Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Cinza e bruma e Poemas dispersos de Othon d'Eça. Florianópolis: Fundação do Banco do Brasil; Ed. da UFSC, 1992. Cinza e BrumaOthon Gama d'Eça

O livro da saudade

(Cinza e Bruma!...)

Cinza e Bruma!...

É o Outono... o derradeiro canto da cigarra na esparsa tristeza da paisagem... Harmonias de Stradivarius, em surdina... nos longes desfalecidos... aos ritmos grisalhos dos versos de Rodenbach!

E as folhas caindo lívidas, como lágrimas d'Imagens... ao vento que vem do Sul...

São as árvores que choram com Saudades da Primavera!...

Eu tenho piedade das árvores no Outono...

Meigas e abismadas, entre as névoas emolientes, elas tomam expressões raras e humanas!

Recordam raparigas tuberculosas nos êxtases da tarde...

E pelo Outono que as lembranças despertam e a Alma das Cousas salmodia as canções do Passado – no Silêncio cinzento dos caminhos...

Nesses dias de Vida imóvel, ao consolo das lareiras acesas... os velhos ficam a cismar, esquecidos dos anos... esquecidos da Morte...

Enquanto fora, as nuvens peneiram, na garoa translúcida, a melancolia que sobe dos pinheirais... das águas mudas de Tédio... dos campos onde há mugidos que até parecem lamentos!...

Quando eu era pequeno e ainda tinha meigos avós para contarem-me histórias, quanta vez supliquei nas minhas rezas ingênuas, à dorida Senhora do Desterro, que não tardassem a cair as folhas dos pessegueiros!

E apenas apareciam as primeiras manchas de gaze nas montanhas, e, sobre o mar, a bruma estendia as moles carícias do Outono já próximo, no meu coração, onde bruxuleiam restos do Sangue godo da minha raça, as alegrias eclosavam, abriam-se em glicínias de sóis... e era como se dentro de mim continuasse aquele tempo que morria lá fora...

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Outono... irmão mais triste da Tranquilidade!

Eu bem te sinto n'alma... com os teus espasmos de Sombras... as tuas névoas... os teus crepúsculos lívidos e litúrgicos!...

Desterro, alma do mar e da saudade...

A Laércio Caldeira

Desterro é o poema de pedra da tranquilidade... Nos lentos crepúsculos de agonias cinzentas, parece um lavor antigo num retábulo de opala...

E, sobre a sombra do céu, a sua sombra nas águas, recorda um fresco flamengo num muro de porcelana...

Ao longo do seu cais onde os saveiros, inquietos, suplicando bonança, erguem para Deus os braços vincados pelas driças, a tristeza da Penumbra e da Umidade estira-se como um grande gemido de Melancolia...

Desterro tem a expressão de Santa Tereza de Jesus!...

Pelas manhãs engessadas do Inverno, quando as brumas encanecem as Horas e fazem pensar na doçura sem orlas da Renúncia, ela ensimesma-se num Sonho de vitral e fica absorta, de joelhos, enevoadamente a relembrar...

Então, para alegrá-la, as maretas ondulam, em versos de guipure, ao ritmo do vento, as Canções que vieram rimando do mar alto!...

E as músicas dos sinos evadem-se dos cárceres de bronze, e palpitam entre as neblinas, e elargem-se vibrantes, sobre os telhados e sobre a paisagem, em grandes enciclias brancas e sonoras!...

No entanto é vã essa alegria das águas e das torres... Desterro é a Tristeza que parou à beira do mar!...

Do Mar sempre enamorado de sua Sombra... vaga... contemplativa... feita das sete dores da Saudade...

Na casa de Labão...

A Agenor de Carvoliva

Levanto-me do leito...

Vagos restos de Noite espreitam das minhas retinas, pondo Visões de Sombras nas paredes, ermas presenças nas cousas que me rodeiam...

Abro as janelas...

Lá fora, Maio espraia-se, despindo a clâmide de gaze da manhã... desvendando nudezas de paisagens... torsos azuis de montanhas mal despertas!

