LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Estilhaços, de Isidoro Martins Júnior
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Texto-fonte:
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Estilhaços.
Edição definitiva. Recife: Tipografia Industrial, 1885.
A meus pais:
JOSÉ ISIDORO MARTINS
E
FRANCISCA E. DE OLIVEIRA MARTINS
Dedico
ÍNDICE
NO TÚMULO DO DR. APRÍGIO GUIMARÃES
À PROPÓSITO DA “CONVERSÃO” DE LITTRÉ
À MEMÓRIA DE JOVINIANO MONTEIRO
Este livro é uma espécie de herbário. Encerra as folhas secas de muitas das minhas emoções mais fundas e mais espontâneas.
Os botânicos, os naturalistas da arte, que estudem nele a evolução efetuada por meu espírito, a marcha seguida por meu cérebro, durante o período de cinco anos que abrangem os versos aí contidos.
Qualquer reflexão crítica que eu aqui fizesse sobre eles seria inútil, penso. Nada de explicações, portanto. Convém, mesmo, que fiquem sem resposta as pedradas de que já foram alvo estas estrofes, as injúrias que lhes têm sido atiradas.
* * *
Os Estilhaços enchem o espaço que vai de 1877 a 1882. Publicados em duas séries incompletas, eles necessitavam, sem dúvida, sair do estado fragmentado a que os forçara a natureza das Vigílias Literárias e formar um todo unido, compacto.
Para satisfazer a essa necessidade de integração, aliás só importante para o autor, ficam eles — os Estilhaços — reunidos aqui, neste volume.
À Critica resta o direito, que já hoje é um dever, de, mais uma vez, esbordoá-los. Não conseguirá suprimi-los, porém, e isto basta.
Recife, 1885.
Isidoro MARTINS JÚNIOR.
Ide! Agita ao Sol as asas escarlates,
Ó poemas febris! Sois filhos dos combates
Que meu crâneo travou no etéreo acampamento
Onde este bom soldado hercúleo — o Pensamento
Tem a sua barraca honesta e luminosa;
E portanto deveis, na face gloriosa,
Mostrar a calma luz dos peitos aguerridos
Que não sabem tremer nem d’arma dos bandidos
Nem da espada leal dos inimigos francos!...
Ide impávidos, pois! Quando os cabelos brancos
Me vierem cercar com um resplendor de lua
A cabeça senil, infecunda, já nua
De ideais, de ilusões, de crenças, de esperanças;
Talvez que apenas seja em vós, doudas crianças,
Que eu encontre um regaço, um ninho imaculado,
Onde vá repousar o coração chagado,
— Meu pobre coração ávido só de Bem!...
Ide e lutai por mim, meus versos! Mas também
No dia em que, a marchar, sentirdes que o cansaço,
O desânimo escuro, o tábido mormaço
Do tédio, sobre mim, vêm vindo, como o corvo
A pairar sobre um morto, — então não vede estorvo
Que vos proíba a volta! Alai-vos para o lar,
E vinde joviais de novo me infiltrar
A crença no futuro, o amor das utopias,
As vermelhas visões que nos meus flóreos dias
Eu procuro esboçar na tela desta vida!...
Versos! P’ra mim vós sois, mais que um farol, — guarida!
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Qu'à défaut de splendeurs lyriques, de beautés
Éclatantes, du moins de fortes vérités
Jaillissent de ces vers !..........................................
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J'écris pour les penseurs, et non pour ces vautours,
Ces gens d'ordre, qu’on voit rôder aux alentours
Des budgets, dévorant les morts sur les rivages !
Alfred Berthezène: Le progrès
(Depois da leitura do seu artigo: — Pour la dernière fois)
A Clóvis Beviláqua.
Ó Mestre! Ó grande pai dos vastos corações
Honrados e viris dos bons conspiradores,
Que vertem contra o Mal os pálidos suores
Do moderno labor, das amplas intuições
Nascidas do dever, crivadas de clarões!
Eu quero te saudar aqui, da minha terra,
A luz d’uma expansão vibrante, filial,
Bem como se saúda em cima d’uma serra
Os sanguinosos tons e o fogo tropical
Que o rubro Sol, de tarde, atira enormemente
À opala sensual e triste do poente!...
Ouve me, pensador! Escuta-me, gigante!
Um dia a tua voz atlética, possante,
Feita do inspiração, de ardor e de verdade,
Branca como a virtude e como a mocidade,
Cantou junto de mim a estrofe radiosa
Translúcida, imortal, querida, harmoniosa,
Do futuro, da paz, do amor, da Evolução,
Do mundo visto à luz de nova concepção!
E foi nesse momento, ó sábio! que lançando
A vista, o meu olhar, pelo infinito espaço,
Do lado em que Paris alteia a loura fronte;
Eu vi brilhar no azul teu vulto venerando
Emergido do albor longínquo do horizonte
E cheio de lauréis, no túrbido fracasso
Que fizeram, tombando, as velhas compreensões
Da vida, do dever, das civilizações!...
E crê que desde então, ó Mestre! eu me curvei
Perante o teu olhar, perante a tua lei
Extático, a tremer, pávido, fascinado,
Sentindo dentro em mim o frêmito sagrado
Que deve enlanguescer e deve acorrentar
Um crente fervoroso em face d’um altar.
Sim. Daí por diante, ininterruptamente
Ó brônzeo lutador!
Eu tenho acompanhado a órbita valente
Que tu traças veloz no céu da Humanidade,
Como um ruivo cometa em toda a majestade
Do seu curso eteral, brusco, deslumbrador!
Tenho-te acompanhado o giro das ideias,
Todo esse turbilhão frenético, sem peias,
Dos sentimentos d’hoje, e pronto a te aclamar,
Disposto a te seguir, e sempre a imaginar
No mármore senil da tua larga testa
Dançarem radiações d’um ideal em festa!
Por isso é que sentindo agora que tu’alma
Despede-se de nós, da Ciência, do combate,
Para ir-se ao calor, para atirar-se à calma
Do ninho da família onde não há o rebate
Estrídulo, sem fim, da luta das paixões,
Dos sistemas, das leis, das fundas dissenções;
Eu busco te enviar do âmago do peito
A minha saudação rítmica, o meu preito!
Aceita-o, grande mestre. O ciclo luminoso,
Esse longo estádio aberto e rumoroso
D’um estoico viver altruístico, profundo,
Que tu sagraste ao Justo e consagraste ao mundo
Prendendo-o à nossa idade inovadora, austera,
Como uma nebulosa ao plano d’uma esfera;
Esse ciclo potente, — está fechado agora
Pela tua palavra universal, sonora!
Ó rígido ancião, ó velho novo e bom!
Ó franco sonhador do vigoroso tom
Da música do Bem!
Acabas de mostrar o modo por que vem
Um homem do porvir, um rei do pensamento
Altíssimo, opulento,
Ao termo desta liça à que se chama vida,
À boca dessa esfinge hiante, indefinida,
À que se chama morte!
Depois de haveres posto, indomável e forte,
Aos pés da Humanidade a imensa afirmação
De que todo o universo e tudo que ele abraça,
Desde a antera da flor aos crimes duma raça,
Está submetido a leis inamolgáveis
Como a lei da atração;
Depois de teres feito, em prélios formidáveis,
Cobrir-se de esplendor a infinita bandeira
Com que de Augusto Comte a ideia sobranceira
Brindara os batalhões do pensamento novo;
Após teres pisado ao fulvo olhar do povo
As lendas, o mistério, as velhas teogonias,
Fabricadas da cor das noites mais sombrias,
E haveres reerguido, enfim, desassombrados
Princípios varonis como o dos três estados;
Após teres provado os beijos da vitória
E talvez teres visto a dor por entre a glória
A te morder o seio....
Tu diriges-te agora, ó Mestre! sem receio
Para o regaço brando e tépido da paz,
Para a penumbra sã do lar, onde teus pais
Te ensinaram outrora
À amar sempre o porvir, a caminhar na aurora!
Salve, ó cimentador ciclópeo, venerando,
Dessa reconstrução que está se elaborando
Em roda do presente!
Salve, ancião que foste um reto combatente!
* * *
Neste momento estás a descansar, sereno,
Como um leão senil, na curva de um terreno...
A ideia de morrer não te cava no rosto
Uma só ruga mais, e esperas sem desgosto,
Co'uma resignação de mártir hodierno,
Que desça sobre ti o pesadelo eterno
Que transforma a razão em gazes deletérios
E faz, d’um cancro, flor, no chão dos cemitérios...
Mestre! Podes morrer. É assim a iluminada
Vida de quem, se um dia, ergueu alguma espada,
Foi para reverter-lhe a lâmina que aterra
Contra a dor, a miséria, o despotismo, a guerra.
Essas vidas-clarões terminam sempre assim:
— Com a brancura ideal, virgínea, d’um jasmim!
1880.
Não; não morreste não, condor brasílio,
Que nunca morrerão teus puros versos!
Narcisa Amália
Quem foi, quem foi o homérico gigante
Que se rojou no chão daquela campa,
Qual o condor que farto das alturas
Adormeceu nos matagais do pampa?...
Silêncio, em roda! Ess’alma lapidada,
Esse diamante imerso na poeira,
Igual às gemas do colar dos séculos
Há de rolar dos séculos pela esteira!
E rolará, decerto! O crânio vasto
— Ânfora aberta aos lumes d’amplidão —
Que fez brotar espumas flutuantes
Como per’las, do mar da inspiração,
Não pode ser do barro do sepulcro
— Cárcere humilde que não prende Hugos, —
Quando esses deuses são troféus, que a Terra
Ao louco orgulho do Infinito opôs!
Era um poeta, esse mancebo. Ergueu-se
Como a espiral do vento do deserto,
Quando cospe a saliva das areias
No dorso nu do beduíno incerto!
E, sacudindo aos seios do universo
Os luminosos cantos do porvir,
Enfestonou com os louros do talento
A face azul do rápido existir!
O sorvedouro enorme das ideias
Esbatia-se ali naquele peito,
Bem como o turbilhão de Paulo Afonso
Bate nas rochas, pálido, desfeito!
E como as espadanas cristalinas
Da catadupa imensa no fracasso,
Assim da fronte aureolada, jovem,
Saltou das melodias o estilhaço!
Foi grande como a luz. A Liberdade
Era-lhe um templo esplendoroso, extenso,
Onde cantava o órgão da esperança,
Onde rezava o Ideal suspenso...
E ao destilar do choro dos escravos
Serpejando na treva da tristeza,
Pareciam punhais as suas rimas,
Que porejavam tons de Marselhesa!
Ele amou e sentiu... Mas não deixava
Da Nova Lei os santos arraiais!
Byron também aos beijos da Princesa
Ouviu da Grécia os soluçantes ais.
Quando os dedos de fogo do Progreso
Deslaçavam as silvas do caminho,
Do perfumoso colo das Haydeias
— Águia da luta — ele fugia ao ninho!
Silêncio, pois, diante dessa tumba
Que representa um auto do futuro!
E nem ao menos a miséria de hoje
Roce os degraus desse alcaçar escuro....
Sim. Que esse vulto decomposto nele
Deixou, morrendo, no troar da glória,
“Após um nome do universo n’alma
Um nome escrito no Panteão da história!”
1878.
(Imitação ampliada de uma poesia de Ruckert)
A Clodoaldo Freitas
Foi no solo da Ásia. O mágico profeta,
O Chidder imortal que a Pérsia tinha visto
Com a loura palidez terníssima do Cristo
Rasgar, atravessar, como uma eterna seta,
Os báratros do tempo, as noites sem medida,
Que gestaram no espaço o movimento, a vida;
E correr, e saltar por cima das colinas,
Dos pagodes, do mar, dos povos, das ruínas,
Sem nunca se cansar e nunca envelhecer;
O mito que sentia a seiva rosicler
Da alegre juventude infinita, valente,
Queimar-lhe sem cessar o crânio de vidente;
Parou n’um certo dia à margem d’uma estrada
E contou esta história à multidão pasmada:
— Eu passei uma vez ao pé de uma cidade
Grande, trabalhadora. O ar da liberdade
Enchia os corações d’uma alegria boa,
Bela como o porvir, forte como a leoa!
Admirou-me a luz e admirou-me a paz
Daquele progredir intérmino, tenaz,
Que eu via se estender prodigiosamente.
Aproximei-me então. A flora do oriente
Abria n’um jardim pequeno, delicado,
O seu largo viver pujante e perfumado.
Um homem contemplava a púrpura das flores
E colhia de manso os frutos tentadores....
E eu disse-lhe: Em que tempo, ó bronco jardineiro,
Rude cultivador das rosas do canteiro,
Edificou-se aqui esta cidade enorme
Que parece, de longe, um Briaréu que dorme?
Respondeu-me o hortelão: Desde que o mundo existe,
Desde que brilha o Sol, tudo isto que tu viste
Se acha neste lugar ubérrimo, fecundo,
E só sucumbirá quando morrer o mundo!
E eu pus-me a caminhar... Dez séculos após
Busquei no mesmo sítio o som da mesma voz.
Não vi mais dessa vez a múrmura cidade
Altiva, vigorosa. À frente de uma herdade
Um campo sacudia a sua coma escura
Feita de vegetais e feita de frescura...
E enquanto um sonolento e plácido rebanho
Mordia e ruminava as ervas do valado,
E a flauta do pastor em sonoroso banho
De músicas, de sons, molhava o descampado;
Eu pude perguntar a um rústico aldeão:
— Quem foi que destruiu a valida nação,
O povo senhoril que eu vi neste lugar?...
