Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sentinela do NadaHarry Laus

Sentinela do nada

Sentinela do Nada

(Sentinelle du Néant)

Rosmarino imagina que precisa isolar-se para escrever o grande livro ainda ausente em sua carreira de escritor, um livro que o ajude a apaziguá-lo com os absurdos e contradições de sua própria vida. Tem a história alinhavada, traçou um esboço, mas a cada dia uma pequena ocupação força o adiamento do propósito. “Ainda não estou pronto” – pensa. Sai para o supermercado, o banco, o correio, a papelaria, ou inventa a revisão do arquivo feito de pastas e pastas de recortes de jornais que há mais de trinta anos dedicam a ele e à sua obra comentários elogiosos, mas de tão escassos resultados práticos, como se estreasse a cada nova publicação.

Se, por um lado, Rosmarino convive com os personagens, imaginando cenas e diálogos que deem coerência à trama, por outro, sofre o assédio constante da necessidade de isolamento total. O peso dessas duas preocupações não o deixa sossegado e. não raro, o fiel da balança inclina-se com tal veemência para o sonho da solidão que os personagens se embaralham e ele surpreende-se com a folha branca do papel ante os olhos e a caneta suspensa no ar como artefato inútil, onda ou nuvem paralisada de uma paisagem pintada. A inconstância entre os dois pesos estremece o coração de Rosmarino. O livro, aos poucos, alivia um dos pratos da balança, como se um vento traiçoeiro levasse folha por folha escrita ou a escrever, enquanto, no outro extremo, a futura casa vai tomando forma na sala, no quarto, cozinha, banheiro, o gabinete de trabalho.

Aposentado do serviço público, sozinho e sem ninguém que dependa dele, Rosmarino tem economias e rendimentos suficientes para executar o plano. Quando o livro toma a consistência de uma pluma de ponderabilidade quase nula, ele entrega-se com amor à escolha de um terreno tão isolado quanto possível, longe do barulho e das solicitações da cidade; ao traçado de uma casa simples, porém montada a gosto, com o conforto indispensável para sentir-se bem.

Em cinco meses, tudo está concluído. E há um mês Rosmarino vaga pela casa nova, onde o cheiro da tinta fresca das paredes e do verniz dos móveis recém-comprados ainda domina o ambiente, ora conferindo a despensa abastecida para o improviso das refeições, ora os dicionários e livros de consulta numa pequena estante ao alcance das mãos, ou o bloco de papel sobre a mesa do escritório com algumas folhas rascunhadas, os personagens atentos ao comando do escritor para o andamento da ação sempre protelada, embora a balança esteja livre de qualquer oscilação que não se refira ao livro.

Num desses vagares em busca de concentração, Rosmarino descobre dois olhos acompanhando todos os seus movimentos, assim que chega à varanda de onde vê um amplo espaço verde entre o mar, do qual percebe estreita faixa e o horizonte mas adivinha as ondas pelo ruído monótono que chega até ele, e as elevações que a Oeste barram o sol muito antes do poente. Como o pulsar do próprio coração, o rumor compassado das ondas incorporou-se à vida de Rosmarino, que tem contra o silêncio apenas o barulho de alguns carros passando na estrada oculta pela vegetação dos terrenos vizinhos e a algazarra incontida mas suave de centenas de pássaros pequenos e velozes, quando se reúnem sobre os fios da eletricidade, configurando inusitada pauta musical.

Rosmarino não contava com a vigilância desse olhar insistente que perturba seu indeciso e constante passeio pela varanda, onde passa grande parte do dia repisando pontos obscuros da trama imaginada, indo e voltando ao escritório para substituir uma palavra por outra mais precisa, cortando falas, acrescentando novas. Um giro de sua cabeça de Leste para Oeste apresenta-lhe a paisagem inteira, com a interferência de construções isoladas umas das outras, sem prejudicar a visão límpida da barra de mar, ora verde, ora azulada, compondo a linha do horizonte interrompida, à direita, por uma ilha esguia coberta de vegetação. Continuando a inspeção lenta e minuciosa, Rosmarino compara a rica variação de tonalidades no verde, desde a pastagem que passa à frente de sua casa até o início da encosta íngreme do alto morro que veda a continuidade da vista. O arvoredo da escarpa, dividido por grandes pedras que pontuam a elevação de cinza e negro acentuando o agreste do conjunto, enriquece a gama de cores da folhagem pela variada incidência da luz do sol, até aproximar-se do azul ao meio da tarde, quando o sol se esconde. Em dias de chuva, uma cortina transparente e esbranquiçada desloca-se compassadamente, tangida pelo vento para destino ignorado, até que as trevas engulam essa visão desoladora e triste. Rosmarino lamenta a chegada das sombras em dias claros ou escuros, porque a noite funde toda a extensão numa mancha negra, mal iluminada aqui e ali pela luz de alguma casa, até que tudo se apaga e o negrume invade o peito do escritor. Nunca havia sentido como a paisagem preenche o vazio das pessoas que ele não tem por companhia.