Há musselinas de sons pelo ar branco... tecidas do linho dos sinos... desdobradas ao vento que vem do Mar... Perto, a sereia satânica de uma fábrica uiva...

A Fera, estremunhada, distende os músculos potentes, boceja rolos de fumo, no primeiro repasto da Miséria e da Hulha...

O Sol é apenas um esboço nos meus olhos.

Pressinto núpcias de flores nos jardins...

E vem-me, então, a Saudade de ti, ó Maio da minha província, custódia azul onde o Sol, hóstia de oiro, se eleva na Exaltação pagã da Vida que voltou!...

Murmúrios d'águas moças reverdecendo os campos... alegrando nas selvas os faunos tristes...

"Versos" de Mistral em revoadas... June Caprice a sorrir pastorais entre as papoulas em sangue...

Ó Maio da minha província! Vaga Visão da Primavera coroada de rosas... Existências cantando em coro, pelas cigarras que morreram em Abril, a derradeira Missa do Esplendor...

Pianíssimos da Seiva nas searas, tirados pelo Terral, nos sistros de oiro das espigas...

Maio! quatro folhas do trevo da Ilusão...

Tu és como a Saudade... velho sangue que volta às nossas veias!...

Alma sem corpo...

A Virgílio Várzea

A Distância é a sombra da Morte esparsa sobre as cousas. Ancas fecundas de maternidades vegetais, figuras cismadoras de torres, todas as sugestões dos relevos e todas as apoteoses da Visão empoeiram-se, somem-se, ao longe, como vagos fantasmas do Silêncio, esbranquiçados de ais!...

A paisagem enjeitada no Ermo, caminhando, enevoando-se, deixa no vitral das minhas retinas um rastro de Existências a morrerem, apenas esquissadas.

Ó Distância! tristezas de Anto Nobre... crepúsculo dos desenhos e das Cores... Isadora dançando noturnos de Chopin!

No teu seio esfumado de Melancolia e de Extensão, as gemas pompadour dos sinos, as rapsódias malarmistas das raparigas espraiam-se, dissilabam-se, e tornam-se migalhas de sons que ninguém mais pode entender...

E eu fico d'olhos perdidos na penumbra de luz, de braços abertos, crucificado em mim mesmo...

A Saudade é então o sangue das minhas feridas.

E ponho-me a recordar os longes da minha ilha, onde nem se apagam os voos dos pássaros marinhos!...

Longes adormecidos de harmonias de sombras... névoas ascendendo em ritmos de seda... e as pupilas do mar cheias do azul do céu e as retinas do céu cheias do azul das montanhas...

Saudades das Distâncias que não vejo...

Ermas horas dos meus dias de exílio... músicas escuras de velhos órgãos irreais... Sombras da minha Sombra... rastros de Existências que morreram, esquissadas apenas!...

Evocação...

A Diniz Júnior

Inverno na minha Ilha... Céus que se apagam na terra... e, nas lentas manhãs grisalhas, os velhos sinos chamando, altos, pelas bocas dos campanários, as raparigas à Oração...

Dias quase sem floras... sem poentes, da cor da chuva, silenciosos como átrios vazios e que fazem aflorar, sobre as Cousas imóveis, a Alma tranquila do Silêncio!

E noites cheias de legendas, e em que os nervos vivem os ritmos da Emoção, ao flamejar glorioso das lareiras patriarcais...

Inverno na minha Ilha...

Geadas encanecendo os campos, gotejando das ramarias desertas... donde as folhas caíram mortas, descobrindo ninhos vazios...

E latinas boiando longe... imprecisas e transfiguradas... tão quietas como se fossem os Sonhos brancos das Águas emergindo entre as brumas!...

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Inverno na minha Ilha...

A Angústia zoante do Vento sul... a neblina apagando o mar...

E, nos Angelus exalviçados, os velhos sinos orando, em sete gotas de sons, à Dorida Senhora do Desterro!...

Longes brancos...

Para Manoel da Nóbrega

Quando o Inverno chega, derramando das ânforas infinitas as floras de Cinzas e os Silêncios de névoas, as almas dos contemplativos enchem-se de Fantasmas!...