O rústico tornou-me: O teu imaginar
É louco e pueril; aqui, eternamente
Medraram, medrarão só ervas e semente!
E eu pus-me a caminhar... Dez séculos após
Busquei no mesmo sítio o som da mesma voz.
Achei, porém, agora um grande mar troante,
Intérmino, febril, colérico, espumante,
Em cujo dorso azul o Sol relampejava!
Olhei por sobre a praia. Um homem atirava
Ao ventre desse abismo a rede traiçoeira
Enquanto a onda alçava a turva cabeleira.
E eu disse ao pescador, então, me avizinhando:
Ó velho, há quanto tempo, ou antes: desde quando
Sacode este oceano aqui as suas vagas?...
O homem respondeu-me admirado, rindo:
— O mar sempre aqui foi; mesmo co’o mundo findo
O mar há de lavar estas risonhas plagas!
E eu pus-me a caminhar... Dez séculos após
Busquei no mesmo sítio o som da mesma voz.
Já não havia mais o mar impetuoso
Quebrando sobre a rocha o corpo monstruoso.
Eu vi uma floresta e vi uma cabana.
A seiva sensual, potente, americana,
Parecia saltar das árvores, do chão,
Por entre o majestoso e grosso turbilhão
Dos troncos colossais, das folhas, dos verdores!
Então eu perguntei a um homem que abatia
Um galho secular, se acaso ele sabia
A idade sem limite, os anos roedores,
Que deveria ter, em si, aquela selva
Banhada pelo orvalho, erguida sobre a relva...
E ouvi esta resposta: Eu amo esta floresta
Tanto quanto se adora os risos d’uma festa.
Meus pais viveram sempre à sua fresca sombra,
E eu pretendo morrer na solitária alfombra
Das folhas, do seu pó. Mas ela aumentará
Porque nunca secou nem nunca morrerá!
E eu pus-me a caminhar... Dez séculos após
Busquei no mesmo sítio o som da mesma voz.
Mas inda dessa vez um panorama novo
Abriu-se ao meu olhar. A forte voz do povo,
A voz que tem gerado os grandes cataclismos,
E tem aberto ao mundo as fauces dos abismos
Purpúreos e mortais chamados — Revoluções,
Bramia n’urna praça, assim como os trovões
No bojo d’uma negra e feia tempestade!
Eu tinha à minha frente um mundo, uma cidade.
Interroguei n’um grito a branca vastidão:
— Quem foi que arremessou aqui esta porção
De edifícios, de muros, d’homens, d’arsenais?
Onde estão a floresta e os frescos vegetais?
Que é feito do pastor e é feito do oceano
Espumoso, voraz, fremente, sobre-humano?...
Bradou-me alguém do povo: Aquilo que aqui está
Nunca deixou de ser e nunca findará!!
Tu és talvez um louco!... Agora e no futuro
Cresce e prosperará o nosso asilo... Juro!...
E eu pus-me a caminhar... Dez séculos após...
E eu quero ver, porém, se escuto a mesma voz!
1880.
.....................Eu fico alegre e satisfeito
Se vir o meu bouquet nas curvas do seu peito,
Entre os flocos sutis de rendas transparentes!
M. Papança
Minha Senhora. Escute: O mármore de Paros
Tem reflexos bons, luzidios, alvejantes;
Mas não ganha-lhe o seio em linhas ondeantes
Nem tem a fresquidão dos seus sorrisos claros.
A excelência votada aos objetos raros
Faz ver-se-lhe no olhar o fogo dos brilhantes,
Mas eu não sei se a luz das pedras cintilantes
Tem na retina fulva esses lampejos caros...
Entretanto o ideal da plástica da Grécia
Junto ao recato puro e grande de Lucrécia
Fizeram-lhe a textura aérea tão sonora,
Que eu peço permissão p’ra, ungido de respeito,
Ir plantar esta flor na urna de seu peito,
E ouvir-lhe a vibração da música da aurora!
1879.
(Pelo tricentenário de Camões)
I.ª época: — 1580
Não despregueis o olhar desse mendigo obscuro!
— Vede como coseu-se agora contra o muro
A sombra desse vil, que anda como um ladrão,
Fugindo à sociedade e amando a escuridão!
Não despregueis o olhar. Ouvistes um lamento
Feio como a agonia e vago como o vento?
Nada de sacudir p’ra fora do caminho
Essa miséria viva, esse noturno ilota,
Como se faz aos cães: com a ponta d’uma bota!
— Isso seria mais um penetrante espinho
Cravado sob os pés d’um desgraçado ser!...
Demais, eu vos exponho e dou-vos a entender
O enigma infeliz que tendes ante os olhos
Como um bocado ruim de trevas e de escolhos...
Ouvi: Naquela esquina escura, amarelenta,
Em que se quebra ao longe a rua sonolenta
Numa concentração profunda de mudez;
Ali, onde se estira às vezes um vadio,
E passa velozmente um pávido burguês
Que segue para casa a esconjurar o frio;
— Ali negreja um vulto.
É quando a noite vem
Que ele se esconde, assim como quem teme alguém.
Embuça-se n’um manto áspero, esfarrapado,
Faz leito d’uma sombra, exuma o seu passado,
E deixa-se bater das auras murmurosas
Enquanto as horas vão... cruas, silenciosas...
Mas inda não é tudo. Esse ignorado pária
Que tem dentro de si a flama tumultuária
Dos instintos fatais que nascem da miséria,
E que dorme ao langor da palidez sidérea
Misterioso e só como uma esfinge antiga,
Espera no seu posto a vibração amiga
D’um peito, d’uma voz, que é quem lhe afaga a vida
Tremente, sem calor, anêmica, dorida!...
Então mais tarde, quando a treva rarefeita
Avista muito longe os risos da alvorada,
E a luz vai a beijar a terra que se enfeita...
Representa-se ali a cena magoada
D’um drama original, trágico, nebuloso!
O entrecho é muito curto inda que doloroso;
É isto: — Um’outra sombra esguia, fugitiva,
Cujo trôpego andar reflete-se na ogiva
E que passa gemendo e que pede uma esmola;
Depois de ter lançado à sórdida sacola
Uns pedaços de pão achados no monturo
E uns míseros vinténs que um coração mais puro
Dignara-se atirar em cima do mendigo:
Dirige-se p’ra ali, junto do seu amigo,
— O vulto silencioso habitador da esquina —
E dá-lhe p’ra comer n’um ângulo da praça
O tábido manjar do espólio da desgraça!
É que rói-lhes o corpo, — acelerada, fina,
A fome — essa brutal, essa potente traça!
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E agora sabei mais: se a luz adamantina
Da face desse herói vestido de vilão
Que soube ser escravo e sabe ser irmão;
Se o largo sentimento, o fundo amor filial
Desse mendigo-rei, dess’alma sem rival,
Não tivessem aberto luta contra a sorte...
Há muito que o rigor da grande lei da morte
Teria aniquilado o amigo, o vulto austero!...
E então jamais alguém naquele olhar severo
Podia ler sem custo o poema do tormento
Como ele o padeceu: duro, sombrio, lento!
A vida desse vulto?... — É pavorosa, triste,
Como o quadro do Dante a que Ugolino assiste.
— Soldado, ele sentiu verter-se o próprio sangue,
— Amante, viu su’alma esfacelada, exangue,
Mordida aos dentes vis d’um negro preconceito;
E — Poeta, ao palpitar gigante de seu peito,
Sentiu a inspiração secar na indiferença!
Agora... vive só na escuridade extensa
Do polo do existir onde não entra a luz.
Mora no esquecimento, arrasta a sua cruz,
E vai talvez buscar p’ra alívio de seu mal
O último remédio: — as portas do hospital!
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Há uma cousa só depois de tudo isso:
— Da cova e do coveiro o lúgubre serviço
A remover um corpo e a revolver a cal...
Mas há também da História o júri triunfal.
2.ª época: — 1880
O Sol rompeu agora as névoas do oriente.
Formoso, sensual, ciclópico, esplendente,
Um raio seu dourou as cúpulas do espaço
Que alveja como o linho e fulge como o aço!
Anda pelo universo uma alegria estranha
Que voa da montanha
E voa do infinito,
E que abrange não só a penha de granito
Como o verde silvado, os corações e as almas.
Parece que há um coro uníssono de palmas
Fazendo levantar o eco nos barrancos,
E abrindo longamente uns risos muito francos
Na enorme vastidão dos largos continentes!
Alteiam-se na mata os júbilos das aves,
Pávidos, inocentes,
Vívidos e suaves;
E eu vejo no frescor da Humanidade inteira
Uns tons de heroicidade antiga e sobranceira!
* * *
Silêncio! É um grande preito a grande procissão
Que o mundo de hoje faz à túrbida mansão
Da história e do passado!
É um cortejo santo
Esse, que leva a Terra a derramar seu pranto
Na tumba onde repousa um forte combatente
Das pugnas da Ideia, e a pôr-se reverente
De joelhos, compungida, ante uma pobre ossada
D’um velho pensador!
Silêncio, pois; silêncio! A dívida sagrada
Que nós pagamos hoje entre o prazer e a dor
Ao ser que se partiu nas duras privações
D’uma existência vil e se chamou Camões
— O soldado do Tejo e o mártir de Macau —
Há de nos afastar enfim da consciência
O peso que produz um pesadelo mau...
E já que agora mesmo as Artes, a Ciência,
As letras e o labor, n’uma harmonia enorme,
Embalsamam de luz o lutador que dorme,
Criando deste modo as festas do futuro;
Abramos sem temor o nosso seio puro
Às santas expansões destes exemplos grandes,
Limpos como o cristal, soberbos como os Andes!
* * *
Perante esse painel sereno, iluminado,
Que mostra neste instante um brilho imaculado
À face esmeraldina e mágica da América,
Eu sinto-me tomar d’uma paixão homérica,
Estrídula, gigante;
E chego a me julgar na idade radiante
Em que sonho o Trabalho, o Justo e a Liberdade
Reinando sobre a Terra e unindo a Humanidade!...
1880.
Desfaz! Quebra! Estilhaça o teu rosário,
Calca, assoberba, esmaga os teus tiranos.
G. Braga
Lève ton front, peuple, je te proclame
De la courone héritier présomptif.
Béranger
É tempo de afiar a espada da Vingança
No rochedo imortal da tua consciência!
Ó Povo! Para longe a torpe sonolência,
E faze d’um direito a ponta d’uma lança!
Eu vejo-te servil, clorótico, doente,
Atado, como um Cristo, ao tronco da polé!
Nem sentes mais vibrar o turbilhão da fé
No côncavo do peito aspérrimo, fremente!
Outrora, quando a luz dos rábidos canhões,
— A luz da independência, a luz do teu olhar,
Erguia-se feroz com a pompa d’um altar
Com o férvido ruir das grandes explosões;
Outrora, quando o vulto austero de Gonzaga
E o mártir Xavier, sobre o torrão Mineiro,
Arcavam contra a lei ferina do estrangeiro
Em gritos de fuzil, com o ferro d’uma adaga;
Nos tempos em que o Norte ouvia Teotônio
E a lava — Rev’lução bramia em Pernambuco,
Nos tempos em que o sabre e a fala do trabuco
Alçavam Pedro Ivo ao ruivo pandemônio,
Então, ó Povo! Sim! Tu eras um gigante,
O fero Adamastor das lendas do passado!
Saltava-te do crânio heroico, iluminado,
A imensa radiação d’um astro deslumbrante!
Mas hoje... não tens mais essa loucura santa.
Deixaste a f’licidade elétrica da Glória,
E sepultaste até nos antros da memória
O pó das tradições, os louros que se canta!
E agora... eu tenho pejo até de te apontar
Escuta! — o reluzir do céu da Redenção;
Parece que olvidaste o vulto de Catão
E gostas de sentir o vício respirar!...
O mundo que te fecha, o mundo que te abraça
É feito de tortura e risos de entremez;
Conhece-se de ti na gangrenada tez
O crânio embriagado, a consciência baça!
Os sátrapas da lei, teus velhos inimigos
Que abriram-te um bordel e deram-te um Senhor,
Fizeram-te beber o vinho do impudor
No cálice infernal dos túrbidos castigos!
E nem se te revolta o sangue americano,
E guardas a mudez do eunuco bestial!
No entanto sobre o monte as águias do Ideal
Alongam seu caminho harmonioso, insano....
É tempo de apagar o teu pecado, ó Povo!
Esquece o Prometeu e diviniza Atila!
Descerra uma coorte, apresta a tua fila,
E fortifica n’alma o pensamento novo!
Eu quero te avistar estoico, ensanguentado,
Arremessando o corpo aos tremedais da luta!...
Afasta do teu lábio o copo da cicuta!
Aperta contra o flanco as c’roas do passado!
1879.
Ó minha amante! Ó Musa!
Inclina-te p’ra mim;
A noite está confusa
Bem como um sonho ruim.
Curva o seio teu de opala
Sobre o aço de meu peito;
Enquanto o arvoredo fala
Nós buscaremos um leito.
Há uns trêmulos vagidos
Aqui, nesta solidão:
Eu acho que são gemidos
Da matéria em gestação.
Anda depressa. O teu braço
Tem sensações maviosas;
Vamos dormir neste paço
Feito de comas frondosas!