Numa tarde de céu claro e sem nuvens, quando o sol projetava sombra fresca sobre metade do jardim, onde os primeiros cravos amarelos começam a se abrir, Rosmarino encontrou o olhar. Em completo contraste com a mansão de três pavimentos em tijolo aparente que ocupa grande parte do terreno ao lado, um ranchinho improvisado com tábuas velhas, – “feito da noite para o dia”, imagina Rosmarino – domina o centro de uma pequena clareira entre limoeiros silvestres. E, na porta larga que dá para a varanda do escritor, imóvel e atenta sentinela de pé no umbral, uma cabra branca olha para ele como a perguntar o que faz ali, sozinho como ela.

A distância de cerca de cinquenta metros entre os dois não permite às vistas cansadas de Rosmarino distinguir as feições do animal, mesmo quando abandona a posição de guarda e caminha com elegância pelo pouco espaço que a corda de uns dois metros, presa ao pescoço, lhe dá direito: um círculo cortado ao meio pelo barraco que obstrui a outra metade. A corda, quase sempre bamba pelo chão, às vezes se alça tensa, quando a cabra não contém o desejo vão de abocanhar algum broto apetitoso sacudido pela brisa, esforçando-se, empinada nas patas traseiras, até cansar-se e voltar a assumir o posto na guarita, encarando Rosmarino indiferente na varanda.

A descoberta da cabra branca aumenta a disponibilidade dos personagens de Rosmarino, indecisos sobre o rumo dos sucessos, atores sem texto nem diretor, marionetes invertebradas soltas pelo palco à espera da magia da criação para incorporar-se e transmitir a verdade que o autor teme revelar. Pois quem se incorpora no pensamento de Rosmarino é a cabra branca. Cabra e branca, palavras de letras e sílabas idênticas, com sentido diverso pela inclusão do n e troca das sílabas... cabra abra abran abraban abracabra

abracadabra

...o sangue vermelho vivo transfundido em leite morno e espumante, rico e digestivo para as crianças, os queijos famosos, a manteiga fina, pele, couro e pelos para pelicas e pergaminhos, chapéus, malas e pastas, tecidos, além da carne para alimento do homem e o estrume que fertiliza as terras.

Impõe-se a Rosmarino conhecer melhor a cabra, definir os pontos em que poderá contar com a nova e palpitante convivência, mancha branca entre a verdura que o cerca em todas as direções. Basta descer os dois degraus da escada que o separa do jardim em formação, transpô-lo e a cerca de arame que separa suas terras da pastagem onde soltam as vacas durante o dia, atingir o cercado da mansão em cuja a clareira dos limoeiros a cabra branca acompanha atenta a aproximação a passos vacilantes de Rosmarino, que para e se apoia nos arames para melhor observá-la.

O pelo curto e liso, amarelado e sujo, não coincide com a alvura imaginada desde a varanda, e os olhos fixos, arregalados, mas ao mesmo tempo ternos e resignados, comovem Rosmarino, desejoso de transpor os fios de arame e acariciar o animal. Passos rápidos cortam a fixidez do olhar entre o homem e a cabra: Rosmarino é surpreendido na contemplação pelo capataz com uma gamela cheia de vegetais e cascas de frutas. Ao ímpeto de retirar-se às pressas, sucede a decisão de ficar para obter informações sobre o animal: quando chegou, se já dá leite, que nome tem. As respostas são secas e ríspidas: “Ontem” – “É muito nova” – “O patrão chama de Alecrim”. Rosmarino sorri satisfeito com o parentesco botânico e aromático entre alecrim e seu rosmarinus officinalis, ou ros marinus, orvalho do mar.

Como o rapaz dá-lhe as costas para varrer a casinha e Alecrim dedica-se unicamente a devorar a ração, Rosmarino toma o caminho do morro, seguindo lentamente pelo pasto onde as vacas ruminam descuidadas sem dar importância à sua passagem, a não ser levantando a cabeça por um breve instante para olhá-lo, indiferentes. Como barcos ancorados, as touceiras do bambual que limita os terrenos na subida balançam suavemente e o chiar dos longos e finos ramos verticais compõe indistinta melodia, servindo de marcação aos passos cuidadosos de Rosmarino, que toma o caminho maior, fazendo curvas para aproveitar trechos mais planos que o cansem menos, até chegar à meia encosta onde a pedra maior, arredondada e imponente em negro com uma lista clara de cima a baixo, apoia-se noutra menor para formar uma caverna contendo um olho d’água que alguém represou com tijolos cobertos de musgo, formando pequeno e profundo lago de águas transparentes.