Saudades de si mesmo... Sombras de Passados... Visões que morreram com as últimas cigarras!...

Os contemplativos são como cegos perdidos nas estradas...

Sentem apenas a Alma das Existências!

Almas das suas almas esparsas, transmigradas... feitas de penumbras de paisagens – onde há perguntas de Silêncio sem respostas, velhos céus cheios de deuses ignorados!...

Horas de Cinza que afloram as Essências... as asas brancas dos Sons impercebíveis...

"Borluut" suspenso muito acima da Vida...

Lá alto, onde é de Céus a música dos carrilhões... e são de gaze as águas dos canais...

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Contemplativos! estátuas de Alvoradas com olhos de Crepúsculo! quando as vossas almas errarem pelos Ermos, exalviçadas, esbatidas, como Santas de vitrais vistas de longe... bendizei a Renúncia... exaltai a Tristeza... e podeis morrer tranquilos e felizes na sombra em cruz das vossas Sombras...

Porque depois vem o Tédio, velho Monge ressuscitado, contar, em surdinas de languidez a elegia mortal dos Sepulcros vazios...

E fica muito tarde para morrer...

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Papoula branca...

Para Nemésio Dutra

Num dia cheio de Tédio, quando dentro de mim só existiam estranhas impressões de Ausências, eu desci para a Cidade...

Andavam vozes de névoas pelo ar... mistérios de azul nos longes, sugerindo o repouso.

Então o outro Ser que dirige o meu ser foi-me guiando os passos incertos para essa rua onde há chineses, trágicos e excitados, que nos desvendam outros mundos em volutas de ópio!...

Que bafio de sepulcro nessa rua!... vala comum das Misérias dos nervos!...

Que lívido cheiro de águas mortas, enoitecidas em poças, como olhos de velhos bruxos apodrecendo ao luar...

Caronte descansava a um canto, vestido de mendigo, à espera das almas que não tardariam a surgir!

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Depois...

De todas as bandas começou a subir uma penumbra luminosa, Luz diluída em maciezas de veludos, que foi imprecisando, apagando esse Espectro de pedra de Cidade...

Abriu-se um grande Silêncio cheio de transparências...

Os meus olhos de alma reviram, entre a translúcida nuance de sete cores em que tudo se irisara, SANTA BÁRBARA! quieto recanto medieval da minha DESTERRO.

E era como um deslumbramento de gravura antiga!... Gustavo Doré a ilustrar a história do meu sono...

Vozes invisíveis, ao ritmo éreo dos sinos, cantavam, em versos do Passado, pelas ruas, as legendas marulhosas da ilha...

Havia núpcias de reflexos nas pequenas alcovas dos azulejos... Aparências de menestréis nos abraços das grades das janelas...

As fachadas altas do casaredo, na tranquila nudez dos rostos de pedra, sugeriam Ursulinas em êxtase, meditando!...

E até o pequeno e claro rio que repousa no mar, junto ao velho forte, também cantava, no rolado murmúrio dos seixos novos, as expressões de mágoa dos álamos... as bíblicas pastorais das Sombras refletidas na jornada.

Lenta e doce Harmonia rolava pelos telhados, música feita de névoas, como pedaços brancos de cristais diluídos em sons!...

Depois...

No escuro nicho de meu corpo a minha alma reentrou!...

E eu fiquei parado no esplendor do meu Sonho...

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Despertei.

Em torno do meu leito, na sala vasta onde se ocultava a Noite, vultos erguiam os braços!...

Mas só as suas mãos branqueavam no ar úmido e torvo, trêmulas, como asas fantásticas que adejassem, sem corpo, na meia luz fugindo para o teto...

Folhas mortas

A derradeira lembrança

A Olegário Mariano

Expulsos do Olimpo, com os olhos ainda cheios de alegrias da última apoteose, os Deuses luminosos desceram para a Terra.

Incruezas humanas... duras e cansadas peregrinações ao longo dos caminhos desertos, resignadamente suportaram!...