O vento vibra apressado
Umas notas esquisitas,
Fazendo ao manto do prado
Umas ligeiras visitas...
Parece que andam gnomos
Enchendo esta vastidão,
E a treva fazendo momos
Dorme, estirada no chão!
Caminha! Vem. Nós amamos
A luz das cintilações!...
................................................
Os astros do céu são ramos
Que dão-nos a flor — clarões!...
1879.
Há desertos terríveis, flagelados
Por um sol implacável. Vastos mares
De areia movediça se desdobram
Até perder-se além nos horizontes.
Nem uma gota d'água nesses ermos!
A noite lhes negou seu fresco orvalho,
E as chuvas do verão fugir parecem
À seu hórrido aspecto...
F. Varela
Horror! A natureza às vezes é madrasta.
Quando a raiva lhe vem, agarra uma vergasta,
Um elemento seu, —e vai matar o pária
Em vertigem febril, em fúria incendiária!
Por isso é que passou além um vendaval
Cheio de morte e luz, cheio de treva e mal,
E da rubra chapada ao tórrido terreno
O ar que se respira é feito de veneno...
Aprofunda o olhar no seio d’um sertão.
É um exemplo brutal que esmaga o coração:
Na mórbida nudez da esfera afogueada,
Que luz como urna brasa e fere como a espada,
Escuta-se um rumor pesado, lancinante!
De vez em quando passa o bando ruminante
Dos escravos sem cor da gleba da miséria,
E sente-se ondular uma tristez funérea,
Estranha, dissoluta, impávida, infinita,
Ao som de cada pranto, ao som de cada grita!...
As aldeias estão como sepulcros vivos.
Em roda vê-se a dor — a larva dessa vala,
Erguer-se e rastejar com gestos aflitivos!
No meio do estertor da vida que se estala
O espaço empederniu-se. Os fogos tropicais
Embebem-se no solo assim como punhais.
A luz meridiana, em curvaturas quentes,
Espalha pela Terra uns tons incandescentes
Que têm cintilações mortíferas, nervosas!...
A enorme rispidez das serras luminosas
Está como um protesto irado de granito
Alçado no deserto à sanha do infinito,
E os raios do Equador, os grandes raios broncos,
Saíram como sai a cascavel dos troncos
Para andar tonsurando a várzea, os campinais!...
Nem saltam mais da terra as seivas vegetais!
Por toda parte a morte estende-se em negror,
Como fotografando a esqualidez do horror!
Olhai: vai perpassando um grupo lazarento,
Roto como um andrajo e mau como um lamento!
A ruiva solidão da silenciosa estrada
Tem um riso de hiena e traços de agonia...
Referve a calidez. As pedras da esplanada
Escondem no areal uma feição sombria.
E os queimados aldeões, os párias, vão andando
Cadaverosos, nus... Talvez que recordando
O tempo que se foi, a quadra da fartura,
Quando havia um painel de rústica ventura
Em cada coração de rude sertanejo,
E havia cada flor que parecia um beijo
No pávido rosal pueril da virgindade!
Caminham sem cessar. Atroz fatalidade
Incita-os a seguir, como um chicote em fogo,
E não atende ao choro e não atende ao rogo.
Arrastam-se na poeira estrangulados quase
Pelos pulsos da dor, na derradeira fase.
Os pais vão estancando as lágrimas dos filhos
Co’os cardos da devesa e dos luzentes trilhos,
E às súplicas das mães e às preces das crianças
Juntam pragas fatais, agudas como lanças!
Dante estremeceria! — Os tábidos montões
Dos corpos sem calor, dos podres esqueletos,
Estão servindo agora às sórdidas paixões
De abutres sensuais, carnívoros e pretos....
E os leitos que eles têm — os pobres foragidos,
São esses estendais de carne, apodrecidos!
É mais escuro, então, quo a lenda de Ashavero
Este suplício cru, ensanguentado e fero!
E é tanto mais cruel, quanto esse polvo — a fome
Enlaça-lhes o ser em contorções sem nome!
Os ciclones da morte, os ciclones da Dor
Lançaram certamente o busto aterrador
Por sobre este local, por sobre este torrão!
O bravio corcel infrene do tufão
Arrastou por aqui a pata impetuosa.
As árvores, o rio, a fonte murmurosa;
Os pássaros; a grei dos rijos animais
Que em trabalhos fiéis, grandes e joviais
Eram o complemento aos lares do matuto;
Desertaram também do círculo poluto
Onde viram lombar os la¡vos da desgraça,
E foram se atirar, como infamada raça,
Ao fundo sepulcral dos pérfidos barrancos
Que deram-lhes por cova as pedras de seus flancos!
E assim tudo ruiu no imenso cataclismo.
Desde a ponta do monte ao vórtice do abismo,
Desde a antiga cabana até onde houve prado,
Avista-se somente o chão incinerado
Escancarando o rosto estólido, ruim...
Deve ter sido assim a face de Caim!
* * *
Agora erguei a vista esgazeada. Ouvi-me:
Irmãos! Se foi castigo ou se houve um grande crime
Que levou a pregar na cruz do desespero
Os filhos do trabalho, um povo todo inteiro;
Se não foi um produto ou rev’lução fatal
Da eterna natureza heroica e maternal
Essa calamidade insana e pavorosa;
Se o rábido Jeová, o Jove moribundo
N'um acesso sem fim de cólera invejosa
Sacudiu para cá das sombras do seu mundo,
Como andam propalando os mochos do papado,
Essa chuva de fogo em troco d’um pecado...
Então — a execração da livre Humanidade
Há de ser um fantasma em frente à divindade!
.......................................................................
E eu, que não sacrifico às aras do egoísmo,
Que não vergo a cerviz ao cego servilismo
E que creio no Bem, no justo, no Ideal;
Eu anatematizo em nome da Ciência,
Em nome da Verdade, à luz da independência,
A imagem secular do velho Deus do mal!
1879.
A Leovigildo Samuel
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora!
Queimemo-nos a nós iluminando a Terra;
Somos a lava, e a lava é quem produz a aurora!
Guerra Junqueiro
Desperta, pensador! As órbitas dos mundos
Mergulham-se na luz que brota do levante,
No fogo que concebe os ideais profundos;
E o ruivo meteoro — a Evolução gigante
Tem risos de cristal — os risos bons, fecundos!
Vai deixando na terra os sulcos da charrua
A ideia, a ideia nova — o Etna candente!
E vai deixando a treva exposta, fria e nua,
Ao ósculo poluto e flácido e mordente
Da sombra do passado estatelada e crua!
Um grande magnetismo azúleo, jovial,
Feliz como a criança e forte como o aço,
Estende no horizonte um hino etereal,
Rosado como a flor, sonoro como o espaço,
Ensanguentando a face anêmica do mal!...
Mas vem a reação com a raiva leonina.
As letras, o futuro, as glórias, o trabalho,
Obriga-os a fugir.... o pó de uma batina,
Que ruge como a forja ao manejar do malho
No templo que ela odeia — a esplêndida oficina.
E a luta é lampejante. O Bem, a Liberdade,
Os lumes da ciência, as flores da razão,
Encontram no caminho a sórdida maldade,
A vil hipocrisia, a negra maldição
Da c’roa e da tiara — algozes da verdade!
E então pelos degraus da câmara papal
Embriagada vê-se a pálida Justiça,
Enquanto a messalina — a púrpura real —
Asfixia o Direito, ouvindo mesmo a missa,
E compra, dando esmola, o rir de Juvenal!
É arena gigante aberta aos gladiadores!
Todo o infinito azul que abraça globo e globo.
E ao pé dos fariseus que andam plantando dores
Do polo norte ao sul, passa brincando o bobo,
Curvo como um alfanje e vil como os pretores.
Vamos ao chão da liça! Erguei-vos, corações
Cujo sangue é de lava e vos chamais poetas!
Aprendei a servir de ninho às gerações
Que sabem meditar o verbo dos profetas
E contam do progresso as férreas pulsações.
Desdobrai pelo ar vossas enormes almas
Feitas de muito fogo e feitas de harmonia!
Vós deveis procurar do Capitólio as palmas
Nas entranhas do povo, — a região sem dia
Que não conhece aurora e tem tristezas calmas!
Faz-se mister que além dos langues trovadores
De lira modulada ao vento das paixões,
Haja Titãs de bronze, ousados lutadores,
Que batam-se do século aos vívidos clarões
Em nome da Justiça, em prol dos sofredores.
Porque: — só se atraindo à pugna vermelha
Os cérebros de ouro, as lâminas da ideia,
Fazendo-se florir o ensino — essa centelha,
É que há de se matar a escuridade feia
Que projeta-se aí como hedionda velha!
E já que os mundos têm as orbitas em luz,
Enquanto o vício alvar fermenta como a lama,
Façamos ressaltar o pensamento a flux,
Beijando a delirar da liberdade a flama;
Roubemo-lo ao suplício infame de Jesus.
Tiremos desse grande incêndio — a indignação —
A chispa do dever, a brasa do heroísmo,
Para lançar o crime — o Judas da razão
Na gorja famulenta, escura, d’um abismo,
Ou enxotar a Fé, como se enxota um cão!
E como é necessária a guerra no universo
Para livrar da morte o raio genial
Que embala o pensador como se fora um berço,
— O poeta deve ter somente contra o Mal
Este canhão — a Ideia; este pelouro — o Verso!
1879
A Gaspar Regueira Costa
Ó bosque! Abre-me os braços teus, os musculosos
Membros, d'onde a resina em bagos sanguinosos
Pinga, como o suor do corpo de um gigante!
Eu vim me embebedar, alegre qual bacante,
Com o vinho que tu tens nas dornas do teu seio!
A imensa robustez que traz-te o corpo cheio
Das orgias da luz, das florações da vida,
A atlética expansão dess’alma enriquecida,
Que lava-te o perfil n’um banho esmeraldino,
Um banho sensual, esplêndido, divino,
Repleto de prazer, repleto de saúde;
Essa explosão de força exuberante, rude,
Que rebenta de ti como rebenta o chão
Quando o estertor sacode os peitos do vulcão,
E que faz do teu ser um palácio encantado,
Um palácio de seiva, oriental, dourado
Pelo gênio do Sol — o Rubens do infinito;
Todo esse fermentar ciclópico, ruidoso,
Grande como o Ideal, possante como um grito,
Que tu sentes bater no teu ventre orvalhado,
— A flor, a luz, a seiva, o espaço imaculado...
Tudo isso descerrou-me as cem bocas do gozo!
Eu vivia lá fora, insuportavelmente,
No múrmur da cidade entrecortado e quente
Peiado pelo spleen, mordido pelo tédio.
Atolava-me então na pacatez doentia
D’um cônego sem cor, engordurado e nédio...
Mas aquele que vive assim como eu vivia
Nas modernas Babéis chamadas capitais,
Que são feitas de cal e feitas de gangrenas,
De púrpuras de aurora e hálitos de hienas;
Aquele que tem visto as lutas colossais
Do rábido centauro — a torva multidão —
Subirem sem parar, assim como um balão,
Aos páramos sem fim das cóleras fatais...
Oh!... esse deve ter o rúbido sentir
Do amor da natureza eléctrico, selvagem,
Que faz d’um tronco bruto um mundo de folhagem!
Por isso foi que eu vim, ó bosque! Para ouvir
O estúrdio ramalhar da tua enorme coma,
E os ruídos de luz que beijas quando assoma
Tirando-te o barrete em cima da montanha
O Sol, o grande rei, o fúlgido Paxá!
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E mais: para mirar a corpulência estranha
Que mostras no teu bojo e frutifica e dá,
N’um anseio jovial, indômito e eterno,
Quer seja no verão ou nos prantos do inverno!
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Pois bem. Vai te vestir de pompas e de flores!
Eu preciso beber os límpidos licores
Fabricados por ti de orvalhos e de mel.
No teu robusto lar, bem como n’um tonel,
Eu hei de descobrir os vinhos mais custosos,
E havemos de passar momentos preciosos
Arremedando aqui as saturnais pagãs!...
Nem sabes como estou contente. Nas manhãs
Em que a luz for demais e o ar ’steja cantando
Nós havemos de pôr-nos juntos, evocando,
Os sátiros de Horácio, as dríades gentis,
E talvez que reviva o bucolismo. Ris?...
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Entretanto eu irei sorvendo o teu vigor
Ó bosque, ó grande paço informe, encantador!
E enquanto eu te cantar a rústica beleza...
Beijarei no teu ser o ser da Natureza!...
1879
A Lima Botelho
Acorda, Inspiração! Musa, voemos
Pelo azulado e límpido regaço.
Vamos pousar nas fímbrias das estrelas,
E beber o luar além, no espaço!
Aninha-se o favônio nos cabelos
D’uma fada noturna e vaporosa....
Não vês os silfos espargindo flores
No regaço da noite majestosa?
As ondinas no mar tímidas vagam,
Dormem, nuas, sedentas de ardentia.
Vamos passar na face do oceano,
Demos-lhe, ó Musa, um floco de harmonia!
Tudo canta, não vês? Ali é o vento
A suspirar endechas nos balsedos....
Aqui — a fonte, a solidão e o eco
Murmurando entre si ternos segredos!
O manto ebúrneo da divina Febe
Se estende ao longe n’um matiz de prata;
Ala-te, fada! Aos alcantis sidéreos
O voo altivo do condor desata!
Há muito gênio à se librar nas gazas
Tépidas, leves, do alcaçar dos céus!...