Rosmarino senta-se para descansar da subida e, com as mãos em concha, prova o líquido gelado. Ali, nas noites de verão, poderia dormir longe de tudo e de todos, com um panorama muito mais amplo e livre mostrando o mar e o horizonte em toda a sua grandeza; quando se acordasse, bastaria abrir os olhos para que a natureza o enchesse de alegria, sem necessidade de sair da cama, ir à varanda e forçosamente, ver a cabra que o olha. Duas imagens apresentam-se vivas à sua lembrança: na primeira, o som de um acordeom recheia os espaços de uma tela panorâmica até que surge, numa curva da estrada que sobe a montanha, um rapaz tocando uma valsa vienense, para deslumbramento de um jovem pastor que nunca havia ouvido música e nada tem a oferecer em troca daquela maravilhosa sonoridade, senão uma cabra de seu rebanho. Logo se funde a cena de um conto de cabras insubmissas, como Blanquette que rói a corda que a prende para subir a montanha e, lá no alto, lutar até a morte com os lobos, que a devoram.

Alecrim, é claro, nada sabe de cinema nem de literatura e a ternura e mansidão do olhar e dos gestos no ínfimo espaço de sua liberdade nada sugerem de revolta ou determinação de enfrentar lobos, aliás inexistentes pelas cercanias, preferindo esperar a ração enquanto finge rebelar-se com a tentativa de alcançar folhinhas novas dos arbustos circundantes. Alecrim não pensa nem precisa pensar em nada; sua utilidade está em si própria, no leite que vai produzir, no pelo, na pele, na carne, no couro, nos ossos; Alecrim nasceu útil, e essa utilidade independe de sua vontade ou reflexão.

Rosmarino volta à mesa repleta de folhas de papel rasuradas ao ponto de necessitar reescrevê-las para não se perder, recapitulando o que já havia escrito. Um personagem chama-se Jorge, alusão a uma lembrança de infância na forma de uma estampa na sala de jantar da casa dos pais, onde o santo guerreiro em armadura de prata, montado em belo cavalo branco, ataca com uma lança dourada o dragão verde com a boca ensanguentada. Assustado, Rosmarino vê que, de repente, Alecrim substitui o dragão agonizante e ele solta a caneta como se levasse um choque ou segurasse um cigarro pela brasa acesa.

Para ver-se livre dessas interferências, Rosmarino pensa em soltar Alecrim de noite, espantando-a em direção à estrada para que desapareça ou seja atropelada ou roubada por algum caminhante noturno. Sai nervoso do escritório e antes mesmo de atingir a varanda entrevê o animal entre as malhas da cortina da sala, na posição ereta de sempre, vasculhando a fachada da casa à espera do caminhar ensimesmado do escritor.

Libertar Alecrim passa a perseguir o pensamento de Rosmarino, principalmente de noite, enquanto espera o sono na cama, ou perambula pela casa às escuras. Se antes aproveitava esse tempo difícil e angustiante que precede o desligamento total da realidade madurando ideias para o livro, agora desespera-se com a demora das sombras, quando pode dedicar-se unicamente à intenção de soltar a cabra e ficar livre daqueles olhos cor de avelã, raiados de amarelo, como os viu naquele dia da aproximação, aquele olhar de ternura e gratidão antecipada pela libertação que só depende dele.

Numa noite em que o vento sul chega violento e frio, obrigando todas as casas a se fecharem e ao próprio Rosmarino a evitar a varanda, decide-se. Veste abrigos e enfrenta a ventania gelada que agita o bambual e todas as árvores como se quisesse levá-las com ela, contente porque imagina o alívio que dará a Alecrim, presa naquela casinha pobre e desprotegida, Alecrim sem peias correndo pela j escuridão até desaparecer de suas vistas, indo abrigar-se onde pudesse e como quisesse, sem obstáculo algum à sua vontade.

Ao atravessar o aramado da segunda cerca, divisando a porta do casebre de Alecrim sem perceber qualquer sinal de vida, um pensamento detém Rosmarino: num bairro como este, onde todos se conhecem, de que adianta soltar a cabra? Não faltará quem, amanhã mesmo, a traga de volta; a ventania não convida ninguém a passear de carro ou a pé pela estrada, muito remota a possibilidade de atropelamento ou roubo do animal, devendo ser levada em conta, também, a descoberta da autoria, expondo-o ao ridículo e tornando inviável sua permanência no refúgio tão longamente almejado. A esta cadeia de arrazoados junta-se outro mais irritante: como se convenceu de que a cabra deseja a libertação se a resignação e a complacência são os indícios mais notórios no comportamento de Alecrim? Caso anseie pela liberdade, por que não rói a corda como a cabra de Monsieur Séguin?