Por todas as bandas a gleba hostil, a indiferença dos campônios... as atitudes estranhas das próprias cousas que eles haviam enchido de ritmos e de Belezas.

Glórias e Exaltações!... oferendas d'oiro e Sangue que a música ondeante dos bailados suavizava a rudeza ritual, tudo se fora... e acabara, espavoridamente, às canções que os pastores do novo Deus entoavam, ao Sol...

E a caravana seguia sempre... tangida pelas mesmas infelicidades... dolorosamente... indefinidamente avante!...

Depois... os Deuses maravilhosos foram morrendo, um a um, à beira das estradas, entre as rosas secas das coroas e o sadio zumbido das abelhas!

Morriam exangues... de olhos pisados das insônias... soberbos... estoicos e predestinados...

Sobre eles o Céu muito alto e vasto de indiferença!...

Da coreia enorme que partira naquela triste manhã de expulsão, só uma Deusa ficou... uma única... e que nascera do último estertor do derradeiro Deus que morria!...

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E desde então, como um Adeus! ela vagueia pela Terra... silenciosa consoladora dos tristes, sob o nome suavíssimo de SAUDADE!...

Eu e a noite...

A Correia Dias

O luar é o sorriso irônico de um Fantasma!... Ilusão de luz nas pupilas nostálgicas dos gatos... Ao luar todas as Cousas têm murmúrios de Sagas... Aparências descontornadas...

Expressões de Esquecimento e de Mágoa...

Eu amo a noite sem o albinismo da Lua, toda vestida de luto pelo Sol, sangrando Saudades nas estrelas!...

Lúrido descampado onde eu converso a sós com a minha Alma... sentado à soleira amiga da minha Tristeza!...

Quando o Tédio holocaustiliza-me, sinto-a rondar à minha janela, aveludadamente... como alguém que me esperasse, lá fora, para uma entrevista no meu jardim...

Ó Noite! eu te Exalto e te Bendigo, na Melancolia do meu Paço deserto, porque me suspendes na Vida... insulas-me do ruído... dás-me a impressão de que só existo em Essência...

Tu fazes-me ouvir as harmonias de Saudades distantes... sem memória de seu começo... sem rota no seu destino!...

No teu seio de Treva pressinto Existências ascendendo... ascendendo para a esparsa Soledade do Infinito – onde tudo se apaga e onde tudo começa...

Noite!... negra mãe das Emoções raríssimas!...

Do teu leite a Simbólica Visão de Tintoreto, alimentam-se os Poetas solitários... os que andam sozinhos a cantar, indiferentes, pela Vida!...

A criatura humana é um pobre Deus sem nome, esquecido da sua origem!...

Precisa de Ti! ó Noite! para Viver feliz...

Porque só Tu podes fazer-nos sentir a Felicidade através da tua treva, como aos gregos a Beleza através dos seus Deuses...

A minha alma procura-te... transmigrada e aflita...

A minha Alma... triste Mocho que habita, há mais de vinte anos, a Torre escura e deserta do MEU CORPO!...

Drozera vitae...

(dum diário sem fim)...

Para Edmundo da Luz Pinto

Só!...

Na curva do último bocejo, a Vida apareceu-me um deserto sem árvores, com um vasto céu triste e um grande vento gelado...

Eu quedo-me absorto, vazio de ânimo, no meu quarto que o Silêncio exila e onde paira a tristeza das cousas imobilizadas...

A tarde escorre, com moleza de Sultana, à sombra tranquila das Noras...

Na poeira de opala a paisagem toma aspectos extravagantes... eurítmicos...

E caminha, e contorce-se, e baila arabescos de gaze, e perde-se longe, esfumada no decor grisalho da Babilônia gibosa sob o céu ainda mais giboso...

Dentre o tumulto boleado de galhadas, de dorsos, a flecha duma igreja gótica emerge... branca... altiva... como um braço vitorioso de mulher!...

As minhas retinas cansam-se de refletir!...

Levanto-me e cerro os batentes da janela.

Acendo um cigarro e torno à minha cadeira.