Lá nas alfombras dos etéreos campos
Vicejam flores sob azúleos véus!
E os gênios bailam dedilhando as harpas
Tênues, banhadas no orvalhar da noite,
E as flores langues vão dormir sentidas
Das leves auras ao fragrante açoite!...
Delira e canta! A natureza dorme
Semi-velada no cetim do belo.
Ela — a odalisca dos haréns do éter
Dá vida ao carme, aos corações anelo!
O espaço é imenso. As tuas asas d’ouro
Guardam perfume, o devaneio exalam.
Abre-as e larga as suspirosas notas
Que enlevam tudo e que minh’alma embalam!
Minh’alma é garça alvinitente e pura
Que imerge o colo no caudal marino....
Lava lhe as plumas nas cerúleas ondas
Da Poesia, esse caudal divino!...
Sinto que as cordas do meu peito estalam
Do teu alento ao perpassar vivace;
Musa! Sacode o teu cendal de sonhos
À minha triste e cismadora face!...
1877.
A Generino dos Santos
Podeis abrir no espaço as bocas estridentes
Ó torvas criações da vesga Teologia!
Alas antes aprendei: A Evolução sombria
Matou no santo hastil a escura flor dos crentes!
Não vingam d’ora avante as pútridas sementes,
Os germens que alentais no pó da sacristia.
O tempo — a grande mó — na eterna romaria
Ensurdeceu a Terra aos gritos dos videntes....
Debalde, pois, marchais por entre o nebuloso
Buscando o vosso Olimpo anêmico, ocioso,
Oculto pelo azul do plácido Horizonte.
Debalde! Pois que mesmo o vão Metafisismo
Envergou a libré sem cor do anacronismo,
Quando, bela, surgiu a Lei de AUGUSTO COMTE!
1879.
A Francisco Campelo
Era uma tarde azul, esplêndida e sonora
Como um sonho de amor, ou música que chora.
O ar, oceano etéreo, arfava brandamente
Como um seio de moça em flacidez dormente.
Das orlas do horizonte os alourados nimbos
Pendiam, como a flor dos mádidos corimbos,
E o Sol mandava a luz cortante como espadas
Beijar o ventre à Terra em crispações douradas...
Era urna tarde assim: garrula, americana,
D’uma alegria fulva, indefinida, insana.
Pejavam a amplidão de cintilantes faustos
Do Deus — a Natureza — os fecundantes haustos;
Da serra ao pedregulho e da palmeira à grama
Parecia saltar a poesia em chama....
E o campo abria os hirtos braços às enxadas
Qual mãe que abrisse o peito às filhas esfaimadas!
Tinha delírio a sombra; a luz tinha expansões
Ali, na face adusta e rija do sertões;
Borbulhava o viver aí onde o Calvário
Levanta-se p’ra o Cristo — o rústico operário!
Perdia-se no espaço em mávias espirais
O cálido vapor dos climas tropicais;
E a tarde semelhava a indígena, que à sesta
Se vinha recrear na rede da floresta.
Tanto era grande o quadro, a natureza virgem,
Que o vento era condor e o céu tinha vertigem...
Mas faltava na tela a plástica suprema
Dessa beleza agreste e livre de Iracema;
Faltava-lhe o sorrir da dríade eloquente
Que falasse aos ervais e às per’las da torrente!
Vinha, porém, silvando entre os frechais da cana
O corpo amorenado e langue da serrana...
* * *
Umas ondulações selváticas, escuras,
Como as que o pó sacode à noite nas planuras
Quando a semente brota ao magro camponês,
Pareciam lamber o corpo da matuta,
Iam de quando em vez
Deitar-se-lhe no seio, assim como na gruta.
Andava se esgueirando o fluido dos campos
Grande como o que é bom, magnífico, sutil;
E o crepusc'lo atirava ao mato pirilampos
Para irem, marchando em batalhão gazil
À tasca dos pauis,
Comprar fosforescência e difundir a luz...
Ela bebia a tragos
Essa corrente imensa, elétrica, expansiva,
Como quem sorve esse suor, que em bago
Mana dos poros nus da noite pensativa.
O aroma da baunilha
Não deixava no espaço o filtro que corria
Da basta cabeleira escura dessa filha
Do vale e da montanha em máscula harmonia!
Feliz o coração
Que soubesse apertar nas roscas da paixão
O âmbar desse perfil, o ser da brasileira,
Com o fundo amor do sol que banha a cordilheira!
Ela, porém, amava
Apenas com a su’alma ardente de Moema
A claridade branca e leve que voava,
Do seixo do terreiro a lapidada gema,
E o dorso da gazela
Que corria e brincava, ingênua como ela!
Os frescos tons gracis da tez dessa menina,
Flexíveis como o hastil da rosa da campina,
Eram tão joviais;
Que avistando-lhe a forma ao longe, os taquarais
Davam risadas loucas,
E abriam pela encosta as viridentes bocas!
Enquanto houve reflexo azul pelo horizonte
A serrana falou com as árvores do monte.
Depois... ao desbotar do dia no ocidente,
Quando tudo é segredo às cousas sonolentas,
E o lavado vapor das casas fumarentas
Expandia-se além como quem ’stá contente,
Ela... deixou a sombra esquálida do prado
E foi beijar o pai — o ciclope do arado!
1879.
A Honório Monteiro
O romantismo sombrio
Morreu a noite passada,
Espirou como um vadio
N’um catre d’agua furtada.
Guerra Junqueiro
Eu conheci de perto a triste Musa antiga.
Muitas vezes a vi chorando uma cantiga
Aos lúbricos portais das pérfidas Ninons,
Deixando-se morder aos dentes do desejo
Como quem quer a morte em meio às sensações!
Era um fantasma quase. Agora mesmo a vejo
Atravessar a praça, estúpida, sombria,
Deixando germinar a flor da hipocondria
Naquele seio vil como um montão de estrume,
Aonde se talhara a rábida caverna
Do que que é negro e que é mau, do tédio e do ciúme,
N’uma luta voraz, estrepitante, eterna!
Quando ela se mostrava em seu delírio errante
Com a graça d’uma flor e os vícios dum tunante
Crivados no perfil corno adereços bons,
Parece que se ouvia uns lábios bestiais
Soprando umas canções
Estrídulas, fatais,
Na vasta limpidez do radioso espaço!
O pálido fulgir do seu olhar devasso
Abria-se na luz como um espelho enorme,
E via-se através desse cristal informe
A imensa hediondez de um’alma espedaçada,
Biliosa, febril, doente, ensanguentada!
Era o lirismo azul que dava a inspiração
E havia o misticismo em cada coração...
Um instinto sensual, ruim, destruidor,
Uma nevrose forte, uma explosão de amor,
A sífilis do corpo e a sífilis da alma,
Bastavam p’ra colar a luminosa palma
Da filha do Ideal — a rúbida Poesia
Sobre a face venal de muita fronte esguia!
E então essa mulher, a Musa, o sentimento,
Fina como o luar, dura como um tormento,
Andava pela rua, andava pelos peitos;
E fazia pulsar, aos cômicos trejeitos
De seu tom libertino,
O largo coração alegre, pequenino,
Das Ofélias do lar,
Que têm dentro de si um perfumoso altar...
.......................................................................
Felizmente, porém, comida da anemia,
Gastada pela dor no vago do histerismo,
Para sempre caiu, — a velha Poesia,
Legando-nos somente o travo do cinismo!
* * *
Mas é que já rompera a lúcida explosão
Dos planetas do Bem, dos astros da Razão,
Dos que têm de vibrar os versos imortais...
E agora, no silêncio ubérrimo da paz,
Aparece a Ciência, austera, vigorosa.
A nova geração radiante, jubilosa,
Aprende que o trabalho é gigantesco e bom,
E começa o ruído esplêndido de um som
Que provém do cultivo à seara do Direito,
E dá-nos largamente
O pão a cada boca e luz a cada peito!
Irrompe do levante a marulhosa enchente.
E os amplos ideais, as vastas utopias,
As crenças varonis, as santas energias,
Alteiam-se febris, aladas, coruscantes;
Enquanto a Pitonisa — a Poesia Nova —
Com a fulva radiação das almas flamejantes,
Profetisa p’ra o Mal a treva d’uma cova!
1879.
A José Carlos Júnior
Foi um grupo gigante de valentes
Aquela geração de DEZESSETE.
Tinha a força indomável do aríete
Unida à grande fé dos velhos crentes.
Era um punhado bom de corações,
De almas fecundas como a luz do Sol!
Ela arrancou as chamas do arrebol
Para fundir o ferro de uns grilhões.
Estou vendo-a passar ante meus olhos
Impoluta, severa e gloriosa...
Leva no corpo a clâmide sem folhos
Da Liberdade — a virgem radiosa!
E que altivez solene no seu vulto!
E que energia de aço no seu ar!
Ela vem imponente como um culto,
E a História verga sob o seu pisar.
Desfilam nela os pálidos heróis
Daquele tempo austeramente puro.
E eu vejo-os virem do passado escuro
Corno uma augusta legião de sóis!
São os avós, os corajosos velhos
Que nos deram a aurora SEIS DE MARÇO ,
— Esse poema iluminado, esparso,
Que brilha hoje como mil espelhos!
São os avós. Antepassados retos
Vieram ver o que fizemos nós.
Mas ai! Seus torpes, seus espúrios netos
Não lutam mais e nem sequer têm voz!
* * *
Sim. Os atletas varonis de outrora
Devem chorar, e lágrimas de sangue.
A geração que os representa agora
É corrompida, indiferente, langue!
Eles lutaram por amor da Ideia
Entre explosões de cólera sagradas;
Escreveram com as folhas das espadas
Os versos de ouro e bronze da Epopeia;
Trabalharam serenos como os pais
Que querem, dar uma fortuna aos filhos...
E nós sujamos os heroicos brilhos
Dos seus nobres labores imortais!
Nós, em lugar de repelirmos bravos
O jugo, o Rei, como eles o fizeram,
Vamos comendo como vis escravos.
O pão sem cor que os vencedores deram!
.....................................................................
.....................................................................
Oh! É preciso que os avós revivam!
Para tirar-nos deste fundo abismo
Faz-se mister o rúbido heroísmo
Daquelas almas qu’hoje as sombras crivam!
1881.
I
Propaganda
A Clóvis
Não há que recuar. O sec’lo é uma batalha,
E desta guerra aberta há de jorrar a luz!
O futuro abençoa aquele que trabalha
E o moderno operário é mais do que Jesus!...
Ó povo! Ó “grande nada”! Ouvi: a Musa austera,
Ciclópica, imortal, que chama-se Direito,
Prendeu, exterminou a sanguinária fera
Que plantou-vos no corpo a chaga-preconceito!
A vós portanto cumpre o posto da estacada,
A vós portanto cumpre a carabina, o gládio....
É preciso afogar-se o sol que retrograda!
O justo, a liberdade, a Ciência; eis o paládio!
II
Tiradentes
A Feliciano Gomes
Às vezes quando lanço a lâmina do olhar
Às sombras do passado, entre os fuzis da História,
Eu sinto no organismo um doudo latejar
Que acende-me clarões nas trevas da memória!
E então é quando vejo os vultos colossais,
Os atletas viris, os brônzeos lutadores
Que fizeram do Bem o ferro dos punhais
E das tábuas da lei os gládios matadores...
Subirem como o Sol nos amplos orientes
Da velha humanidade inóspita e servil...
E então é quando eu vejo o mártir Tiradentes
Rasgando o plúmbeo luto informe do Brasil!
III
Seis de março
A Linhares de Albuquerque
Surge, data de luz! Eu sinto o teu olhar
No túrbido silêncio estranho do passado,
Como um falar aéreo, heroico, desusado,
Que nos aponta um alvo enorme qual o mar!
Pousa nesse horizonte as tuas mãos nervosas
Com que plantaste outrora a flor — Revolução!
Eu tenho dentro em mim as sensações grandiosas
Que tu sabes erguer no albor desse clarão!
Nem pensas quanto eu amo as eras imortais
Que ouviram palpitar o coração do povo!...
Escuta: é que elas têm os grandes cordiais
Que aquecem-nos a alma e trazem sangue novo!
IV
À Reação
A Justino Vieira
Eia! Deixai troar o verbo da Verdade
Em rúbida explosão, ó crentes de Loyola!
Os brilhos cortesãos que tem a Igreja, o frade,
Morrem, vendo de longe a majestade... Escola!
Eu sei que está rasgada a sórdida estamenha,
Esse ascetismo vil que vós vestis por fora!...
Hipócritas! Despi a máscara ferrenha,
E vinde ver na Terra o sol da nova aurora!
Vamos! Incendiai esse arsenal bilioso
Aonde acumulais as vossas raivas mudas!
O século dezenove — o herege luminoso —
Não teme as maldições e o ósculo de Judas!
V
Atonia
A Nascimento Castro
Sinto um cansaço negro em meio às grandes lutas
Que abalam brutalmente o meu viver rasteiro.
Nem vejo mais as leis que vêm nas Institutas,
Nem penso em Baudelaire, nem abro o meu Junqueiro!
Ando cínico e mau; inconscientemente
Arrasto atrás de mim um tédio formidável,
E sinto se me abrir a boca enormemente
Quando olho para o livro histórico de Clável.
Vêm-me até tentações diabólicas, fatais,
Que fazem-me lembrar o morto romantismo!
Mas ai! Eu antes quero o tédio e seus punhais
Do que a face sem cor do Lamartinianismo!