Desorientado, Rosmarino retoma o caminho de casa no meio da chuva que começa a cair violenta, abriga-se na varanda, chega deprimido à poltrona da sala e aperta as mãos contra os ouvidos na tentativa de fugir a uma voz que lhe sussurra insistente: “Para libertar-se do olhar, é preciso fazer com Alecrim o que São Jorge fez com o dragão”.

Trocando a varanda pelo escritório como lugar de meditação, Rosmarino limita a paisagem ao morro dos fundos da casa e à pedra soberba que o afronta e desafia a isolar-se ainda mais, imolar-se dentro de si num mergulho à procura de águas purificadoras que se fundam com o ar e onde possa levitar com todas as bandeiras de glória que sonhou. A intenção do crime, dia a dia mais próximo, não lhe concede coragem para encarar Alecrim, embora sofra a falta dessa comunicação imperfeita. Permite-se apenas, alguns minutos por dia, olhar entre os fios da cortina para a clareira e a casinha onde Alecrim permanece de atalaia, guardando e aguardando o nada, vazia de ideias e ambições.

Escolhida a faca mais afiada, uma toalha para aparar o sangue que vai jorrar e sujar-lhe as mãos, o lençol para envolver Alecrim e ocultar o corpo no lago da pedra grande, Rosmarino sucumbe ao desespero, refutando qualquer argumento de lógica e prudência, numa noite de céu encoberto, ausente de lua e de estrelas. A passos rápidos, sai do quarto, atravessa a sala, sente na varanda o frio da madrugada alfinetando seu peito, a paisagem apagada de todas as ressonâncias de cor e horizonte, atravessa o jardim e penetra o tecido de sombras que o separa de Alecrim.

Trêmulo e agitado à porta da casinha, tateia o escuro até tocar, com um arrepio, o pelo liso e quente do animal que não se assusta, apenas levanta-se e aparece na abertura, entregando-se docilmente ao abraço de Rosmarino. A faca tomba de sua mão com um ruído abafado na terra batida pelas patas do animal, cai a toalha, o lençol e Rosmarino suspende a cabra nos braços à altura do peito e dois corações descompassados parecem bater no mesmo corpo. Ao desprender a corda do pescoço de Alecrim, ele é tomado por uma onda de intensa ternura, acaricia a pequena cabeça da cabra e tenta encontrar os olhos de avelã rajados de amarelo que a escuridão não revela.

Respirando no mesmo ritmo que Alecrim, Rosmarino tem sua cabeça inclinada para a direita, sobre o pescoço do animal, e não se dá conta de que volta para sua casa, sobe os degraus para a varanda e, com todo cuidado, deposita Alecrim sobre a poltrona. No mesmo andar lento e oscilante, um vago sorriso nos lábios, volta à casinha de Alecrim. Abaixa-se porque não cabe em pé na porta, em seguida ajoelha-se olhando para fora e prende ao pescoço a coleira de Alecrim amarrada à corda. O ar de satisfação nos olhos de Rosmarino é tão natural como a claridade do novo dia que vai nascendo.

Campeche e Floripa

Ago/Set 1991

Cambirela

Cambirela

Ainda não amanhecera. Herta cansou de ficar revirando-se na cama e levantou-se. Primeiro foi à sala e abriu a cortina para ver a paisagem pelo janelão envidraçado. O Cambirela dominava as alturas, sobranceiro na linha das montanhas, um recorte contra o céu que dava princípio à claridade. As nuvens começavam a soltar cores no espaço, sem preocupação alguma em combinar negro e cinza, laranja e vermelho, cada dia tudo diferente e mais bonito. Herta benzeu-se. Só Deus poderia armar um cenário tão grandioso. Os dramas teriam que se acomodar à cenografia mutante, indiferente às lágrimas e aos risos dos personagens. Para ver melhor, aproximou os olhos do vidro e apoiou as mãos enrugadas no parapeito. De repente, o mar impôs-se. Uma cor indefinida, a esta hora, sem canoa, barco, nada, ninguém. Superfície pacificada, ali para sempre, fosse qual fosse o problema dos homens. Como o Cambirela, o mar iria ultrapassar a vida de todos. Um sinal de tristeza perpassou o olhar de Herta, a cabeça tão próxima do vidro que o nariz tocou a lâmina fria. Então, viu a mobilidade das coisas: alguns ônibus cruzavam a ponte, carros corriam pelas avenidas em torno do Terminal Rita Maria. As janelas fechadas, o movimento sem som algum, como ela gostava. Alceu estaria dormindo abraçado à mulher. Herta abriu as vidraças para o barulho dos carros e a voz anunciando a partida dos ônibus do Terminal levarem este pensamento. Voltou-se e a passos lentos entrou na cozinha para preparar o café que tomaria sozinha. “Que bom se ele pudesse estar aqui.”