A luz, de fora, ronda os vitrais heráldicos, esforça-se por penetrá-los, com a teimosia de uma grande esfinge diáfana... Na sombra é que melhor se sente a Alma...

As naturezas contemplativas são feitas de nuances.

A penumbra é a Essência... a Música escura das lendas... É por isso que as flores têm expressões mais bizarras nas meias-tintas do crepúsculo...

As estátuas só vivem entre os claros-escuros...

Eu fico novamente absorto... vazio de ânimo, no meu quarto esparso de Solidão como os confins de um mundo estranho!. .

Apagado na treva, plangentemente, taciturnamente, o carrilhão do meu velho relógio esfuma um triste lied renano... Já deve ser noite lá fora...

E eu não escutei tanger o Angelus.

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Só!...

O Tédio... a Monotonia mortal do banzo d'África estribilhando aos meus ouvidos...

Como a Vida é tão longa sem morfina!...

Mal do mundo...

A Helios Seelinger

Filiforme e viscoso, numa tarde lívida de neblinas, Satã escorreu dos capítulos torvos do Talmud e caiu mole, desconjuntado, sobre a Terra silenciosa!

E de bruços, acovardado, esmagando contra as coxas o ventre nu, o seu corpo negro e feio como o fole de um polvo apenas latejava...

Só a grande cabeça esguedelhada movia-se para os lados, perscrutadoramente, arrastando o olhar em semicírculos indagadores...

As névoas adensavam-se, apagando os negros croquis das ramarias, onde, enrodilhados de frio, pássaros piavam.

E a Noite descia triste, cheia de desânimos, como os olhos dos que vão morrer.

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Satã arqueara o dorso, fazendo ressaltar as vértebras duras...

Ninguém lhe havia saído ao couce.

Então vagarosamente ergueu-se, sacudindo a cauda curta de bode, chispando nos olhos vesgos e amarelos as maldades que iria espalhar por este Mundo...

E a sua boca abriu-se num bocejo ululante...

Um bocejo que era um insulto às divindades magníficas! Depois... arrancou aos pinchos, malabarando os braços magros e peludos...

E sumiu-se nos longes que a Sombra de todo corroera...

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Nessa noite bebeu-se o absinto...

As três sombras...

A Roberto Gomes

PASSADO!... a Sombra do que fui me espreitando na Vida!... Olhos cheios de noite... olhos de Velhice!... que quanto mais se afastam mais Saudades me deixam!...

PRESENTE!... a minha Sombra sem pouso... de Ermo em Ermo vagando!...

Sempre voltada para Ti, Torre impassível do Tempo... onde um velho sino blange, zuantemente, na tristeza da Hora agonizante!...

FUTURO... olhos baços de Esfinge na distância... muda interrogação feita de Treva!...

A Vida ainda em Fantasma dissimulando o Sonho!...

Eu sinto que me atrais... fugindo à minha frente!...

Mas em ânsias de Abismos... desejos de Infinitos, vou teu rasto seguindo pelo Presente a fora...

E apenas eu vejo, na torva luz do Mistério, o teu perfil de Sombra... o teu vulto de Monge!...

A fugir... sempre a fugir!...

Elegia do inverno...

A Caio de Melo Franco

— Conta-me uma história... uma história que seja a Música azul da tua lembrança e tenha o perfume griséu das madrugadas de chuva!...

Ele sorriu para a sua mágoa, meneiando a trêmula flor de neve da cabeça.

E ficou silencioso...

Na lareira o fogo tinha a serena expressão de um Deus feliz!

As bocas flamejantes cantavam as Harmonias sagradas da primeira felicidade.

A balada da luz, como um halo de Espírito Santo, vinha debruar de oiro a silhueta do velho camponês...

No chão as nossas sombras espargiam-se, quebravam-se no ângulo raso da parede e subiam humildes, trêmulas de Assombro, atraídas pelas pupilas lúridas do teto...

Depois... como dos confins de um Mundo remoto, o velho murmurou:

“— Uma história que seja a Música azul da minha lembrança!

Não!... eu não sei nenhuma!

A legenda do meu passado... o Fantasma da tristeza errando na minha memória!