1879.
A João Freitas
Faz um puro luar acetinado.
A rua cheia de uma doce luz
Tem a alvura da face de Jesus
E o seu branco sorriso deificado.
Como placas enormes de cristal
Assoalhando um alcaçar de fadas,
Brilham no solo as lajes das calçadas,
Vivas, sob esta luz meridional...
A lua lambe o firmamento todo.
E a Terra inteira, n’um nervoso doudo,
Deixa molhar-se do luar na espuma,
Como se fora uma criança meiga
Que caminhasse entre orvalhada veiga
Sentindo alegre a sensação da bruma!...
1881.
TENEBRAE
(Por ocasião dos acontecimentos de 27 de junho, em Santo Antão)
A Arthur Orlando
Le monde est mort. Le peuple un âne qui se cabre!
La force c'est le droit. Courbons-nous. Gloire au sabre!
Victor Hugo: — Châtiments.
Musa! Quero contar-te em versos crus, modernos,
Quentes como os cruéis suplícios dos infernos
Das velhas religiões,
A estúpida tragédia informe, lutulenta,
Que sobre a alma do povo enérgica, sangrenta,
Eu vi desenrolar-se em nome das paixões,
Em nome do Poder e em nome da desgraça
Que por cima da Pátria há tanto tempo passa!
Não tens de que velar a face, não. Retira
As lágrimas do rosto, e deixa que se fira
O teu potente olhar nesse espetáculo escuro!
Nos funerais da plebe a Musa do Futuro
Tem por obrigação cristalizar n’um canto
Os brados da Justiça e as pérolas do pranto!
* * *
Fica uma igreja além. Semelha-se a um quartel
Em que se sente agora o rápido tropel
Da soldadesca vil, aguardentada e bruta
Que apresta-se p'ra o crime e já deseja a luta!
Fora, ao redor do templo, em vaga convulsão,
Vê-se passar o povo entre a cintilação
Dos pedaços de sol e dos reflexos de aço
Que esbatem-se na rua e perdem-se no espaço!...
Espera-se do Acaso um parto monstruoso
Feito de sangue e lama. Um quê de nebuloso
Enche toda a amplidão de enigmas fatais
Que têm dentro de si lampejos de punhais!...
................................................................................
Ouve-se de repente uma explosão tremenda,
Como se a Terra toda houvesse aberto a fenda
Horríssona, febril, das bocas dos vulcões!
................................................................................
Olha-se então p’ra o solo, e avistam-se uns montões
De carne lacerada aonde o fumo e o pó,
Os ódios e os fuzis entranham-se sem dó
N’uma voracidade bárbara de hienas,
Que não respeitam choro e não conhecem penas!
— É o homem que regressa às eras canibais
Do ciclo medieval deixado para trás!
* * *
E foi contudo assim, ó Musa! que se deu
Debaixo do esplendor dos raios deste céu
Azul, americano,
O CRIME DA VITÓRIA horrendo, desumano,
Em que se espedaçou a efígie do Direito
Aos dentes do cutelo, às garras do facão
Do soldado venal, do ignorante aldeão,
Que foram só ali fazer do rude peito
Asilo para balas!...
Eu não defendo nunca as sanguinárias alas
Da nua populaça aluída de paixões,
Senão quando uma Ideia, a flor das convicções,
Aclara-lhe a cabeça e doura-lhe o semblante
Erguido para o Bem, como um fanal radiante!
Mas sempre que eu pressinto, ó Musa! que o Poder,
O Rei, a Baioneta e a Força — essa mulher
De aspecto senil e bárbaro e cruel
Que reveste uma farda —
Fazem o seu papel
Mandando assassinar na agitação d’um pleito
Onde busca-se a Lei, procura-se um direito,
Desde o rico magnata ao pobre da mansarda...
—Lamento dentro em mim que a Humanidade tenha
Mudado o coração n’uma inquebrável penha!
E então vem-me uma raiva impávida, mortal,
Contra a cousa chamada — o Trono Imperial,
Chamada Monarquia,
D’onde eu vejo rolar perene, dia a dia,
O lixo, o despotismo, as asquerosidades
Da púrpura, da C’roa, e as ásperas maldades
D’umas mentiras vis com o nome de — eleições,
Repletas de terror, inçadas de truões,
Que dão-nos afinal isso que estamos vendo:
— A plebe trucidada, o morticínio horrendo!
* * *
Ó Povo! É sobre ti que eu choro a minha pena!
Quem se lembra de ti?... Porque caiu na arena
Um grande mais ou dois, alarma-se a cidade!
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E os teus irmãos, entanto, além, na soledade,
Sentem sombriamente a escuridão da vala
Pesar-lhes sobre o corpo aberto pela bala!
Ó mártir do trabalho! Ó Povo! A tua vida
Parece-me uma luz tremente, sem guarida!
1880.
(Fragmento)
A Constantino Pereira
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Eu sempre venerei a França vencedora.
Por entre a viração silvestre, inspiradora,
Que agita em minha terra o ventre das florestas
E abraça ao mesmo tempo as trêmulas arestas
D’um monte luminoso, e a face amorenada
Dos filhos do Equador...
Em meio à caminhada
Poenta e vagarosa, exânime e tardia,
Que nós vamos fazendo em busca desse dia
Em que eu espero ver os brilhos do Progresso
Abrirem deste solo ao último recesso
As pompas ideais da próvida Ciência;
Entre a folhagem verde, alegre como um beijo,
Entre o gelo do tédio e as brasas do desejo;
Eu nunca me esqueci da minha reverência
Ao longínquo solar da Gália soberana!...
Toda vez que eu a vejo heroicamente ufana,
Rasgando como um astro o azul dos horizontes,
Curvar todos os reis, beijar todas as frontes,
E erguer no largo céu sereno e deslumbrante
O seu olhar de mãe da alvura do diamante;
Sempre que eu a pressinto, austera como um templo,
Ditar-nos uma lei, mostrar-nos um exemplo,
E mudar um lampejo, um fuzilar de ideia
N’um grito de vitória, um rasgo de epopeia;
Quer eu evoque a sombra infame da Bastilha,
Quer eu relembre Comte ou veja Victor-Hugo
Sofrendo a nostalgia — o íntimo verdugo —
Além, sobre uma triste e pequenina ilha;
Eu fito o seu perfil puro como um espelho,
Dobro-me em frente dela e dobro o meu joelho,
E sinto penetrar-me o rude magnetismo
Que tem, p'ra quem o mede, o fundo d’um abismo!
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Oh! sim! És um abismo, ó França laureada!
Mas o abismo do Bem, manso como a toada
Que solta uai camponês voltando do trabalho,
À hora em que o tinir metálico do malho
Expira na oficina!
És um abismo santo, ó Musa peregrina
De toda inspiração e de todos os hinos!
A cólera nervosa, os rubros desatinos
Que às vezes vêm toldar a calma do teu seio
São sempre do Direito o murmuroso anseio
— O anseio que te arrasta à síntese do Justo!...
Eu bem te compreendo, ó mãe dos Girondinos,
Eu bem te sei julgar, ó grande abismo adusto!
1880.
NO TÚMULO DO DR. APRÍGIO GUIMARÃES
A seu filho Celso
É muito crua e triste esta verdade austera,
Esta transformação por que a matéria passa,
E que deixa-nos sós ante o estertor da morte
Sentindo a alma gemer nos dentes da desgraça!
É muito triste, sim. Abre-se a um lado o túmulo
Em que se há de enterrar um grande cidadão,
E abre-se ao mesmo tempo a cova — desespero,
Onde se atira em pranto o nosso coração!
É isto o que se dá neste sombrio instante:
Vemos à nossa frente um mestre, um bom amigo,
Aquele que ao partir para as romagens longas
Da Ciência e da Luz levava-nos consigo...
E ao lado, — um sentimento aspérrimo, profundo,
Que turva-nos a vista e faz-nos soluçar!...
É que gelou p’ra sempre uma cabeça heroica
D'onde vimos a Ideia e o fogo irradiar!
É que realizou-se a fera lei.
Que importa?!
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Enquanto o pó e a cal fazem o seu dever,
Façamos nós o nosso: Abramos sobre o mestre
A urna de noss’alma, em que ele vai viver!
Enxuguemos um pouco as lágrimas pungidas
E demos boa-noite ao lutador!...
A História
Aí ’stá para o guardar, se os nossos peitos todos
Não puderem conter-lhe a rútila memória!
1880.
(Après une promenade)
À Clovis
Oh ! les jours tropicaux pour que l’on se promène
Sous le soleil radieux, au long du flot que mène
La mer sur le rivage ! Oh! les cieux luisants
Ouvrant au voyageur leurs splendeurs cuisants !
Songeant à la joie de regarder les ondes
Qui viennent s’embrassant rêveuses, nues, profondes,
Chanter l’âpre musique étrange de leurs eaux,
On a, dès le matin, apprêté les chevaux
Et l’on sort le midi. Le sable de la côte
Jette au front merveilleux de ses aimables hôtes
Une blonde poussière égale presque à l’or !
Oh les jours tropicaux, quand le soleil est fort
Comme un héros, et bon comme une grande fête!
Alors on a le front, le coeur, les yeux, la tête,
Dorés par l’astre-roi en toute sa beauté,
Et l’on va hors de soi, courant comme une fée,
Sur les pierres du sol, et sur les fleurs de l’âme
Qu’on a, germant au coeur, sur tous les sens en flamme !
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Oh! les feux du tropique! Oh! les pays divins,
Semblables au Brésil, pour faire des chemins
Un palais radieux où demeure le songe
Et la bleue fantaisie en mille détours s’allonge!...
1881.
A Gonçalves Lima
Olinda dorme. A velha gloriosa
Que antigamente, em rubras valentias,
Ergueu a espada em frente às ardentias
Das ondas más, a fim de dar nervosa
Golpes mortais nas hostes holandesas;
Dorme imergida n’um silêncio fundo,
Sonhando ao pé do velho mar profundo
Com as glórias idas, — marciais grandezas!
Sonha a cidade primitiva. E o vento
Conta em soturno e lúgubre lamento
Ao turvo oceano as suas roucas mágoas,
Enquanto a lua — o mármor dos espaços
Vai dando uns tons aveludados, baços,
Ao ventre nu das murmurosas águas!
1881.
À PROPÓSITO DA “CONVERSÃO” DE LITTRÉ
A Pereira Simões
Facit indignatio versum.
Juvenal
Mentis, padres! Mentis, quando dizeis que a Fé
Pôde fazer voltar o busto de Littré
Para os turvos umbrais da vossa religião,
Ou para alguma etérea e pálida visão
Chamada Criador ou chamada Jeová.
Mentis, corvos ruins! Mentis, cáfila má!
Não voltam para o antro as águias que no azul
Se libram a pairar, de luz embriagadas,
Assim como não volta o cru jaguar do Sul
Ou d’África o leão às jaulas rebentadas!
Não. Não se retrograda ao primevo estádio.
Bem como existe a lei que faz o inverno, o estio,
Há também outra lei chamada — Evolução
Que marca o itinerário enorme da razão!
Padres! Quem uma vez deixou de crer, jamais
Vos há de acompanhar às vossas catedrais
Ou aos vossos covis, mesquitas, celas, templos,
Onde vós ensinais, mas nunca com os exemplos!
Deixa-se o teologismo, padres, fatalmente!
Primeiro a gente crê; depois é-se descrente,
E depois, e por fim, os dados positivos
Que vamos obtendo, of’recem-nos motivos
Para não abordarmos causas e mistérios
De que vós abusais, indo pelos sidéreos
Mundos, a procurar infernos, deuses, céus!...
Quem, pois, como Littré, ó padres, põe os véus
Dessas futilidades ocas para um lado,
E não crê porque Deus é um facto indemonstrado,
Não volta, não recua ou retrograda, padres,
Para ouvir, ao morrer, vós e vossas comadres
Mastigarem latins senis de sacristia
Ante um Cristo amarelo e um’água benta ou fria!
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Padres! Religiões! Sois uns perversos todos!
Chamais-nos brutos, cães, hereges, torpes, doudos;
Só as excomunhões nos dais por pagamento
Do nosso trabalhar titânio, suarento,
Enquanto a vida está cantando em nosso peito,
Enquanto temos n’alma um sangue bom, perfeito;
Mas depois, quando algum de nós a enfermidade
Fere, e quer dar à Terra — a nossa eternidade, —
Vós vindes devagar, sutis como um suspiro,
Ou como um salteador que está p’ra dar um tiro
N’uma vítima, — e então pedis-nos servilmente
Servindo-vos da voz do amigo ou do parente
Que nós amamos mais —: que abjuremos tudo,
Todo o nosso passado e todo o nosso estudo,
E que enfim reneguemos todas as ideias
Que tínhamos, as quais eram cortantes peias
Mordendo-vos o rosto, a face sem vergonha!...
E quando, já caída a fronte sobre a fronha,
Nós, pungidos enfim com o pranto da família,
Dizemos-vos um “sim” sumido na escumilha
Invisível da morte, a qual nos prende já;
Vós saís exultando e atribuindo à Alá
O vosso vil triunfo!... Ó pútrida coorte!
Como se o nosso fim, como se a nossa sorte
Fosse bem como a vossa o irmos, no infinito,
Rezar eternamente a um branco e velho mito
N’uma ociosidade ruim de barregã,
E n’uma adoração eternamente vã!