– Alceu, acorda! Depois não diz que não te chamei.

Mara havia preparado a mesa com tudo o que o marido gostava: uma fatia gelada de mamão, mel para passar no pão torrado, chá e leite. Mas sabia que Alceu iria puxá-la pela mão, o braço, os cabelos negros, até que os lábios de ambos se tocassem.

– O melhor carinho é o da manhã.

– Para! Tu vais te atrasar.

– A rotina, maldita rotina, suportar a burrice daqueles meninos!

Estava cansado de dar aulas o dia inteiro para manter a família: Mara, ele, as crianças. Antes de sair foi vê-las dormindo, duas meninas de três e cinco anos, deitadas em caminhas azuis.

– Bem que eu disse para não comprar camas de cor – reclamava Mara.

– Ora, que diferença faz azul ou cor-de-rosa? Por acaso as meninas vão virar homens?

Enquanto beijava as filhas, Alceu sorriu a um pensamento idiota: “Será que o professor Quirino dormiu em cama cor-de-rosa quando criança?”

Depois do café, Alceu foi esquentar o motor do carro e Mara abriu o portão. Um beijo de despedida, a mão da mulher acenando, seus olhos verdes atentos ao trânsito por onde o marido enfiou-se até sumir na primeira esquina.

Hora de oração para Herta. Sentou numa poltrona, de costas para a paisagem e abriu o Missal. “Não ameis o mundo, nem o que está no mundo. Porque tudo o que está no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida, e isto não vem do Pai, mas do mundo. Ora, o mundo passa e com ele a concupiscência, mas quem faz a vontade de Deus permanece eternamente.” Ela não compreendia por que não amar o mundo, se era obra de Deus. O perigo de amar o mundo seria amar o que nele está? Mas como não amar o mundo e suas coisas, se a vida só tem o mundo e suas coisas para serem amadas? Herta benzeu-se: há Deus, dentro e fora do mundo, em todos os lugares, a quem se deve amar sobre todas as coisas, mas que fazer das sobras de amor que vinha acumulando por mais de setenta anos e, como uma roseira que se poda, multiplicavam-se com mais força a cada dia? Ainda menina, dedicara-se aos irmãos menores, quando os pais faltaram. Depois, a vez dos sobrinhos; mais tarde, os filhos dos sobrinhos, numa corrente que a fez esquecer sua própria vida. Agora, tão velha e cansada que já não servia a ninguém, ainda sentia necessidade de dar-se. Tratar de si, rezar, cuidar das plantas, ir à missa aos domingos, escrever cartas e poesias, limpar o apartamento, fazer comida, mais o que inventasse para encher os dias, deixavam-lhe desvãos de tempo que o rosário não conseguia cobrir. Foi então que surgiu Alceu.

A primeira aula da manhã era Geografia. Quando Alceu entrou na sala, os alunos levantaram-se e o bom-dia conjunto atordoou-lhe os ouvidos como o som repentino de um rádio ligado a todo o volume. Eram meninos entre dez e doze anos, todos de uniforme azul e branco, o olhar atento às primeiras palavras do, professor.

– Podem sentar.

O mapa-múndi ocupava quase toda a parede do quadro-negro. Alceu segurou o ponteiro pelo meio e começou a girá-lo de um lado para o outro, encarando os alunos. Por onde começar a viagem? Com o cuidado de não encobrir o mapa, fixou o ponteiro no L de Brasil, depois deixou-o escorregar ao L maior de América do Sul.

– Hoje é Marrocos, professor.

O ponteiro atravessou o Atlântico, costeou a África a partir da Gosta do Marfim, passou por Senegal, Mauritânia, estacou em Rabat.

– Aqui está.