A Balada do Rei de Tule na boca de uma caveira...

Ai! a minha lembrança é como um Ermo cheio de soledade e onde bruxuleiam, ao vento escuro da noite, os círios lúgubres das almas!...”

E num baixar de pálpebras transido de amarguras, como a última Visão dos que morrem inocentes, exclamou:

“— Só quando se foi Feliz é que a Saudade é um consolo!

Bem-aventurados os que têm histórias na velhice, e ouviram os discos celestes da Ventura, e esperam serenamente a Morte, num canto da lareira, na Transfiguração do Tabor excelso do Passado!”

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Lá fora, na treva serena, o vento gelado da noite rondava, uivando, como um cão à porta fechada do seu dono...

E a neve, sem ruído, numa poeira translúcida, caía do céu... onde a Mó do Inverno rolava esfarinhando estrelas!...

Ciganos...

A Raul de Leoni

Na maciez d'espáduas da tarde, a caravana dos zíngaros caminha com a pesada canseira dum caimão... A frente a carriola onde viajam as mulheres e que dois mulos trôpegos arrastam.

Seguem-na os homens, uns vinte, a dois de fundo, levando quase de rastro macacos esfomeados e cães de orelhas decepadas.

Ninguém fala...

Apenas no couce da coreia exótica um negro quase nu pragueja nomes obscenos, a espicaçar o focinho sangrento de um urso leproso e mole de cansaços...

Longe, os pinheiros, tranchados na púrpura a verde malva, têm expressões frias de duendes.

Uma cigarra zine, escondida, entre as sebes.

E é como um eco saudoso e triste do tempo quente, último gemido alado do verão que se foi...

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Vem, da carriola, água-fortado na seda do silêncio, o canto estranho das mulheres, a melodia selvagem dum instrumento vibrátil.

A Essência da Emoção, a Cor ainda sem nome, o Êxtase a Maravilha transfundem-se nessa música de sangue... E a canção czarda.

A sincronia bárbara de ritmos que sobem, espiralantes, da tiorba, como um fumo sonoro!

Poemas da Vida ao Sol de todas as terras; Soluços que se apagam em sorrisos, e gemidos que se perdem em ternuras, e curvas de sons que fazem lembrar seios desnudados!...

E por sobre tudo, pairando como Deuses fatais, a renúncia da gleba, o Amor... os olhos cheios de sortilégios das zíngaras acobreadas...

Na extrema-unção profana do poente, esmigalhado, longe, anda o gotejar uníssono de um sino.

A caravana sumiu-se num abraço da estrada.

E o Silêncio abriu as suas asas de águia branca!

Quando as amendoeiras floriram...

A João Crespo

Chama-se Yuki e no seu olhar desfalecido e triste há a imensa solidão das manhãs de Fuyú... Nasceu entre as colinas exóticas do Kioto e a pecadora beleza da sua boca, num poema glorioso, cantou-a o mais lindo poeta da sua ilha, sobre uma pétala de flor do lótus...

A legenda do seu Amor, no entanto, é enevoada e dolorosa como olhar da cegonha ferida!

Amou apenas uma tarde...

E nessa tarde, à hora em que a paisagem se abisma na Vida imóvel, o poeta magnífico morreu!..

Morreu quando murmurava, de olhos iluminados, tonto de carícias:

O teu beijo, ó Yuki!...

E como o cofre do pescador Urashima...

Tem a cor do coral de Okinava,

E encerra as alegrias da Vida!...

Chama-se Yuki e no seu olhar, desfalecida e triste, mora a serena Saudade das amendoeiras em Flor...

Legenda antiga...

Para o Jocelyn De Viegas

Na orla do mar, num castelo agarrado à escarpa como um musgo exótico e crescendo para o céu no assomo orgulhoso das mensagens, a princesinha vivia...

Ela era meiga, lirial, como as nossas irmãs pequeninas que morreram.

A sua bondade tinha a suave irradiação da bem-aventurança... lembrava os olhos de um Deus a perdoar...

Até o negro falcão que lhe obedecia os acenos ficara menos brutal nas arrancadas... mais piedoso sobre a presa!