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Padres! Só desse modo a vossa negra Fé
Poderia fazer o gênio de Littré
Voltar para esse estado, o qual faz Deus... e doudos!
Padres! Religiões! Sois uns perversos todos!
1881.
A Ribeiro da Silva
Era uma branca noite. Era urna noite vasta,
Nervosa, de cristal, alegremente casta,
Corno um beijo de mãe n'um filho pequenino.
A lua, como um vidro etéreo, muito fino,
Ia em toda a nudez das cousas luminosas
Roçando cismadora a luz das nebulosas
E abrindo o largo céu magnético, profundo.
O sono enchia o crânio, a pálpebra do mundo
Como enche urna espiral de fumo uma caverna!
Ria-se a vastidão. A brisa estava terna
D’uma ternura tal acetinada e vaga,
Que fazia pensar nas cousas que se afaga
Com uma carícia doce e respeitosa e franca:
— Um seio bom de esposa, uma cabeça branca!...
Saí p’ra procurar inspirações no espaço,
Que estava como um arco intérmino de aço
Erguido sobre a Terra. Havia me atraído
O azul sereno e nu e cândido e brunido
Dessa noite estival, marmórea, transparente,
E, igual a um cenobita, eu pus-me curvo e crente
Na imensa catedral da funda solidão
Que metia em silêncio os campos e a amplidão!...
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Sorvi por muito tempo os hálitos da noite.
Depois, ébrio da luz, dos sons, que a natureza
Ajuntava, ao redor, em vívida grandeza,
Eu disse p'ra a amplidão: Permite que eu me acoite
No teu colo feliz, ó lânguida sultana!
Consente que eu me aninhe em teu regaço enorme!
Aqui, junto ao teu seio, é só que a gente dorme
Sem sentir o amargor da ruindade humana!
Entre os homens, se tem de afivelar ao rosto
A máscara, a partir da aurora até Sol posto!
Tem-se de ajoelhar ante as conveniências
E diante das paixões e em frente às tiranias!
Eu quero-os esquecer! Ó dá-me as harmonias
Que tens, noite ideal! Satura-me de essências!
1881.
(Fragmentos)
A José Maria
Vejo: um gigante repuxa
Do colo o anel d’um grilhão!
— É um condor que estrebucha
Sob as garras d’um leão.
V. Palhares
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Sim. Um paço mergulhado
Na infâmia das bacanais!
E os cortesãos asquerosos
Representando jograis!...
— O néctar que a taça encerra,
— O vinho que ensopa a terra
Dos alcaçares reais,
Ah! são as ondas de sangue
Das veias da Pátria exangue,
Que agoniza entre punhais!...
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Não temos mais glórias. Nada!
O mundo ri-se de nós.
O despotismo emboscado
Mata na estrada os heróis!...
— Por cima dos velhos louros,
Dos trabalhosos tesouros,
Que ao Brasil deram seus bravos,
Ruge o simoum da desgraça,
Qual nuvem que o trono abraça
Gritando no azul: — escravos!...
Une-se o cetro à tiara,
Juntam-se o trono e o altar.
— É o enlace truculento
Da hiena com o jaguar!
A cruz, a c’roa, o rosário,
Uma roupeta, um falsário,
Uma púrpura, um burel,
— Aí ’stão matando o povo,
Das gerações o renovo,
Cobrindo-os de lama e fel!
Soluçam ecos trementes
De Norte a Sul: — maldição!...
E o rei — vampiro medonho —
Sempre a sugar a nação!...
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Oh! Mas é tempo de alçarmos
A fronte ao clarão do Sol!
REVOLUÇÃO! — brade o Povo.
Essa palavra é um farol!
Que este astro — a Democracia
Nos surja, plantando o dia
Ao pé das trevas fatais,
E nós seremos triunfantes,
Os heróis, deuses, gigantes,
De epopeias colossais!...
Vamos. As bocas dos Andes
Gritam p’ra o céu: — Liberdade!
Que esses brados repercutam
Na mata, no ar, na cidade!...
Um trono é nada. Que caia!
A púrpura é sangue. Rasgai-a!
P'ra longe o férreo grilhão!
Mocidade, ao gládio, à espada!
Depois o livro.... À estacada!
De OITENTA E NOVE ao vulcão!...
1877.
(Na noite do benefício dado ao Gabinete Português)
Ó gigante do palco! Eu sou da mocidade
O derradeiro filho, o ínfimo levita...
Mas embora. Ao te ver da rampa à claridade,
Eu quero te dizer que em mim também se agita
O doudo turbilhão dos grandes entusiasmos
Que tu geras, titão! perante os olhos pasmos
De todos os que têm a dita de te ver,
De toda a multidão que sente-se tremer
Em frente ao teu talento elétrico, possante!...
Perdoa, pois, a audácia. O moço é sempre amante
Do estranho, do ideal, do belo e grandioso.
Toda vez que ele vê que o artista glorioso
Faz brotar, irromper das almas, a faísca
Da alegria, do amor, do ódio, do chorar;
Toda vez que ele vê, cobrindo-se de gozo,
Que o trabalho do ator é como o teu — que risca
Na alma do assistente um traço de pesar
Ou um traço de prazer; — o moço corre logo
E vem lançar em cena o seu aplauso em fogo
O seu sincero “bravo” incandescente e puro!
É o que eu faço, gigante! Eu vejo que o futuro
Te prepara uma c’roa imorredoura e grande
Maior do que o triunfo havido no presente;
Eu vejo que em teu busto e em teu olhar se expande
Essa luz que só há n’um astro ou n’um vidente;
Eu vejo que há em ti do meio-dia a ardência:
Eu vejo, enfim, que dás o teu trabalho à Ciência
Para que assim se possa incendiar os crânios
E possa solapar-se os feios subterrâneos
Do Mal — com essa alavanca eterna da Instrução...
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Eu vejo tudo isso, e venho te gritar
De toda a minha alma e todo o coração:
— Artista! És quase um deus.... O palco é o teu altar!
1881.
A Carlos Porto Carreiro
Caía o vasto Sol na larga cordilheira.
A branca flor da luz — a eterna, vivandeira
Que anda por toda parte em giros imortais,
E que não deixa nunca os tristes arraiais
Do exército sem fim que luta pela vida;
Saltara há muito tempo em mágico esplendor
Por trás de uma colina altíssima, esbatida.
O dia estava em meio. Os filtros do calor
Pairavam no ambiente em morna oscilação,
E o bafo sensual que erguia-se do chão
Trazia um bocejar de forças alquebradas.
Havia em derredor escarpéis, esplanadas,
Várzeas cor de esmeralda e montes de ametista
Mergulhados em sol. Lá muito ao longe, a vista
Descobria uma casa envelhecida e fria,
Com rugas no semblante e em posição de espia
Que se agacha p’ra ver. Era a cruel vivenda
De um pequeno barão do nosso feudalismo;
Era o solar sem arte, era a ferrenha tenda
Desse tipo lendário, imerso em barbarismo,
Que o rei gosta de ornar com títulos e fitas,
Com cruzes de metal e cousas esquisitas,
Feitas para manchar peitos e consciências...
Ele — o senhor de engenho — andava àquela hora
A folgar e a caçar com as gordas “Excelências”
Dos íntimos da casa. Andava lá por fora
Aspirando a fragrância esplêndida dos campos,
Montado num quartão veloz como os relampos,
A correr e a transpor valados e riachos
Atrás d’uma raposa, horrorizada aos fachos
Dos olhos dos seus cães, valentes como touros!...
Não se lembrava, então, querendo à força os louros
De Nemrod, — que ele tinha há pouco dado ordem
Ao sair, ao montar (quando os cavalos mordem
Nervosamente a brida impacientes, lestos)
Que “metessem no carro” aquele negro audaz
Que deixara escapar uns tímidos doestos
No trabalho, ao feitor, um dia ou dois atrás,
Enquanto a escravatura alevantava a enxada
Para ferir a terra, e a cana amarelada
Lourejava no chão, e um carro assobiava
Seu monótono canto ardente como lava!...
Não se lembrava, não. Tanto que ao vir p’ra casa
Depois de ter batido a redondeza toda,
Erguendo o pulso ao ar n’uma alegria douda,
N’uma expansão de glória enorme que extravasa,
Brandindo o seu fuzil — ele gritava aos mais:
— Soberbo! Consegui matar cinco animais!
Engano! Assassinara SEIS, naquele dia:
Do “Carro” um corpo escuro e frígido pendia!
1882.
A Albino de Novaes
Ó Sol! Eu li não sei onde
Como cousa averiguada,
Que a tua soberba fronde
De luz, vai sendo cortada
Pelo tempo! E que um inverno
Remoto, mas implacável,
Um dia há de ir formidável
Quebrar-te o vigor eterno,
Espedaçar-te a gloriosa
Purp’ra que agora sacodes
Pelo espaço, como as odes
D’uma canção luminosa!
Não sei se creia nos sábios,
Não sei se acredite nisto;
M.is quando vejo os teus lábios,
Tontos de amor como Cristo,
Beijarem sofregamente,
Queimarem nas suas brasas
O mundo todo: uma gente,
Um’alma, um bosque, umas asas;
Mas quando vejo o famélico
Ardor com que tu te abraças
A tudo: aos campos, às praças,
À relva, ao monte babélico;
Quando admiro a baixela
De ouro, que todos os dias
Vibrante e nu tu envias
À Terra, a fim de que ela
Sirva o almoço da Aurora
Com o vinho fino do orvalho,
E tenha pronto a cad’hora
O banquete do trabalho;
Não posso, ó Sol, me furtar
A te dizer que és um pródigo,
E que se os astros no ar
Tivessem também seu código
De leis civis, tu decerto
Já tinhas uni curador
Que te seguisse de perto,
P’ra poupar a força e a cor
Que tu esbanjas, nababo!
Pois se ao rosto até da Lua
Tu dás teu sangue! Se estua
Teu ser como um fulvo diabo
Das lendas!...
Se tosse assim,
(Se a nebulosa em que estás
Te desse um tutor) teu fim
Não era o inverno a que vás!...
1882.
Espanhola. Eu não tenho a lira rendilhada
Das bonitas canções amenas, dulçorosas,
Que os poetas do amor, da mágica toada,
Costumam dedilhar em vibrações chorosas.
Não tenho. A minha lira é quase que um clarim
Tocando uma alvorada eterna — a da Verdade.
Se às vezes sai um tom romântico de mim
É que eu ando jurando amor à Liberdade!
Por isso não te posso, artista, decantar
N’um hino arroubador, gentil, madrigalesco;
Contento-me em sentir-te a voz — esse luar
Com que nos vestes n'alma um brilho doce e fresco.
Entretanto... Permite a confissão que espanta
De um receio só meu:
Eu temo que um sabiá,
Vendo quanta harmonia alaga-te a garganta,
Aos lábios te vá ter.... crendo que o ninho é lá!
1881.
(Em uma festa emancipadora)
Gigante do porvir, ó Mocidade!
Erguei a fronte altiva!...
D. J. G. Magalhães
Sempre este sol nesse horizonte enorme,
Sempre este oráculo nesse templo ingente!
Sempre as bandeiras desse herói — o moço,
Beijando o éter d’amplidão ardente!
O Sol, o oráculo — a mocidade altiva...
Templo, horizonte — a liberdade, a Deia....
E esses dois astros espadanam luzes,
Desses dois mundos ala-se a Epopeia!
Salve, gigantes! Neste ambiente em fogo
Desdobra as asas uma ideia santa,
Que tem seus lares no universo inteiro,
Que é Deus, é tudo, e que o passado espanta!
Eu vejo um livro a espedaçar cadeias,
Vejo a igualdade a desatar algemas!...
E vós — os moços, sobre a fronte augusta,
Tendes auréolas, ostentais diademas!
E vede: a auréola que vos cinge o busto
Tem mais nobreza que a coroa régia.
Esta vem sempre da conquista iníqua,
Aquela nasce de uma ação egrégia!
A c’roa d'ouro que acompanha um trono
Traz sempre o sangue a desbotar-lhe a cor!
Vosso diadema no entretanto expande
De mil auroras o iriado alvor!...
É que vós sois os corifeus sublimes
Da marcha eterna da humanal torrente!
É que sentis a rugitar no seio
Da independência o vendaval fremente!
E vendo embaixo, lá no algar trevoso,
O escravo exausto sob o vil açoite,
Descestes — anjo — p’ra lavar a infâmia,
Baixastes — raio — p’ra espancar a noite!
Do escravo — cousa — levantou-se um homem,
Do — nada — ergueu-se um cidadão de pé!
Lá dos sepulcros da vetusta Roma
Sente Spartacus reviver se até!...
Salve, gigantes! Quando o século — atleta,
Legar procura a liberdade à Terra,
Vós abraçai-lo e derramais enchentes
Da viva luz que vosso peito encerra.
Diante de vós a Escravidão recua;
Treme o covarde que azorraga irmãos!...
Vós — os profetas — nivelais as classe,
E o mundo livre vos oscula as mãos!
Mil vezes salve, americanos fortes
Que assim sois grandes como a própria glória!
Ao vê-los nobres, condorinos, francos,
A Pátria enferma grita aos céus: Vitória!
1878.
Não sei que cotovia olímpica gorjeia
Dentro de mim!...............................
Guerra Junqueiro
Sinto uma vibração estranha no meu ser;
Lateja-me no crânio o cérebro, e no peito
Lateja-me fervente o coração. Se espreito
P’ra dentro de mim mesmo, encontro-me a tremer!