Tão grande o mundo e ele preso numa sala de aula com trinta meninos de azul e branco. Falaria em camelos, palmeiras, em tâmaras - para deixar os alunos com água na boca. Descrever Casablanca como havia visto no cinema, as mulheres de rosto encoberto por véus; o cinódromo, onde belos cães amestrados correm atrás de uma lebre de mentira, presa a uma haste mecânica; falar na grande praça de Marrakech com os encantadores de serpente e os escribas inventando cartas de amor para os que não sabem escrever. Daria limites, superfície e população de Marrocos, números que todos anotariam como questão certa para a prova escrita. Tolice guardar esses números, sobrecarregar a memória com dados que os dias e as guerras encarregam-se de alterar. Mas estava no currículo escolar e o mais que Alceu fazia era acrescentar algum fato pitoresco para manter a atenção, mesmo inventando histórias que tanto podiam ter acontecido na Nigéria como no Egito - ou mesmo em qualquer canto do Brasil, como Lages, Santa Catarina, onde Alceu dava aquela aula pensando em como era insignificante, perante a grandeza das terras. O professor Quirino tinha razão: “Por que preocupar-se tanto com o que possam vir a pensar e dizer de teu comportamento? Ninguém te conhece na Europa, Ásia, Oceania...” Mesmo no Brasil, quantas pessoas conhecem Alceu Perez? Algumas em Lages, outras em Porto Alegre, onde estudou, menos ainda na Capital, por suas idas mensais à Secretaria de Educação. Foi numa dessas viagens que Eloísa apresentou-o a Herta. A voz suave, os olhos de um azul tão lindo que o enterneceu, uma nota jovem no rosto enrugado, lutando contra a fragilidade do corpo, os seios um quase nada, espremidos dentro de uma camiseta branca aparecendo sob a gola de uma blusa justa.

-- A velha telefonou -- disse Mara.

-- Já falei...

Alceu irritou-se. Havia pedido a Herta que não telefonasse mais, como também lhe disse para endereçar a correspondência à Escola, a fim de evitar as insinuações absurdas da esposa. Mas ela entendeu outra coisa:

-- Está bem, não chamo mais de velha.

Para não transformar o assunto em discussão, como de outras vezes, Alceu foi para o quarto e só saiu quando Mara chamou-o para almoçar. A preocupação com as meninas ocupou a mulher durante a refeição e, ao final, o marido foi descansar a meia hora de todos os dias. Mas não conseguiu dormir. O pensamento oscilava entre as aulas que deveria dar pela tarde, o mesmo assunto repetido três vezes para turmas diferentes, as cartas com poesias amorosas de Herta, a insistência de Quirino. De repente, as filhas entraram rindo pelo quarto e pularam para a cama.

-- Mamãe mandou dizer que está na hora -- falou a maior.

Abraçados, rolaram os três sobre a colcha branca até que a menor quase cai da cama. Mara chegou à porta:

-- Vamos parar com esta bagunça!

Mas não se furtou ao desejo de participar da brincadeira e ficaram as crianças fazendo cócegas nos pais e rindo na maior alegria.

No pátio da escola, Quirino e Eloísa conversavam à sombra das arcadas, enquanto os alunos enchiam o espaço de risos e correrias, aguardando o sinal de início das aulas.

– Lá vem o príncipe – disse Quirino.

Eloísa olhou Alceu aproximar-se, o andar balanceado mas altivo, a roupa muito bem posta sobre o corpo alto e forte, a cabeleira cuidadosamente penteada, de um castanho claro com reflexos dourados. Alguns meninos o cercaram e ele, sem ver os dois professores, ficou à vontade no meio do círculo que se comprimia, cada um querendo tirar dúvidas sobre esta ou aquela matéria.

– Na sala – disse ele. – Aqui não é lugar de estudo.

O som agudo da sineta dissolveu o grupo e o jovem professor seguiu no mesmo passo pelo pátio, avistando Quirino e Eloísa, que continuavam a olhá-lo.

– Vou à Capital amanhã – disse Eloísa.

– Amanhã? Mas a reunião não é na semana que vem?

– Preciso comprar umas coisas que não encontro aqui.

– Deixa Eloísa divertir-se – interferiu Quirino.

Entre Alceu e a professora, Quirino passou o braço pela cintura de ambos e foram caminhando lentamente em direção às salas de aula. Alceu sentiu, contrariado, a pressão dos dedos do professor massageando seu corpo.

