapha — Histoire d’un Chien”. Eis a última parte dessa deliciosa narrativa que inspirou os meus versos. Os curiosos verão até que ponto eu abusei da inspiração alheia:
“Robert mit une pierre au cou du chien, qui tremblait de la fièvre — le saisit rudement et le jeta à la mer. Moustapha ne poussa pas une plainte; on n’entendit que le bruit sourd que fit le corps en tombant dans l’eau. Le jeune homme, un peu honteux, se pencha — pour voir; sa coiffure se détacha et fut emportée par le vent. C’était un bonnet grec brodé par une main amie. Il chercha des yeux et ne vit rien que la cime blanche des vagues; il s’en revint tout attristé — pour le bonnet!
Il était couché depuis une heure lorsqu’il entendit gratter à sa porte, il alla ouvrir: Moustapha se tenait sur le seuil, — le bonnet entre les dents, — appuyé contre le mur. Il était ensanglanté; l’eau, ruisselant de ses poils aux couleurs étranges, se mêlait avec le sang et tombait sur les pierres; il était beau à faire peur. Robert l’embrassa en pleurant et saisit le bonnet grec!
Moustapha regarda une dernière fois son maitre, jeta un cri, — cri de joie d’avoir été embrassé, ou de tristesse d’être si vite oublié, on ne sait! — et mourut!”
ADVERTÊNCIA
Na poesia “A Morte da Águia”, os três primeiros versos da [2.a] estrofe, página [37], podem ser substituídos por esta variante:
O comandante — urso do mar bondoso —
Disse um dia ao escravo rancoroso,
Ao carcereiro estúpido e inclemente:
Alguns leves descuidos de acentuação e pontuação, que escaparam ao revisor, serão facilmente emendados pelo leitor inteligente.
[1] Comme il y a dans la nature humaine une imbrisable unité, il est évident que l’oeuvre de littérature ou d’art conçue et produite ainsi par une necessité profonde doit manifester tout l’homme qui la conçoit et qui la produit, avec son sens particulier du monde et de lui-même, avec sa façon ou tendre ou amère de goûter le réel, avec son être enfin dans ce qu’il a de plus intime et de plus vrai. Mais cet être tient à son milieu par d’invisibles racines, comme une plante au coin de sol dont ele absorbe la sève. Donc, en se transcrivant dans son oeuvre, l’artiste se trouve avoir du coup transcrit quelque chose de ce milieu, une portion de cette grande âme contemporaine dont il est une des pensées, un peu du vaste coeur de sa génération dont les battements retentissent en lui. Il résulte de là que, si la poésie d’un poètesse trouvait absolument en dehors de toute date et de toute époque, elle serait une oeuvre de mort, simple curiosité d’école, bonne à divertir des scoliastes, mais incapable de servir de pâture vivante à des hommes vivants.
PAUL BOURGET
[2] A. Pontmartin.
[3] T. Braga — Parnaso Português Moderno.
[4] Em 72, com vinte e sete anos apenas, Guimarães começou a sua peregrinagem diplomática como adido à Embaixada Brasileira no Chile, após uma curta vida jornalística no Rio, durante a qual deu à estampa os seguintes volumes em prosa: Histórias para Gente Alegre, 2vol. — Filigranas, 1 vol.– Contos sem Pretensão, 1 vol. — Noturnos, 1 vol. — Curvas e ziguezagues, 1 vol. — Biografia do Pintor Brasileiro Pedro Américo, 1 vol. — Biografia do Maestro Brasileiro Carlos Gomes, 1 vol. Em via de publicação, tem o poeta: Lira Final, 1 vol. de versos — André Vidal, drama histórico brasileiro, em verso, A Pátria do Ideal, impressões de Roma, 1 vol.
[5] Poeta bolonhês.
[6] J. WASHINGTON. — A. LINCOLN.
[7] Trad. de JOÃO DE DEUS.
[8] Poeta bolonhês.
[9] Poeta bolonhês.