Tenho na alma um caos: um bíblico estorcer
De gênese que está se elaborando, em leito
De mundos a surgir. Não sei o que se há feito
De novo, de latente e grande, em meu viver.
Não sei. Mas já não basta à frívola existência
Que arrasto, o entusiasmo e aquela rubra ardência
Das lutas ideais que eu vivo provocando
Em prol da eterna Luz! Já não me basta a paz
Da consciência forte, o louro, a glória... Mas
Não sei o que me há de vir o que me falta, e quando!...
1882.
(Recitada em um espetáculo em benefício dos famintos)
Silêncio! há gritos pungentes
Ferindo a torva amplidão!...
Que de ouvir alguém não deixe
O Povo, que pede pão!
Os roucos sons do perdido,
Nas entranhas abatido
Da terra que é negra e má,
Venham rolando desfeitos
Ecoar em nossos peitos,
Venham chegar até cá!...
Que nós, os moços — soldados
Da Liberdade e Razão,
Também sabemos ser grandes
Nas lutas com o coração!...
Há morto pelos caminhos,
Agonizante entre espinhos,
E a Pátria tem convulsões?...
— Nós vamos colher, com flores
Lançadas sobre essas dores,
O aplauso das multidões!
Aqui, as luzes e a festa,
A Ciência abraçando a Arte,
Forjam bálsamos divinos
Que vão brotar n’outra parte.
— Aí, nessa magra terra,
Onde a Fome o dente aferra
Nos ressequidos torrões,
De onde fugiu a alegria
E onde o luto tripudia
Mostrando as torpes feições!
Que importa que o Sol abrase,
— Carrasco da natureza?
Sob o manto — Caridade
Não importa essa fereza!
O sertanejo queimado
Pede uma esmola alquebrado,
Rouquejando, a soluçar?...
Que venham nus, esfaimados,
Que em nossos seios dourados
Há muito e muito que dar!
Juntemos nossos esforços;
Somos Anteus co’a união.
Trabalhemos para todos
Em soberba comunhão!
Passa uma moça pendida,
Quase murcha a flor da vida,
— Arbusto que o Sol secou?...
Vamos nós com o nosso manto
Da face enxugar-lhe o pranto
Que em nossas almas calou!
Na praça mulheres nuas,
Crianças, velhos, se estorcem?
E os reptis — Febre e Morte
Nas roscas vis os contorcem?
— Uma moeda no colo
Dos filhos de ingrato solo,
E um pão que lhes mate a fome!
Dai lenitivo a essa magoa,
Apagai a sede d’agua
Que pouco a pouco os consome!
E é muito o que vos suplicam
Vossos irmãos, os malditos?
— Vingai-os da natureza
Que condenou-os precitos!
E, com os corações abertos,
Ide fazê-los libertos
Das fauces da Seca ingente,
Que as flores, a luz, o dia,
Vos irão na romaria
Coroar em bando algente!
Que importa que o Sol abrase
— Carrasco da natureza?
Sob o manto — Caridade
Não importa essa fereza!
O sertanejo queimado
Pede uma esmola alquebrado,
Rouquejando, a soluçar?
Que venham nus, esfaimados,
Que em nossos seios dourados
Há muito e muito que dar!
1878.
A Faelante da Câmara
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Bandido! Eu bem dizia! A carta do A. B. C!
Guilherme de Azevedo
Que fazes, infeliz? Vergado ao teu fuzil,
Tu lês? Como és ingênuo, ó pobre ser sem luz!
Tira o livro da mão. Pregar-te-ão na cruz,
Se houver quem vá dizer ao general, ó vil!
Que como sentinela, ali, junto à guarita,
Tu cometes tal crime! Abrir ao livro a alma
D’um soldado! Mostrar a verdejante palma
Do talento ao fuzil, ao sabre que se agita
Somente quando a guerra estruge! Canibal!
Ter a audácia de ler! Prejudicar a pose
Do soldado, com o ar, com a posição fatal,
De quem pensa! Que horror! Ter uma força que ouse
Desviar teu olhar do cano da tua arma!
..................................................................................
Não penses mais em tal, soldado! A tua lei
Ordena que se esfrie o crânio, para o Rei
Poder dormir feliz, sem recear o alarma!
1882.
À MEMÓRIA DE JOVINIANO MONTEIRO
Caíste, lutador! Mordeu a larva humilde
A fronte enfebrecida.
Caíste! Mas douraste, em fervidos anseios,
A lâmpada da vida!...
— A vida do homem forte, a vida de provanças,
Do ciclope hodierno;
Mas a vida pujante, a vida temperada,
À luz do sol moderno....
E foste grande assim. A boca do sudário
Tragou-te a trabalhar;
A cova desposou-te horrífica, funérea,
D’um canto ao palpitar.
Tombaste ao vendaval. Lufada lutulenta
Arrebatou-te ao ninho
Da Ideia e do Viver. Soluça agora errante
De uns órfãos o carinho...
E foste grande assim. Sagraste à Poesia
O coração ardente,
E buscavas sereno ao peito das ciências
A verdade latente.
Tombaste. Hoje esse toro gélido da morte
A que se chama — campa
Bebe-te os trenos líricos na boca
E nela o “nada” estampa!
Cedeste à natureza envolto no perfume
Que tressua o talento;
Cedeste à lei fatal. E a Pátria enternecida
Consagra-te um lamento.
Adeus. Des'pareceste heroico e luminoso
Da senda do existir...
E basta. A glória é isto: — Indômita memória
Em vívido luzir!
1878.
(Sully-Prud’homme)
Prosperamos! Que importa aos velhos desgraçados,
Os homens mortos cedo aos quais traiu a sorte,
Os que sempre a sofrer foram da vida à morte,
Cujos túmulos mesmo agora estão quebrados!?
Nada podem fazer por eles os seus filhos;
Que as nossas invenções não podem dar-lhes vida:
Ah! Quando eu neles penso, este viver sem lida
Dói-me, como um remorso, em seus modernos brilhos!
A faina humana é longa e o termo enganador:
Das nossas gerações a que por fim se for
Só essa, então, terá fartos granéis amigos;
E os criadores bons da plantação fecunda
Não terão visto rir, na luz que a Terra inunda,
O pacifico lábio animador dos trigos!
1882.
(Comemorando o 21 de abril)
Somos teus filhos, Tiradentes! Vimos
Trazer-te um goivo e um pouco de cipreste,
Para que a voz do nosso amor te ateste
Que andamos inda a levantar, nos cimos
Da pobre Pátria, — aquele templo augusto
Que tu sonhavas construir de auroras!...
‘Stamos ainda trabalhando. O adusto
Sol do Equador bronzeia-nos; as horas
Vão gotejando, uma por uma, do astro;
E nós, enquanto os nossos pais — os velhos,
Ouvem do trono os pérfidos conselhos,
— Vamos beijando o teu ciclópio rastro!
1882.
(Souvenir des fêtes de son dernier anniversaire)
A Clodoaldo Freitas
Maître. La France vient de croître davantage.
Elle a pris le chemin de ton vibrant foyer,
De ta demeure, où sont tous deux a s’égayer
Tes petits-fils — ces blonds, ces doux oiseaux sans cage ;
Et la-voilà qui frappe à ta fenêtre. En gage
De son amour pour toi, elle te veut donner
Son pur baiser de mère — un lumineux baiser
Tout plein d’odeur d’encens comme une sainte image....
et elle est frissonnante autour de ta maison ;
On sent gémir dans l’air la grosse émotion
D’une âme universelle, immense, panthéiste...
C’est l’âme du Progrès et de l’Humanité,
Qui vient sacrer ton nom, montrant son sein gonflé,
O bon vieillard géant, o bon géant artiste !...
1882.
(Por ocasião de comemorar-se o 11 de agosto)
Estranho e forte, estremece
O coração do Brasil...
Por quem é? por quem palpita
Ess’alma enorme e viril?...
Ah! Rasgai-vos, horizontes!
Astros! Voltai vossas frontes
P’ra a Terra enfaixada em luz!
Aqui são tantas as glórias,
Que há como um mar de vitórias
Cantando estrofes azuis!
São como vagas sonoras
Os corpos das multidões.
D’entre os folhos das ideias
Saltam fúlgidas canções.
E quando os corpos são almas
Que sobem ao céu com as palmas
Da Mocidade — o condor,
Nos murmúrios da festa
Sente-se o som d’uma orquestra
Que rompe um hino de flor!
Por isso a Pátria se agita,
Pulsa-lhe o seio festivo.
Vê que o rebento do século
Bebe o Sol fecundo e vivo!
— Vê que vós sonhais futuros
Mais deslumbrantes, mais puros,
Que o presente enturvecido,
E mergulhais os cabelos
Nos lucíferos novelos
De um arrebol incendido....
E diz consigo: Meus filhos
Hão de ser-me a redenção,
Inda que tragam-me à luta
No abismo — Revolução!
Sim. Que esse abismo profundo
Tem nas entranhas um mundo
De coriscos e de sóis...
Mas sempre arroja do peito,
Inda que em sangue desfeito,
Um amálgama de heróis!
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Não há filho que abandone
A mãe que sofre e que chora;
Mata-lhe a dor cruciante,
Prende-lhe ao busto uma aurora!
Portanto, ó moços! atletas!
Vós que sois bons, sois poetas,
E tendes raiva do mal,
— Animai a Pátria, o mundo,
Que, assim. d'um antro profundo
Fareis alva universal!...
1878.
(Em uma festa do centenário de Pombal)
Um vasto templo artístico e sonoro.
A nave enorme. O coro retumbante
De músicas de amor. Uma ondulante
Atmosfera, igual a um meteoro
Na cor dourada. O hercúleo respirar
De imensa multidão enchendo as portas.
Um como renascer de idades mortas
Vibrando além, nas solidões do ar!...
Um grande trono, um largo altar brunido
No centro dessa igreja. E nele erguido
Um vulto, um velho, atlético, ideal,
Que estende os lábios n’um sorriso quente!...
— O templo é o Sec’lo. O sólio reluzente
É a festa d’hoje. O vulto bom — Pombal!
1882.
(Jean Richepin)
Não se viu hoje o céu. Opaco, pardacento
E rasteiro, ficou suspenso o nevoeiro.
Morria todo olhar na lâmina do vento,
— Metal que não traspassa um raio só ligeiro.
Somente pela tarde, à beira do zimbório
Pesado, uma luzinha, igual a sangue em fio,
Estende-se, escorrega em furo merencório;
Lavou-se o nevoeiro em gotas d’áureo rio.
Faz-se em franjas, se funde em tintas opalinas
Veem-se para o chão nevar languidamente
Pedaços de vapor, focos de purp’ras finas,
Que vão em turbilhão, correndo velozmente.
Dous meninos, além, deitados a uma porta,
Os bons olhos azuis alargam deslumbrados,
Pensando numa vala e em sua mãe já morta]
Gozam, vendo florir do inverno os brancos prados...
É que esses purpurinos véus são como rosas
Que perfumam do céu as verdes primaveras,
E que o bom Sol sacode, em tardes tristurosas,
A Terra adormecida em gélidas esferas!
1882.
A Virgílio Brígido
A Forca tinha sido levantada
Bem no meio da praça. A luz, vibrada
Pelo nervoso sol americano,
Vinha bater no tronco desumano
Daquele poste afoitamente erguido
Para o côncavo céu louro e brunido.
A alma grande, feita de ouro e de aço,
Que o Povo tem para os solenes dias,
Pulsava ali em curvas fugidias
Como no mar um ramo de sargaço;
E enquanto a plebe, entre os soldados bruscos,
Via luzir os duros sabres fuscos
Pousados nus em musculosos ombros,
A multidão enchia-se de assombro
Por ver o réu com que infinita calma
Subia lento o cadafalso negro!
Nesse momento, um cintilante alegro
Cantava a brisa na sonora palma
D'árvore espessa de um quintal vizinho.
E então o réu, tonto do etéreo vinho
Que a morte dá na taça do martírio
— Taça que é misto de azinhavre e lírio —
Ao lábio heroico de quem foi gigante,
De quem comeu do trigo das Ideias;
Começou majestoso e penetrante
A dar ao povo a conta das cadeias
Que ele tentara espedaçar, delir!
Falou sereno. E, quando ouviu tinir
Ao pé de si o ferro do calceta,
Que vinha pôr-lhe a longa corda preta
Em derredor do indômito pescoço,
Ele, do olhar cavado como um fosso,
Deixou cair em bolhas iriadas
O seu adeus endereçado ao povo!
E era cadáver logo após!... Rendadas,
Leves no azul e d’uma alvura de ovo,
Iam as nuvens em novelos soltos
No espaço enorme, imperecível, curvo,
Como cabelos de ancião, revoltos!...
A Forca, então, no rijo braço turvo,
Pôs-se a embalar o mártir, cujo esquife
Era a amplidão.... Findara RADCLIFF!
A mesma hora em que esse cão morria,
O Imperador Pedro I — ria
Nos braços nus e sensuais da amásia,
— Sua Ninon e sua doce Aspásia.
Ria e gozava. Alguns momentos antes
Tinham vindo pedir-lhe pelo réu:
Invocara-se os nomes dos infantes,
Invocara-se a Virgem, Deus, o Céu,
E ele fugira e respondera: É tarde!
....................................................................