Havia chovido a noite inteira e o céu amanhecera encoberto. Mas, para os lados do Cambirela, o tempo estava um pouco melhor, embora não se pudesse ver o pico. Com os vidros fechados, Herta olhava de vez em quando a paisagem triste, esperando um milagre que tudo abrisse e o sol imperasse para trazer-lhe um pouco de alegria, pois o peso das nuvens oprimia seu coração. O rosário entre as mãos, as contas deslizando entre os dedos, a oração mal definindo palavras que, por sabê-las de cor, perdiam força e sentido, os lábios em movimento tão leve como os de um peixinho no aquário. Súbito, talvez movidas por um vento que não chegava até ela, as nuvens romperam-se e o Cambirela surgiu, dourado pelo sol oculto. Herta estremeceu. Mais uma vez a natureza suplantava o dia anterior, destacando apenas o ponto mais alto entre as montanhas, uma fímbria de prata emoldurando o pico resplandecente de luz que definia, com precisão, todas as saliências da encosta. Foi então que Herta ouviu, bem nítida, uma voz chamando seu nome, como se viesse de uma pessoa atrás de si. Voltou-se espantada. Ninguém. Percorreu todas as peças do apartamento, cada vez mais aflita, até acercar-se da porta de entrada. Quem poderia ter entrado, se estava trancada com as duas fechaduras, o trinco e o pega-ladrão? Novamente na sala, abriu o janelão e olhou a parede vertical. Lá embaixo, as pessoas subindo a rua a passos lentos para o trabalho. Tolice, ninguém poderia escalar o paredão do edifício para chegar ao décimo andar. Desalentada, fechou os vidros e procurou rever o Cambirela. Inútil: a encenação estava encerrada.

Antes de concluir que ouvir a voz não era outra coisa senão uma alucinação passageira, murmurou:

– Alguém está precisando de mim.

Seria ele? Quem sabe acontecera alguma coisa e Alceu quisesse pedir-lhe auxílio? Foi por isso que telefonou naquele dia, contrariando sua recomendação. Talvez também pelo telefonema e pela desconfiança tola de Mara, o rapaz estava escasseando as visitas, em suas vindas à Capital. No começo, nem que fosse por meia hora, quinze minutos, ele avisava e aparecia. Herta vestia as melhores roupas, enfeitava-se, pintava o rosto discretamente, punha perfume, enchia os vasos de flores. Alceu falava sobre as filhas, a mulher, problemas com os alunos; ouvia pacientemente os últimos poemas de Herta, inventava coisas de que ela jamais duvidou:

– Um dia um menino me perguntou se eu gosto de poesia. Só as poesias de Herta, eu disse. Agora todos querem conhecer você. Quando for a Lages, vamos à Escola. Prepara um recital...

Herta guardava as cartas de Alceu numa caixa forrada de camurça, tão macia como a pele do moço ao tocar-lhe o rosto nos beijos convencionais de chegada e partida. Quando a saudade era muita, ela acariciava a tampa da caixa, relia as cartas, descobria declarações de amor em simples palavras de cortesia. Envergonhava-se. “Tudo que está no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos”, dizia S. João. Procurava convencer-se de que não era desejo carnal o que sentia por Alceu, nem teria sentido querer o corpo de um homem casado, duas filhas. Se quando jovem perdeu todas as oportunidades de prazer em nome do cuidado devido aos irmãos menores, fazendo-a voltar-se para Deus, como aceitar o amor num corpo fanado pelos sacrifícios em nome da solidariedade humana? Concupiscência dos olhos... Também não seria isso porque uma é o começo da outra, o desejo de posse com que se olha um fruto maduro, uma flor no jardim, um vestido na vitrina. Então, o que seria? Herta apertava as contas do rosário e procurava concentrar-se na oração, mas logo Alceu estava de volta, o sorriso iluminando o rosto claro como o sol iluminava o Cambirela.

No dia em que Eloísa trouxe Alceu ao apartamento e ele elogiou os olhos azuis de Herta, ela apenas sorriu, sem agradecer. Estava hipnotizada pelos olhos do visitante. De que cor seriam? Nunca conseguiu defini-la. Variava entre o verde e o azul, mesclados a mínimas estrias amareladas quando ele sorria. O contato da mão quente, unhas aparadas nos dedos alongados, o anel de professor como único ornamento, também marcaram, indelével, aquele encontro. A cada nova visita, a seiva dos olhos e o calor da mão faziam a primeira impressão renovar-se, sempre com um toque diferente, inédito, fosse no olhar ou no sorriso.

Vez por outra Eloísa telefonava ou aparecia, a pedido da mãe, antiga companheira de Herta no Colégio Coração de Jesus. Nunca mais trouxera Alceu, nem sabia que os dois haviam ampliando o conhecimento através de correspondência e novos contatos. Por isso, Herta surpreendeu-se quando a moça perguntou-lhe de chofre, ao telefone:

– A senhora se lembra de Alceu Perez, aquele professor que eu lhe apresentei um dia?

Herta apertou a mão sobre o fone e encostou-se à parede.

– Alguma desgraça?

– Sim e não.