Mas a Melancolia aninhara-se na sua alma de cisne heráldico e vinha para o seu olhar numa vaga aparência de sombra remota...

Os seus gestos desfolhavam-se em desalentos, em êxtases do entardecer... eram como folhas morrendo na Primavera, com medo do Outono!...

Toda essa ausência de si, no entanto, começara a sentir, um dia, na sala das panóplias, diante do panneau onde havia bordado um nobre cavaleiro.

E desde então esse estranho cavaleiro abrira uma brecha na sua Vida, precipitando-se dentro dela.

Amava-o... amava-o tanto, que só ele lhe tomara o pensamento, misterioso, coberto de ouro, de viseira baixa, com um cocar de plumas vermelhas derramando-se sobre o elmo resplandecente...

Por ele esquecera o velino... os bastidores d'ébano... o atril em que seguia, à noite, entre lampadários de prata, num in-fólio gótico, a Via-Láctea piedosa dos santos!...

Lentos dias, na alcândora, o falcão dormitava, abandonado...

E, no parque do castelo, às margens do grande lago, as garças versalheanas sentiam a existência tão pungente, como velhas duquesas no exílio e na miséria...

Em esforço vão os jograis contorciam-se, enguisalhados, e os menestréis vinham de longe, ao castelo, cantar baladas...

A princesinha ficava pálida, muda, e cheia de indiferenças...

Esbatia-se na sombra do que fora, como as órbitas das estátuas envelhecidas.

A abstração estendera na sua alma de cisne heráldico a planura sem fim da Sombra e do Silêncio.

Dia a dia definhava... levada para a Morte, nos braços do cavaleiro desconhecido...

E nunca mais, do eirado das barbacãs, ela foi seguir o voo imperial das águias negras...

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Num país esmaltado de sol, onde as manhãs pareciam grandes cofres abertos transbordando pedrarias e joias raras, a princesinha morreu...

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Mas a sua tristeza continua no céu...

Prosa enferma...

Para o Marquês de Denis

A Realidade é uma caveira com os olhos ainda cheios de terra... A Ilusão – a Esperança desvendando-nos recantos ignorados!...

O homem sem o sopro da Divina Quimera – é a estátua bárbara de lodo na infindável manhã do seu primeiro dia...

Só o Fantasma dos Sentidos integra-o na Vida, descorporizando-o!

Há por aí muita gente com aspectos de Feliz porque se aproxima dos moluscos e dos protozoários.

No entanto muito mais feliz é o zangão.

Este, ao menos, resignado no seu destino, sonha com a rainha e pensa na gloriosa manhã da escalada para o Amor!...

Iludido com a Vitória, ele sente-se, por isso, o trimegisto da colmeia.

No Mundo tudo deve ser aparências... Sombras... tecidos de gaze ao vento.

O Fogo de Prometeu é o símbolo da Ilusão.

A Realidade, o Abutre – conúbio monstruoso da Morte com Satã!...

A vingança do Monte Cáucaso foi o horror sentido pelos Deuses diante do que eram.

A Miragem do Olimpo roubara-a o filho de Titã na cama Fragilíssima...

E o Calvário veio depois...

A Vida tem duas faces.

Uma para o Sol e outra para a Sombra...

Através da face que está perto da Luz vê-se a caveira...

A Ilusão, na Sombra, ri-se dessa pobre beleza transparente... sepulcro de vidro cheio de ossos lívidos e arrumados...

A Verdade tem as sete voltas do Estige dissimuladas em letras...

Ai! do que se deixa enganar pela sua harmonia de Água-Viva...

Não viverá até ao instante de morrer!

Ninguém deve abrir o coração para o que é...

Os Felizes... os Triunfadores, são aqueles que passam pela Existência na quadriga doirada da Quimera, bebendo o perfume lavado das alturas, na vertigem deslumbrante da Ascensão!

Eles chamam-se Poetas... Loucos... Magos... Visionários... e o número de suas Vitórias nunca chegará a ser contado!...

Porque não se contarão nunca as estrelas da Via-Láctea...