Fizera mesmo, no seu paço, alarde
De que estava na casa da Marquesa,
E viera beber a morbidezza
Do jáspeo seio da mulher que amava,
Para fazer arrefecer a lava
Do seu lascivo sangue bragantino,
Duro corno uma faca de assassino!
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Quando, mais tarde, abrindo a gelosia
Para sorver um pouco de alegria
Na imensa luz que assediava tudo,
O Imperador viu, n’um recanto mudo
Da negra praça, o poste vingativo
Qu’inda agitava sob o azul sem crivo
O cadáver do herói assassinado;
Su'alma negra apenas teve um brado:
— “Marquesa, corre em meu real encalço!
“Quero um milhão de beijos e de abraços!
“Olha: Eu desejo te pender dos braços
Como aquele vilão do cadafalso!”
1882.
(Recitada em um espetáculo festejando o I aniversário do Decreto de 19 de abril)
A Laudelino Câmara
Moços! Bem como os Vesúvios
Nas horas das convulsões
Abrem as rubras entranhas
Cuspindo ao ar explosões,
Assim nos dias gigantes
Que fulgem como brilhantes
No seio imenso da História,
Eu sei: — vós tendes ideias
Que valem por epopeias,
Por monumentos de glória!
Quando nos crânios possantes
Dos corpos livres e novos
Vibra a célula da luta,
Que abala os mundos e os povos;
Irrompe a douda voragem
Treda, sublime, selvagem,
Que lança a Terra no pasmo,
E a Mocidade e o Direito
Abrindo a cratera — peito
Mandam falar o entusiasmo!
É este o espetáculo enorme
Que vós nos dais neste instante:
— A Luz saudando a Ciência,
— A mocidade triunfante!
Aqui, neste templo augusto,
Em que das Artes o busto
Radia como um farol,
Eu sinto que as vossas almas
Passam, no meio das palmas,
Deixando résteas de sol!
Há no estandarte moderno
Uma divisa de luz,
Mais pura que uma criança,
Mais santa do que uma cruz!
Por ela batem-se os Gracos,
Fazem-se fortes os fracos,
Peleja a eterna Verdade,
E ouvindo o seu nome ingente
Por entre a arena inda quente
Diz o eco: — Liberdade!
E vós viestes ufanos
Dos visionários na grei
Saudar a vida da ideia
Da liberdade na lei!
Saístes nobres, risonhos,
Do ninho dos vossos sonhos,
Do leito das ilusões,
E ergueis os peitos ousados
Mostrando aos povos pasmados
O que valem corações!
Sim. Que esses moços que pensam
Da Pátria na redenção,
Vieram mirar nest’hora
O albor da nova razão!
— Quando, surgiu do horizonte
Banhando cada uma fronte
A aurora do grande dia,
Passou por todos os peitos
Em sons etéreos, desfeitos,
Uma celeste harmonia!
Era a música divina
Da Uberdade do estudo.
Era o ensino passado
Que tombava estéril, mudo.
O oficialismo caía
Entre a caligem sombria
Que lhe toldava o viver,
E a mocidade fremente
Via o futuro esplendente
Abrindo-lhe um ninho ardente,
Com as pompas do rosicler!...
Moços! Bem como os Vesúvios
Nas horas das convulsões
Abrem as rubras entranhas
Cuspindo ao ar explosões,
Assim nos dias gigantes
Que fulgem como brilhantes
No seio imenso da História,
Eu sei — vós tendes ideias
Que valem por epopeias
Por monumentos de glória!
1880.
(Representando-se a comédia portuguesa O rosalino)
Artista! Ergue essa fronte honesta e laureada
Às plagas do porvir, onde o horizonte é luz!
No frenético ardor que voa destas palmas
Não vês que, para ti, a sagração transluz?...
.........................................................................
Um dia tu deixaste as mágicas paragens
Da Europa — a velha mãe, do velho Portugal,
E vieste entre nós haurir o santo enleio
Que verte-nos no peito a aragem tropical...
Chegaste. E a natureza abriu-te o seio imenso.
Chegaste. E o nosso povo abriu-te o coração!
— É que o anjo do palco acompanhava sempre
As pegadas do filho, em rúbido clarão!
E quando transpuseste as sombras do cenário,
E quando o teu perfil se aureolou, cresceu,
Houve um deslumbramento, uma alegria insana,
Que fez sorrir da Terra as criptas do céu!
E tu mediste, grave, a multidão que ouvia.
Filtraste-lhe no corpo um fluido divino,
E quando o entusiasmo embriagava as almas
Abriste na ribalta o olhar do “Rosalino”!
E o teu talento, então, que erguia-se soberbo
Como um pássaro-rei a dominar os ares,
Librou-se n’amplidão esplêndida, serena,
De que Salvini ocupa os luminosos lares!
E a Arte viu no espaço um panorama estranho:
— Era o filho imortal do Tejo cristalino
Que alçava heroicamente o gênio da comédia
Ao lado do Hamlet do Rossi peregrino!
..........................................................................
Artista! Ergue essa fronte honesta e laureada
Às plagas do porvir, onde o horizonte é luz!
No frenético ardor que voa destas palmas
Eu vejo a sagração que para ti transluz!
E pois que o teu talento escalda-nos o seio,
E pois que a tua glória estruge neste instante,
Artista! Apanha a flor, o aplauso, que se cruzam,
E deixa-nos dobrar em frente ao teu semblante!
1880.
(28 de Setembro)
Canta-se um hino. Parece
Que a Terra mudou-se em harpa
Tremente como uma prece,
Aguda como uma escarpa.
Evolam-se as notas. Soltos
Boiam no ar os poemas.
Andantinos desenvoltos
Da orquestra saltam. E as gemas
Dos sons rutilam no espaço,
Como um esplêndido abraço
De joias alvas, toantes!
...................................................
É que o planeta festeja
A glória do escravo.... e o beija
Como se beijam amantes!
1882.
(Recitada em cena aberta por Antônio Pedro, em a noite de 26 de setembro, ao ter lugar o benefício oferecido ao Gabinete.)
Esta festa é do amor, da doce caridade
E da serena luz da magica Instrução.
— É a Arte dando um beijo amigo na Ciência,
É um abraço imortal d’um crânio e um coração.
O crânio é o pensamento, o raciocínio, a Ciência;
O coração é a alma, o sentimento, a Arte.
Ah! Como esta união derrama luz fagueira
Aqui, ali, aquém, além, por toda parte!...
* * *
A Ciência e a Arte — as duas gêmeas louras
Oh! que divino amor! Oh! que celeste enlace
Quando uma delas beija o homem sobre a fronte,
A outra dá-lhe logo um ósculo na face!
E como são fieis, compadecidas, boas,
Essas duas irmãs, bonitas como auroras!...
Quando uma quer prestar serviço à Humanidade,
A outra vem lhe dar seus íntimos emboras!
E quando vão-se, vão-se, atiram-se no mundo,
A fim de beber luz e de apanhar lauréis,
Oh! Nem eu mesmo sei como há quem não se atire
Às plantas fraternais, aos seus divinos pés!
Essas duas irmãs, essas serenas deusas
Encontraram-se aqui. E a festa que estão dando
É tal, que em frente dela é justo nos curvemos,
Assim como se faz a um homem venerando.
Sim. Que a festa é do amor, da doce caridade,
Da luz primaveral que chama-se Instrução.
Eu creio não haver ação mais caridosa
Do que encher de clarões o cérebro, a razão!
1881.
(No dia do Centenário)
Como aqueles heróis olímpicos de Homero
Vestidos do cristal das longas armaduras,
Que, rolados no chão com a lança, o dardo fero,
Jaziam sobre o pó, quais épicas figuras
De severos titãs, após haverem posto
No campo, em derredor, nos ares, nas alturas,
O ruido colossal da sua queda, e ao rosto
Do inimigo cruel terem cuspido o sangue,
O sangue de leão, negro como um desgosto;
Assim te vejo agora, ó vulto nunca exangue,
Lançado ao necrotério esplêndido da História,
E ainda a conservar no busto a curva langue
D'um atleta que cai, bem que no pó da glória!
Sim. Vejo-te, Pombal, estranhamente belo
Por entre a cerração dos mares da memória
Humana. Agora mesmo, agitas o cabelo
Molhado pela treva esquálida da cova
A que há cem anos deu-te o eterno pesadelo,
E sacodes o olhar aos plainos da Era Nova,
Depois de enviar também ao tempo em que viveste
Um outro olhar de amor, doce como uma trova!...
* * *
Foste um grande, Marquês! Pensaste muito e creste
No futuro da Pátria e no da Humanidade,
Foste um trabalhador, desses que a Ideia veste
Dessa blusa vibrante e enorme da Verdade,
E é por isso que agora as gerações modernas
Vêm acender, de mais, um círio na cidade
Dos mortos imortais, e trazem mil luzernas
De amor, de gratidão, de reconhecimento,
A fim de te adoçar as sombras sempiternas!
E sabes a razão desse procedimento
Humano, fraternal, magnífico, exemplar,
Dos pósteros? É esta: — Um assimilamento
Do teu trabalho antigo e do árduo labutar
Hodierno! É que se tu baniste os jesuítas
Da Pátria, nós também vamos cortando o ar
Com os nossos gritos bons de aspirações benditas
Pedindo a banição do Mal de sobre a Terra,
— Este país astral de rotas infinitas!
É que assim como tu, sem o pavor que cerra
Os membros, construíste em cima de Lisboa,
Após um terremoto horrendo como a guerra,
Um’outra capital com forças de leoa
Para servir de tenda aos teus irmãos coevos,
Assim nós, os de hoje, unimo-nos à toa
Em roda do edifício erguido pelos evos,
E vamos, ora a erguer, ora a reconstruir
Os muros, solapando os velhos erros sevos!...
*
.
Já vês que te é devida a apoteose. Agir,
Pensar, amar; erguer e venerar os velhos,
Que souberam deixar exemplos e conselhos,
É a nossa missão e a de outros que hão de vir!
1882.
(Reminiscência do Assommoir, de Zola)
Tinha um olhar tão vago a pobrezita,
Que parecia o de uma estátua antiga.
E quando o pai, rubro de vinho, em grita,
Vinha puxar-lhe a saia de mendiga
Para batê-la, alucinado, cego;
Ela, coitada, nem sequer fugia!
Mostrava apenas o profundo pego
Dos seus dois olhos onde a dor chovia...
E, com o carvão da trêmula pupila,
Era depois, a meio já tranquila,
Que ela aquecia os frios irmãozitos,
Até que um dia, indo espancá-la o pai,
Lalie morreu, gemendo, triste, um ai
E olhando meiga os magros pequenitos!...
1882.
Dans le faubourg Saint-Marcel, sous les toits, l’hiver, auprès d’une poêle sans feu, des petites filles, demi-nues, accroupies et grelottantes, travaillent.... Leurs petites mains rouges d’engelure, tournent et tournent. Les poètes ressemblent à ces petites filles; les idées sont leurs bouquets de violettes!
Édmond et Jules de Goncourt
.
Sim. É isso. O poeta é a ramilheteira
Do faubourg do Ideal; ora em febril carreira
Prende ao seio da Ciência as rosais d’uma rima
Como um nervoso amante, ora, a cravar em cima,
No céu azul, o olhar tremeluzente e vasto,
Rouba as pet’las ao Sol para enflorar a Terra;
Ora, enfim, deposita um beijo rubro e casto
Na testa d’um irmão, e então é que descerra
A lira, para dar-lhe um ramo de violetas....
* * *
Meu ramo, ei-lo. A mulher sagrada em cujas tetas
Se têm criado Homero, o Dante, Stupuí,
E toda a legião flamívoma de frontes
Que vivem a estuar como vulcâneos montes....
— Mandou-me pô-lo aos pés do autor do Guarani!
1882.
Três estrofes somente, artista. Quando assisto
A uma festa qualquer que a música sublima,
A um concerto onde os sons, ingênuos como Cristo,
Vão cantando, cantando, a fulgurante rima
Da música que sonha e que nos faz sonhar;
Eu procuro no canto ou no dulçor da festa
Os melódicos sons que as aves da floresta
Solfejam joviais da folhagem no mar!
É que, artista! eu adoro a eterna natureza!
E ouvindo o teu trinar de pássaro, impoluto,
Digo para a amplidão: a intérmina pureza
Da sua extensa voz é doce como um fruto!
1882.
(Versos escritos em uma coluna do Lazareto do Pina)
Adeus, ó mar! Quando eu cheguei, choravas
Teu monótono choro soluçante,
E ainda agora eu vejo o teu semblante
Crispar-se à dor que cospes nessas bavas!
Choras ainda. Bem. Já que te é sina
Viver vertendo em turbilhões o pranto,
Chora, oceano! Ó mar, soluça tanto
Quanto o pedir tua alma leonina!
1882.
(No verso de um retrato)
Dizem que os cavaleiros medievos,
Os louros cavaleiros de alma ardente,
Qu’iam outrora às terras do Oriente
Bater a Fé dos inimigos sevos,
Viam aparecer, quando partiam,
— Alvejando nas torres dos castelos
Como adeuses errantes, puros, belos, —
Lenços de castelães, os quais tremiam
Sob os beijos do ar!... Pois bem. Agora
Que, p’ra melhor lutar, tu vais embora
Como os donzéis e pajens de outras eras;
Deixa que as castelães dos nossos sonhos
— Nossas Ideias — em sinais tristonhos
Deem-te adeus chorosas e severas!
1882.