A estranha necessidade humana de divulgar notícias levou Eloísa à pergunta inesperada, como se a propalação dos fatos diminuísse as consequências do que havia acontecido.

Herta ouviu tudo, interferindo com monossílabos para não ver interrompida a narração que lhe fazia mal, ao mesmo tempo que a curiosidade impedia o corte da ligação.

– Num motel, imagine a senhora.

A notícia foi escamoteada pela imprensa para salvaguardar a reputação da Escola, mas era comentada em todas as rodas da cidade, a partir do momento em que os dois foram vistos saindo do motel. Ninguém se lembrava mais quem fora o primeiro a ver e cada um contava e aumentava como se fosse o descobridor do encontro proibido, sempre com detalhes mais escabrosos, conforme a maldade e a imaginação de cada um.

– Eles se encontravam todas as semanas.

O riso irônico de Eloísa no outro lado, um “sei” quase apagado de Herta.

O que teria levado Alceu a concordar com a proposta tantas vezes repetida? A insistência, a curiosidade, a vaidade exacerbada pelos elogios à sua beleza, ou alguns copos de bebida a mais antes da decisão? Quirino argumentava e, por baixo da mesa de bar, tentava excitar o rapaz com os pés prendendo os dele, as mãos buscando as suas, acariciando-lhe as coxas retesadas. Nenhum perigo, dizia Quirino. Entra-se pelo subsolo, pega-se o elevador, a chave está na porta do quarto. Ninguém nos vê. Na saída, deixa-se o dinheiro sobre a mesinha de cabeceira.

Alceu não viu nenhuma mesinha de cabeceira, quando entrou no quarto. Mas havia uma encostada à parede, sob um grande espelho refletindo os dois homens nus sobre os lençóis vermelhos. Como haviam chegado àquele ponto? Quirino foi logo tirando a roupa com a desenvoltura de um atleta, falando sem parar sobre uma viagem ao Rio de Janeiro. Alceu desabotoou lentamente a camisa, abriu o cinto, correu o zíper da braguilha, mas não tinha coragem de despir-se. Por fim, como se estivesse numa sauna, arrancou camisa e calças num gesto rápido. Sua cueca amarela juntou-se à cueca azul de Quirino, ao pé da cama. Para ganhar tempo, tirou o relógio do pulso e colocou-o sobre a mesinha. O outro, completamente à vontade, descrevia os rapazes bonitos de Copacabana.

– Vem logo – interrompeu-se Quirino.

Alceu deitou-se desajeitado e foi abraçado por Quirino, que jogou a perna peluda sobre o corpo inerte do moço. Braços cruzados sob a cabeça, dedos fortemente entrelaçados, Alceu pensou que as cuecas misturando cores a seus pés fossem bandeirolas esquecidas. Imaginou-as subindo murchas ao topo de um mastro, à espera de um vento que as desfraldasse. Mas, no quarto abafado, nenhuma brisa corria para excitá-las. Indiferente às mãos e à boca que percorriam seu corpo, começou a falar sobre Mara, as crianças, as poesias de Herta.

– Tu precisas conhecê-la. É uma velhinha tranquila e muito simpática.

Quirino foi sendo tocado por um sentimento de culpa que nunca o havia abordado em situações semelhantes. Desenlaçou os braços do corpo quente e trêmulo do companheiro, o desejo e o receio de uma recusa disputando campos opostos. Não demorou a concluir que tudo não passava de um equívoco. O encontro com Alceu poderia ter acontecido em qualquer lugar, sem necessidade de dissimulação nem nudez. Começou a argumentar consigo mesmo que deveria contentar-se com a conquista, dobrar um homem até vê-lo despido a seu lado. O resto é a repetição banal das mesmas sensações.

Enrolado numa grande toalha, como se o pudor esquecido tivesse reassumido seu posto, Quirino decidiu que um banho frio era o ideal para espantar toda sobra de excitação. Quando voltou, Alceu já estava vestido, o olhar cambiante girando pelos lençóis amassados.

– Alceu disse a Mara que foram lá só para conversar – continuava Eloísa ao telefone. Quem pode acreditar nisso?

Quirino bateu no ombro de Alceu:

– Vamos embora.

Recompondo-se do equilíbrio momentaneamente perdido, e querendo simular naturalidade, Alceu começou a contar a história de um passarinho que vira um dia na varanda de uma casa. Vivia pousado num poleiro alto, preso pelo pescoço frágil por uma coleira, como um cão.

– Se sentir fome e voar fora da hora, será estrangulado.

Como se nada estivesse ouvindo, Quirino permaneceu indiferente.

– Saíram no carro de Alceu. Como fingiam bem! Imagine a senhora que eu sempre estava com eles e nunca